Agricultura familiar
Agricultura familiar é o cultivo da terra realizado por pequenos proprietários rurais, tendo como mão de obra, essencialmente, o núcleo familiar ― em contraste com a agricultura patronal, que utiliza trabalhadores contratados, fixos ou temporários, em propriedades médias ou grandes.[1]

Em 2015, a agricultura familiar era responsável por 80% da produção mundial de alimentos e por 90% das propriedades agrícolas.[2]
BrasilEditar
HistóriaEditar
Segundo o economista Ricardo Abramovay, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, a oposição entre "agricultura familiar" e "agricultura patronal" é de natureza social ― entre a agricultura que se apoia fundamentalmente na unidade entre gestão e trabalho de família e aquela em que se separam gestão e trabalho. De acordo com o economista, o modelo adotado pelo Brasil, o patronal, não foi o que prevaleceu em países como os Estados Unidos, onde, historicamente, a ocupação do território baseou-se na unidade entre gestão e trabalho, e a agricultura baseou-se inteiramente na estrutura familiar. Abramovay ressalta que os países que mais prosperaram na agricultura foram aqueles nos quais a atividade teve base familiar e não patronal, enquanto que os países que dissociaram gestão e trabalho tiveram, como resultado social, uma imensa desigualdade econômica.[3]
Maria Nazareth Baudel Wanderley, da Universidade Federal de Pernambuco, argumenta que a noção de "agricultura familiar" deve ser entendida de forma genérica como "aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo".[4] O caráter familiar desse modelo de agricultura não é um mero detalhe superficial e descritivo, mas "o fato de uma estrutura produtiva associar família–produção–trabalho tem consequências fundamentais para a forma como ela age econômica e socialmente".[5] Sobre este tema da estratégia familiar como central, Wanderley argumenta, de forma complementar, que "mais do que a diferença quanto aos níveis de renda auferida, que apenas reconstrói o perfil momentâneo dos agricultores familiares, é a diferenciação das estratégias familiares que está na origem da heterogeneidade das formas sociais concretas da agricultura familiar".[6]
Ao contrário do que defende Abramovay, Wanderley argumenta que o agricultor familiar não é um personagem novo na sociedade contemporânea (produto da ação do Estado), desvinculado do seu passado camponês, mas, ao contrário, os agricultores familiares seriam portadores de elementos de ruptura com o seu passado camponês ao mesmo tempo em que mantêm algumas continuidades. Nas palavras de Wanderley: os agricultores familiares "são portadores de uma tradição (cujos fundamentos são dados pela centralidade da família, pelas formas de produzir e pelo modo de vida), mas devem adaptar-se às condições modernas de produzir e de viver em sociedade".[7] uma vez que estão inseridos no mercado moderno e são influenciados pela sociedade englobante e pelo Estado.
Novo personagem políticoEditar
A emergência do agricultor familiar como personagem político é recente na história brasileira. Nas duas últimas décadas, vem ocorrendo um processo complexo de construção da categoria "agricultura familiar" enquanto modelo de agricultura e identidade política de grupos de agricultores.
A literatura sobre a agricultura familiar aponta que, desde meados da década de 1990, vem ocorrendo um processo de reconhecimento e de criação de instituições de apoio a este modelo de agricultura. Foram criadas políticas públicas específicas de estímulo aos agricultores familiares (como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, em 1995), secretarias de governo orientadas exclusivamente para trabalhar com a categoria (como a Secretaria da Agricultura Familiar criada em 2003 no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA, criado em 1998), promulgou-se em 2006 a Lei da Agricultura Familiar, reconhecendo oficialmente a agricultura familiar como profissão no mundo do trabalho e foram criadas novas organizações de representação sindical com vistas a disputar e consolidar a identidade política de agricultor familiar (como a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil – CONTRAF-BRASIL-CUT) e a CONFETRAF BRASIL - Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil. Além do mais, a elaboração de um caderno especial sobre a Agricultura Familiar com os dados do Censo Agropecuário de 2006[8] contribuiu para evidenciar a importância social e econômica desta categoria de agricultores no país.
O sociólogo e professor da Universidade Federal de Santa Maria Everton Lazzaretti Picolotto aponta que o reconhecimento da categoria agricultura familiar tem se dado de três formas principais, distintas, mas complementares entre si. A primeira diz respeito ao aumento de sua importância política e dos atores que se constituíram como seus representantes (com a formação da Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar como organização específica de agricultores familiares e, de outro lado, com a reorientação política da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, que, a partir de meados dos anos 1990, passou a fazer uso da categoria "agricultor familiar"). A segunda se refere ao reconhecimento institucional propiciado pela definição de espaços no governo, definição de políticas públicas e pela Lei da Agricultura Familiar. E a terceira advém do trabalho de reversão das valorações negativas que eram atribuídas a este modelo de agricultura, tais como: atrasada, ineficiente e inadequada. Por meio de uma luta simbólica movida pelo sindicalismo, por setores acadêmicos e por algumas instituições governamentais, a agricultura familiar passou a ser associada com adjetivos considerados positivos, tais como: moderna, eficiente, sustentável, solidária e produtora de alimentos. Tais reversões de valores estão intimamente vinculadas ao processo de construção da agricultura familiar enquanto modelo de agricultura do tempo presente e o agricultor familiar, seu sujeito, passa a ser um personagem político importante no cenário nacional.[9][10]
LegislaçãoEditar
No Brasil, a agricultura familiar foi assim definida na Lei n.º 11 326, de 24 de julho de 2006:[11]
Art. 3.º Para os efeitos desta Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:
I - não detenha, a qualquer título, área maior do que quatro módulos fiscais;
II - utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
III - tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento;
IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família.
§ 1.º O disposto no inciso I do caput deste artigo não se aplica quando se tratar de condomínio rural ou outras formas coletivas de propriedade, desde que a fração ideal por proprietário não ultrapasse quatro módulos fiscais.
§ 2.º São também beneficiários desta Lei:
I - silvicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo, cultivem florestas nativas ou exóticas e que promovam o manejo sustentável daqueles ambientes;
II - aquicultores que atendam simultaneamente a todos os requisitos de que trata o caput deste artigo e explorem reservatórios hídricos com superfície total de até 2 hectares) ou ocupem até 500 metros cúbicos de água, quando a exploração se efetivar em tanques-rede;
III - extrativistas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput deste artigo e exerçam essa atividade artesanalmente no meio rural, excluídos os garimpeiros e faiscadores;
IV - pescadores que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos I, II, III e IV do caput deste artigo e exerçam a atividade pesqueira artesanalmente.
V - povos indígenas que atendam simultaneamente aos requisitos previstos nos incisos II, III e IV do caput do art. 3º;
VI - integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais que atendam simultaneamente aos incisos II, III e IV do caput do art. 3º.
Importância econômicaEditar
Há um número substancial de textos que afirmam que a agricultura familiar seria responsável por cerca de 70% dos alimentos produzidos no Brasil .[12][carece de fontes] Uma averiguação acadêmica acerca da procedência dessa informação concluiu que está errada em vários níveis e que o mais próximo que podemos afirmar é que menos de 25% do total das despesas das famílias brasileiras com alimentos advém da produção da agricultura familiar.[13] Em 2006, a agricultura familiar produziu 83,2% da mandioca, 69,6% do feijão, 45,6% do milho, 38% do café, 33,1% do arroz e 21,2% do trigo do Brasil.[13] Na pecuária, é responsável por 60% da produção de leite, além de 59% do rebanho suíno, 50% das aves e 30% dos bovinos do país. Além disso, a agricultura familiar tem um papel preponderante no cultivo de determinadas culturas, como por exemplo a do gergelim e a do maracujá.[14]
Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, 84,4% do total de propriedades rurais brasileiras pertencem a grupos familiares. São aproximadamente 4,4 milhões de unidades produtivas, sendo que a metade delas está na Região Nordeste. Esses estabelecimentos representavam 84,4% do total, mas ocupavam apenas 24,3% (ou 80,25 milhões de hectares) da área destinada a estabelecimentos agropecuários brasileiros. Já os estabelecimentos não familiares representavam 15,6% do total e ocupavam 75,7% da área de produção.[1][15]
Ainda segundo o Censo Agropecuário de 2006, a agricultura familiar responde por 37,8% do Valor Bruto da Produção Agropecuária (calculado com base no volume da produção e nos preços médios de mercado). De acordo com a Secretaria de Agricultura Familiar, aproximadamente 13,8 milhões de pessoas trabalham em estabelecimentos familiares, o que corresponde a 77% da população ocupada na agricultura.
Entre os estados brasileiros, a agricultura familiar tem especial destaque no Paraná. Das 374 mil propriedades rurais no estado, 320 mil pertencem a agricultores familiares. Quase 90% dos trabalhadores estão vinculados à agricultura familiar. O Paraná tem uma expectativa de safra de 30 milhões de toneladas de grãos, e mais de 50% do valor bruto da produção vem da agricultura familiar. 1/3 das terras do estado são agricultáveis, e a maior parte está em propriedades com menos de 50 hectares.[16]
Plano Safra da Agricultura FamiliarEditar
Período | Recursos (R$ bilhões) | Taxas de juros (% ao ano) | ||
---|---|---|---|---|
Crédito Pronaf | Total | Mínima | Máxima | |
2012-2013[17] | 18,0 | 22,3 | 0,5 | 4,0 |
2013-2014[18] | 21,0 | 39,0 | 0,5 | 3,5 |
2014-2015[19] | 24,1 (+14,7%) | 0,5 | 3,5 | |
2015-2016[20] | 28,9 (+19,9%) | 0,5 | 5,5 |
Feira nacionalEditar
Em outubro de 2009, realizou-se, no Rio de Janeiro, a VI Feira Nacional da Agricultura Familiar e Reforma Agrária, na Marina da Glória. O evento teve suas quatro primeiras edições em Brasília, sendo esta a segunda no Rio de Janeiro. Seu objetivo é divulgar a importância do setor para a economia brasileira, pois responde por 70% dos alimentos consumidos no país, e por 10% do produto interno bruto.[21]
Em junho de 2010, realizou-se a VII Feira Nacional da Agricultura Familiar e Reforma Agrária - Brasil Rural Contemporâneo, em uma área de 30 mil metros quadrados montada na Concha Acústica do Lago Paranoá, em Brasília. O evento reuniu 650 empreendimentos familiares e mais de 550 toneladas de produtos de todas as regiões do País, além de incluir uma extensa programação cultural.[22]
Ano internacional da agricultura familiarEditar
Em dezembro de 2011, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou 2014 o Ano Internacional da Agricultura Familiar, reconhecendo o papel fundamental desse setor para a segurança alimentar no mundo.[23] A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura foi convidada a facilitar sua implementação, em colaboração com governos, instituições internacionais de desenvolvimento, organizações de agricultores e outras organizações relevantes do sistema das Nações Unidas, bem como organizações não governamentais relevantes.
O Ano Internacional da Agricultura Familiar (AIAF) 2014 visa a destacar o perfil da agricultura familiar e dos pequenos agricultores, focalizando a atenção mundial em seu importante papel na erradicação da fome e pobreza, provisão de segurança alimentar e nutrição, melhora dos meios de subsistência, gestão dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e para o desenvolvimento sustentável, particularmente nas áreas rurais.[24]
Ver tambémEditar
- Agricultura no Brasil
- Agricultura patronal - conceito que se contrapõe ao de agricultura familiar
- Ano Internacional da Agricultura Familiar
- Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
Referências
- ↑ a b O Desafio da Agricultura Familiar Arquivado em 15 de dezembro de 2009, no Wayback Machine.. PORTUGAL, Alberto Duque. in: Embrapa, artigos, 7 de dezembro de 2004 (acessado em setembro de 2009)
- ↑ «O papel da agricultura familiar no combate à fome». Jornal GGN. 20 de maio de 2015. Consultado em 21 de maio de 2015
- ↑ Agricultura familiar predomina no Brasil. Revista Com Ciência, 10 de outubro de 2002.
- ↑ Disponível em http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/redestematicasdeater/agroecologia/contents/photoflow-view/content-view?object_id=899435[ligação inativa].
- ↑ Idem
- ↑ WANDERLEY, Maria N. B. O mundo rural como espaço de vida: reflexões sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e ruralidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009. p. 15.
- ↑ Disponível em http://r1.ufrrj.br/esa/art/200310-042-061.pdf Arquivado em 17 de abril de 2012, no Wayback Machine..
- ↑ IBGE, 2009
- ↑ Disponível em http://r1.ufrrj.br/cpda/wp-content/uploads/2012/07/tese_everton_picolotto_2011.pdf Arquivado em 26 de novembro de 2013, no Wayback Machine..
- ↑ PICOLOTTO, E. L. As mãos que alimentam a nação: agricultura familiar, sindicalismo e política. Tese (Doutorado), CPDA/UFRJ, Rio de Janeiro, 2011.
- ↑ «Notas técnicas ao Censo Agropecuário de 2006» (PDF). Consultado em 5 de outubro de 2010. Arquivado do original (PDF) em 1 de agosto de 2010
- ↑ Agricultura familiar produz 70% de alimentos do País mas ainda sofre na comercialização. Portal Brasil, 27 de julho de 2011.
- ↑ a b Hoffmann, Rodolfo (2014). «A agricultura familiar produz 70% dos alimentos consumidos no Brasil?». Segurança Alimentar e Nutricional. Consultado em 9 de agosto de 2017
- ↑ Gonçalves, M.P.G.; Mousinho, F.E.P. «Efeito de Lâminas de Irrigação sobre o Crescimento de Mudas de Maracujá». Anais do II Inovagri International Meeting - 2014. doi:10.12702/ii.inovagri.2014-a176
- ↑ Censo Agropecuário - Agricultura Familiar 2006 Agricultura familiar ocupava 84,4% dos estabelecimentos agropecuários. IBGE. Comunicação Social, 30 de setembro de 2009
- ↑ Com sua forte agricultura familiar, Paraná espera o biodiesel Carta Maior, 20 de abril de 2008.
- ↑ «Plano Safra da Agricultura Familiar 2012/2013» (PDF) (pdf). Ministério do Desenvolvimento Agrário. 5 de julho de 2012
- ↑ «Plano Safra da Agricultura Familiar 2013/2014 terá R$ 39 bilhões». Blog do Planalto. 6 de junho de 2013. Consultado em 23 de junho de 2015. Arquivado do original em 23 de junho de 2015
- ↑ «Dilma lança plano para agricultura família que destinará R$ 24,1 bilhões». G1. 26 de maio de 2014
- ↑ «Plano Safra da Agricultura Familiar terá R$ 28,9 bilhões para pequeno produtor». EBC. 22 de junho de 2015
- ↑ Notícia Arquivado em 23 de maio de 2011, no Wayback Machine., Canal Rural, de 15 de setembro de 2009 (acessada em 30 de setembro de 2009)
- ↑ VII Feira Nacional da Agricultura Familiar e Reforma Agrária chega à orla do Paranoá.
- ↑ «2014: Ano Internacional da Agricultura Familiar». ADITAL. Consultado em 14 de abril de 2012 [ligação inativa]
- ↑ «2014: Ano Internacional da Agricultura Familiar». Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. 15 de novembro de 2013. Consultado em 15 de novembro de 2013
Ligações externasEditar
- Agricultura familiar, por Geraldo Sant’Ana de Camargo Barros. Julho, 2006.
- Políticas públicas para a agricultura familiar: entre avanços e desafios, por Catia Grisa e Valdemar Wesz Junior. Carta Maior, 25 de setembro de 2010.
- PICOLOTTO,E. L. As mãos que alimentam a nação: agricultura familiar, sindicalismo e política. Tese (Doutorado), CPDA/