A filosofia etíope é o corpus filosófico dos territórios da Etiópia e da Eritreia atuais. Além da tradição oral, foi preservada no início da forma escrita através dos manuscritos ge'ez. Essa filosofia ocupa uma posição única na filosofia africana.

Começos da filosofia etíope editar

O caráter da filosofia etíope é determinado pelas condições particulares de evolução da cultura etíope. Assim, a filosofia etíope surge da confluência da filosofia grega e patrística com os modos tradicionais de pensamento etíope. Por causa do isolamento precoce de suas fontes de espiritualidade abraâmica - Bizâncio e Alexandria - a Etiópia recebeu parte de sua herança filosófica através de versões em árabe.[1][2]

A literatura sapiencial desenvolvida sob essas circunstâncias é o resultado de um duplo esforço de assimilação criativa: de um lado, de um ajuste da Ortodoxia aos modos tradicionais de pensamento (nunca erradicados) e vice-versa e, por outro, da absorção do pensamento pagão grego e patrístico inicial nessa síntese etíope-cristã em desenvolvimento. Como consequência, a reflexão moral da inspiração religiosa é predominante, e o uso de narrativas, parábolas, apotegmas e imagens ricas é preferido ao uso de argumentos abstratos. Esta literatura sapiencial consiste em traduções e adaptações de alguns textos gregos, a saber, do Physiolog (c. século V A.D.), A vida e as máximas de Skendes (século XI A.D.) e O Livro dos Sábios Filósofos (1510/22).[1][2]

Filosofia etíope madura editar

No século XVII, as crenças religiosas dos etíopes foram desafiadas pela adoção do catolicismo como religião oficial da Etiópia pelo rei Susenyos e por uma presença subsequente de missionários jesuítas. Houve uma perseguição a livre-pensadores, intensificada após 1630.[3] A tentativa de impor vigorosamente o catolicismo a seus súditos durante o reinado de Suseynos inspirou um maior desenvolvimento da filosofia etíope durante o século XVII. Zera Yacob (1599-1692) é o expoente mais importante desse renascimento.[1] Seu tratado Hatata (1667), escrito durante sua fuga, é um trabalho frequentemente incluído no cânone estreito da filosofia universal e considerado como antecipando investigações filosóficas do Iluminismo, como os de Descartes e Kant.[3][4]

Zera Yacob editar

Zera Yacob tinha uma cultura totalmente teológica. Embora de nascimento humilde, ele ganhou respeito por suas capacidades intelectuais e prosseguiu com a educação teológica etíope tradicional. Zera Yacob dominou a teologia copta e a teologia católica, e tinha amplo conhecimento das religiões judaica e islâmica. Seu vade mecum espiritual era o Livro dos Salmos de Davi, no qual ele buscava conforto e inspiração.[1][2][4]

Conhecendo assim duas interpretações cristãs da Bíblia, bem como as duas outras religiões abraâmicas, e vendo as contradições entre elas, Zera Yacob é levado a recusar a autoridade da tradição etíope e de qualquer tradição em geral. Ele passa a pensar que a tradição está infestada de mentiras, porque os homens, em sua arrogância, acreditam que sabem tudo e, assim, se recusam a examinar as coisas com sua própria mente, aceitando cegamente o que lhes foi transmitido por seus antepassados. O filósofo aceita então como autoridade única sua razão, e aceita das Escrituras e dos dogmas apenas o que resiste a uma investigação racional. Ele afirma que a razão humana pode encontrar a verdade, se a procurar e não desanimar diante das dificuldades.[1][2][4][5]

Assim, por sua examinação em partes (é isso que hatätä significa), Zera Yacob chega a um argumento pela existência de Deus (uma essência incriada e eterna), baseado na impossibilidade de uma cadeia infinita de causas e na convicção que a Criação é boa, sendo Deus bom. Essa crença é a base para uma crítica da moral ascética e de alguns preceitos morais judaicos e islâmicos. Ao identificar a vontade de Deus com o que é racional, Zera Yacob rejeita a maioria desses preceitos morais (por exemplo, sobre poligamia, jejum ou interdições sexuais ou alimentares) como blasfêmia. Ele parece pensar que tudo é bem para aquele que é bom, lembrando, assim, o modo de pensamento expresso na profissão de fé da outro grande Zera Yaqob, o Imperador do século XV.[1][2][4][5]

Walda Heywat editar

Zera Yacob teve um discípulo, Walda Heywat, que também escreveu um tratado filosófico, sistematizando o pensamento de seu mestre.[5] Ele deu mais atenção aos problemas práticos e educacionais e tentou conectar a filosofia de Zera Yacob ao tipo de sabedoria expressa na literatura sapiencial anterior. Walda Heywat recorre intensamente a ilustrações e parábolas, e muitas vezes a fonte de seus exemplos é o Livro dos Sábios Filósofos. Embora seu trabalho seja sem dúvida menos original que o de seu mestre, ele pode ser considerado "mais etíope", pois representa uma síntese pela qual algumas ideias geradas pela rejeição da tradição de Zera Yacob são reunidas com a sabedoria tradicional inspirada pelos cristãos. É "mais etíope" também no sentido de abordar algumas questões práticas, sociais e morais que a maioria dos etíopes de seu tempo encontrou em suas vidas. Assim, o trabalho de Walda Heywat é menos especulativo, mas de caráter mais nacional do que o tratado de seu mestre, Zera Yacob.[1][2]

Ver também editar

Referências

  1. a b c d e f g Sumner, Claude, The Source of African Philosophy: the Ethiopian Philosophy of Man, Stuttgart: Franz Steiner Verlag Wiesbaden, 1986
  2. a b c d e f Sumner, Claude, "Ethiopia, philosophy in", In E. Craig (Ed.), Routledge Encyclopedia of Philosophy, London: Routledge, 1998
  3. a b Herbjornsrud, Dag. «Os africanos que propuseram ideias iluministas antes de Locke e Kant - 24/12/2017 - Ilustríssima». Folha de S.Paulo. Trad. Allain, Clara. Consultado em 2 de janeiro de 2020 
  4. a b c d Kiros, Teodros, “The Meditations of Zara Yaquob”
  5. a b c Kiros, Teodros, Zara Yacob: Rationality of the Human Heart, Red Sea Press, 2005

Leitura adicional editar

  • Teodros Kiros, "Zera Yacob and Traditional Ethiopian Philosophy," in Wiredu and Abraham, eds., A Companion to African Philosophy, 2004.
  • Enno Littmann. Philosophi Abessini. Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium, Vol. 18, Scriptores Aethiopici, Presses Républicaines, 1904. Contains the Ge'ez text of the treatises of Zera Yacob and Walda Heywat.
  • Claude Sumner, Ethiopian Philosophy, vol. I: The Book of the Wise Philosophers, Commercial Printing Press, 1974.
  • Claude Sumner, Ethiopian Philosophy, vol. II: The Treatise of Zara Yaecob and Walda Hewat: Text and Authorship, Commercial Printing Press, 1976.
  • Claude Sumner, Ethiopian Philosophy, vol. III: The Treatise of Zara Yaecob and Walda Hewat: An Analysis, Commercial Printing Press, 1978.
  • Claude Sumner, Ethiopian Philosophy, vol. IV: The Life and Maxims of Skandes, Commercial Printing Press, 1974.
  • Claude Sumner, Ethiopian Philosophy, vol. V: The Fisalgwos, Commercial Printing Press, 1976.
  • Claude Sumner. Classical Ethiopian Philosophy, Commercial Printing Press, 1985. Contains an English translation and brief introduction for each of the texts presented in volumes I–V of Sumner, Ethiopian Philosophy.
  • Claude Sumner, "The Light and the Shadow: Zera Yacob and Walda Heywat: Two Ethiopian Philosophers of the Seventeenth Century," in Wiredu and Abraham, eds., A Companion to African Philosophy, 2004.

Ligações externas editar