Evangelho de Marcião

O Evangelho de Marcião, chamado por seus seguidores de Evangelho do Senhor, foi um texto utilizado na metade do século II d.C. pelo professor cristão e herege Marcião. O que se pôde reconstruir dele aparece agora entre os apócrifos do Novo Testamento. Foram muitos os apologistas católicos romanos que escreveram tratados a combater Marcião após a sua morte, como o do notório tratado de Tertuliano, Contra Marcião, a partir do qual foi possível reconstruir quase todo o "Evangelho do Senhor" de Marcião.

Marcião, que é conhecido apenas através de seus críticos, foi considerado herético por suas doutrinas, pelo que foi excomungado, mas curiosamente esta sua separação entre Antigo e Novo testamento, será posteriormente adoptada pela igreja e utilizada a partir de Tertuliano[1]

Relação com o Evangelho de Lucas editar

Há duas possíveis relações entre o Evangelho de Marcião e o Evangelho de Lucas.

Marcião como um revisionista de Lucas editar

Os Padres da Igreja escreveram, e a maioria dos estudiosos modernos concorda,[2][3] que Marcião editou Lucas para que se conformasse com a sua teologia, o marcionismo. O autor do século II Tertuliano escreveu que Marcião "...expurgou [do Evangelho de Lucas] todas as coisas que se opunham ao seu ponto de vista... mas manteve todas as que estavam em acordo com a sua opinião".[4] Este ponto de vista é consistente com a forma como ele alterou outros livros em seu reduzido cânon, como nas epístolas paulinas, e parece provável uma vez que o Evangelho de Lucas já estava completo no tempo de Marcião.

Neste evangelho, Marcião eliminou os dois primeiros capítulos sobre a natividade de Jesus, começando já em Cafarnaum, e fez modificações no resto conforme o marcionismo. As diferenças entre os textos abaixo iluminam o ponto de vista marcionista de que, primeiro, Jesus não seguiu os profetas e, segundo, que a terra é maligna.

Lucas Marcião
«Disse-lhes Jesus: Ó néscios, e tardos de coração para crerdes em tudo o que os profetas disseram!» (Lucas 24:25) Disse-lhes Jesus: Ó néscios, e tardos de coração para crerdes em tudo o que eu disse!
«Começaram a acusá-lo, dizendo: Achamos este homem pervertendo a nossa nação...» (Lucas 23:2) Começaram a acusá-lo, dizendo: Achamos este homem pervertendo a nossa nação...e destruindo a Lei e os Profetas.
«Naquela hora exultou Jesus no Espírito Santo, e exclamou: Graças te dou a ti, Pai, Senhor do céu e da terra...» (Lucas 10:21) Naquela hora exultou Jesus no Espírito Santo, e exclamou: Graças te dou a ti, Pai, Senhor Celestial...

Marcião sendo anterior à Lucas editar

Em 1881, Charles B Waite[5] sugeriu que o Evangelho de Marcião poderia ter precedido o de Lucas. John Knox (não o famoso reformador escocês John Knox), em Marcion and the New Testament, também defende esta hipótese. Como exemplo de uma evidência que poderia apoiar este ponto de vista, compare Lucas 5:39 - onde se afirma que o velho é melhor - com Lucas 5:36–38 - que afirma o inverso. No livro de 2006, "Marcion and Luke-Acts: a defining struggle", Joseph B. Tyson defende que não apenas Lucas, mas também os Atos dos Apóstolos seriam uma resposta à Marcião ao invés de o Evangelho de Marcião ser uma montagem sobre o de Lucas.[6]

Justificativas editar

O teólogo Adolf von Harnack - em acordo com a visão tradicional de Marcião como um revisionista - discute as razões destas alterações em Lucas. De acordo com ele, Marcião acreditava que só poderia haver um único evangelho verdadeiro, sendo todos os demais falsificações feitas por elementos pró-judaicos, determinados a manter a veneração a YHWH. Ademais, ele acreditava que o verdadeiro evangelho fora dado diretamente a Paulo pelo próprio Cristo, mas foi depois corrompido por estes mesmos elementos, que também corromperam as epístolas paulinas. Ele entendia que a atribuição deste evangelho a "Lucas" como sendo outra falsificação. Marcião, portanto, iniciou o que ele entendia como uma restauração do evangelho original como fora dado a Paulo.[7]

Von Harnack escreveu:

Para esta missão, ele não recorreu à revelação divina, à nenhuma instrução especial e nem à nenhuma ajuda pneumática [...] Daí decorre imediatamente que para a sua purificação do texto - e geralmente se esquece isto - ele não alegou, e nem poderia, certeza absoluta.
 
Marcion: The Gospel of the Alien God, Adolf von Harnack.

Ver também editar

Bibliografia editar

Referências

  1. Frédéric Lenoir - Comment Jésus est devenu Dieu - Le Livre de Poche - (II-4 Marcion)
  2. EHRMAN, Bart (2003). Lost Christianities (em inglês). New York: Oxford University Press. 108 páginas 
  3. METZGER, Bruce M. The Canon of the New Testament: Its Origins, Developments and Significance (em inglês). Oxford: Clarendon Press 
  4. Tertuliano. «6.2». Contra Marcião. Marcion's Object in Adulterating the Gospel. No Difference Between the Christ of the Creator and the Christ of the Gospel. No Rival Christ Admissible. The Connection of the True Christ with the Dispensation of the Old Testament Asserted. (em inglês). IV. [S.l.: s.n.] 
  5. Waite, Charles B. (1881). History of the Christian Religion to the Year Two-Hundred (em inglês). [S.l.: s.n.] 
  6. Tyson, Joseph B. Marcion and Luke-Acts: A Defining Struggle (em inglês). [S.l.: s.n.] . Um caso à favor da visão de que o par Lucas - Atos seria uma resposta à Marcião. Tyson também reconta a história acadêmica do estudo de Marcião até 2006.
  7. Harnack, Adolf von (1924). John E. Steely e Lyle D. Bierma (trad.), ed. Marcion: The Gospel of the Alien God (em inglês). [S.l.: s.n.] 

Ligações externas editar