Oxidação biológica dos álcoois

Naturalmente, muitos alimentos consumidos por animais possuem etanol — álcool primário — em sua composição. Isso ocorre porque microrganismos, como a levedura (Saccharomyces cerevisiae), são capazes de realizar fermentação alcoólica, convertendo carboidratos do alimento em etanol como forma de obtenção anaeróbica de energia. Em excesso, este álcool é tóxico ao organismo, podendo envenenar o cérebro e ser, inclusive, letal. Como consequência da pressão seletiva caudada pela presença de etanol em alimentos, mecanismos metabólicos de defesa evoluíram de forma a mitigar os prejuízos da ingestão dessa molécula, caracterizando-se a oxidação biológica de álcoois.

Oxidação do etanol editar

A oxidação biológica do etanol, tal qual a oxidação de qualquer outro álcool primário — tanto em ambientes bióticos, quanto abióticos —, seguirá conforme as etapas já descritas, com algumas particularidades. Nesse sentido, vale recordar a oxidação dos alcóois primáarios de forma geral.

A oxidação de um álcool primário ocorre quando o carbono ligado ao grupo hidroxila perde uma ligação sigma com um átomo de hidrogênio, ganhando uma segunda ligação com o átomo de oxigênio em compensação, formando um aldeído. Esse aldeído sofrerá uma nova oxidação, perdendo mais uma ligação de hidrogênio e ganhando uma ligação com um grupo hidroxila no lugar, formando, junto à ligação dupla com o oxigênio, o grupo funcional carboxila — caracterizando a molécula como um ácido carboxílico:

 
Oxidação de um álcool primário


No caso da oxidação biológica, que, em humanos ocorre principalmente no fígado, as etapas de transformação química são catalisadas por enzimas, e há um agente oxidante diferente dos usuais não-biológicos. As principais enzimas envolvidas são a álcool-desidrogenase (ADH) — que atua no citosol e catalisa a reação de oxidação do álcool a aldeído — e a aldeído-desidrogenase (ALDH) — que atua na mitocôndria e catalisa a reação de oxidação do aldeído ao ácido carboxílico correspondente. A respeito do agente oxidante, trata-se do dinucleotídeo de nicotinamida e adenina (NAD+), que cumpre o papel de carreamento de elétrons em várias vias metabólicas além da oxidação de álcoois. Suas reações de oxirredução podem ser observadas na figura:

 
Oxidação e redução do NAD (a redução é a reação da esquerda para a direita, enquanto a reação de oxidação é aquela que ocorre da direita para esquerda)


A partir disso, a oxidação biológica do etanol pode ser caracterizada em duas etapas. A primeira etapa, catalisada por ADH, é uma oxirredução envolvendo etanol (agente redutor) — álcool primário — e NAD+ (agente oxidante). Nesse processo, há a transferência de dois elétrons e um próton, na forma de íon hidreto, do agente doador para o agente aceptor, havendo oxidação e redução nessas moléculas, respectivamente. Com efeito, forma-se acetaldeído — aldeído — e NADH, além da liberação de um próton (H+). A segunda etapa consiste em uma nova reação de oxirredução, dessa vez catalisada pela enzima ALDH, na qual há a transferência de dois elétrons e um próton, na forma de hidreto, oriundos do acetaldeído (agente redutor) para um outro NAD+ (agente oxidante). Logo, há formação de NADH e de ácido acético — ácido carboxílico — que em condições fisiológicas desprotona em acetato, além de liberação de H+.

 
Esquema da oxidação biológica de etanol e acetaldeído

Efeitos da oxidação no organismo editar

 

O acetaldeído, mais lentamente oxidado, é o agente causador dos efeitos de ebriedade, como perda de coordenação motora e dores de cabeça, assim como é um agente carcinogênico devido à sua capacidade de inibição de mecanismos de manutenção da integridade do DNA.

Além disso, com a oxidação de moléculas de etanol, há a diminuição dos níveis de NAD+ disponível, porque é transformado em NADH. Porém, é necessário um aporte adequado de NAD+ para a oxidação de etanol e de outros substratos. Para isso, há dois mecanismos gerais de regeneração de NADH: reoxidação aeróbica na fosforilação oxidativa e a reoxidação anaeróbica em vias fermentativas. Quando a primeira está sobrecarregada, estimula-se a atividade da segunda.

No caso de humanos, o mecanismo de regeneração anaeróbica é a fermentação lática, em que os elétrons do NADH são doados ao piruvato, molécula associada ao metabolismo de glicose. Com efeito, forma-se ácido lático, que, em condições fisiológicas, sofre desprotonação gerando lactato e liberando H+ no sangue. Com o excesso de metabolização de etanol, pois, há o risco do excesso de H+ liberado superar a capacidade de tamponamento do sangue, havendo acidificação, condição patológica grave e potencialmente letal.

Quando o organismo está em jejum, o fígado é estimulado a produzir glicose na via gliconeogênica a partir de precursores, como o piruvato, de modo a se manter a glicemia adequada. Porém, devido ao estímulo elevado da fermentação lática após o consumo excessivo de etanol, os níveis de piruvato caem e o fígado não consegue produzir quantidades adequadas de glicose necessária à homeostase glicêmica. Consequentemente, há ocorrência de hipoglicemia, quadro clínico muito grave, que pode ser fatal se não houver intervenção médica; afinal, alguns órgãos, como o cérebro, são muito dependentes de glicose para obter sua energia. Tal é o motivo que se faz necessário aplicações de soros glicolíticos em pacientes de coma alcóolico.[1]

Oxidações tóxicas editar

 
Oxidação de metanal a formaldeído e de formaldeído a ácido fórmico. Oxidação do etileno glicol a glioxal e de glioxal a ácido oxálico.

Em geral, o principal álcool metabolizado pelos animais é o etanol e o principal aldeído, o acetaldeído. Contudo, as enzimas que catalisam tais oxidações são compativeis com outros substratos também, cada qual com sua respectiva função orgânica, tornando os processos muito semelhantes. Porém, diferentemente do etanol e dos metabólitos gerados pela oxidação dele, a ingestão de outros alcóois de caráter mais xenobióticos a humanos pode ser mortal. Por exemplo, consumir metanol em pequenas quantidades — aproxidamente duas colheres de chá — pode causar cegueira e uma dose pouco maior, a morte. Isso porque as substâncias formadas pela oxidação desse composto (formaldeído e ácido fórmico) são muito tóxicas e rapidamente atacam as células da retina, causando a cegueira, atacando posteriormente células de tecidos vitais. Outro exemplo, é o etileno glicol, presente em anticongelantes, cujos derivados pela oxidação (glioxal e ácido oxálico) são responsáveis pela morte de muitos animais que consomem o etileno glicol, de sabor doce, mal descartado.[2]

Nesses casos de intoxicação, o ideal é injetar pequenas doses de etanol no organismo afetado, com o objetivo de diminuir as quantidades de álcool tóxico (seja metanol ou etileno glicol) que é oxidado. O fato decorre de uma mesma enzima ser compatível com mais de um substrato. Ou seja, haverá uma competição por catalise entre o etanol (menos danoso) e a outra substância em questão, retardando as reações de oxidação dessa segunda, dando mais tempo aos rins excretarem os compostos tóxicos presentes no organismo.

Referências editar

  1. Cederbaum, Arthur I. (novembro de 2012). «Alcohol metabolism». Clinics in Liver Disease (4): 667–685. ISSN 1557-8224. PMC 3484320 . PMID 23101976. doi:10.1016/j.cld.2012.08.002. Consultado em 1 de dezembro de 2022 
  2. «alcohol - Reactions of alcohols | Britannica». www.britannica.com (em inglês). Consultado em 1 de dezembro de 2022