Basílica de Damous El Karita

A basílica de Damous El Karita é uma basílica cristã em ruínas situada no perímetro do sítio arqueológico de Cartago, na Tunísia. Data da época bizantina e situa-se na colina de Odéon. Trata-se do complexo arquitetónico cristão mais importante conhecido no seio da capital da África proconsular. Segundo Noël Duval, é um dos «mais célebres monumentos paleocristãos» mas também um dos «mais maltratados e desconhecidos».[1] O complexo arquitetónico constituiu um dos conjuntos de culto cristão mais consequentes da África do Norte da antiguidade e da Alta Idade Média. O conjunto comportava duas igrejas, pelo menos um martírio, Hipogeus e uma rotonda subterrânea.

Basílica de Damous El Karita
Basílica de Damous El Karita
Basílica de Damous El Karita vista do Oeste.
Tipo
  • early Christian basilica
Estilo dominante bizantino
Início da construção século III
Religião Cristianismo
Geografia
País  Tunísia
Região arredores de Tunes
Coordenadas 36° 51' 42" N 10° 19' 52" E

Trata-se do primeiro monumento cristão descoberto em Cartago, mas para Noël Duval o conjunto foi sujeito a escavações «incompletas e em condições desastrosas».[2] A escavação do complexo nunca foi completada; estudos parciais ainda tiveram lugar na rotonda no final dos anos de 1990 sob a direção de Heimo Dolenz. A importância do complexo mostrou aos especialistas que o local não era apenas um centro funerário mas também um lugar maior de peregrinaçao ligado a cultos de santos, e a importantes festas religiosas.

A identificação da basílica é complexa mas, fruto dos últimos trabalhos, alguns autores aceitam a identificação conhecida de fontes literárias como a basílica Fausti.

Etimologia editar

Supõe-se que o nome atual seja de uma deformação do latim domus caritatis (casa da caridade).[3]

História editar

História antiga editar

A comunidade cristã em Cartago desenvolveu-se desde o Século III, segundo fontes literárias como Tertuliano e São Cipriano, e os locais de culto identificados são datáveis do Século IV.[4] Segundo Duval, a Sé de Cartago parece ter sido organizada em regiões eclesiásticas, geridas por um arcediago sob a autoridade do bispo de cada uma das regiões. Cada uma possuia um batistério e anexos.[5] A organização em regiões em Cartago é uma cópia da organização da Igreja em Roma, com sete regiões eclesiásticas desde metade do século III. Seis regiões são conhecidas.[6] Azedine Beschaouch indica sete regiões para a metrópole africana.[7]

Os primeiros indícios arqueológicos da presença cristã em Cartago remontam ao século III, com numerosos túmulos e vestígios materiais entre os anos 390-410.[8] Os cemitérios cristãos (areae) datam do fim do século II e início do século III; instala-se uma devoção nos locais devido à suposta presença de relíquias de mártires.[9] As fontes literárias falam também de igrejas acolhendo concílios a partir do final do século IV. Cerca de trinta construções ligadas ao culto cristão foram descobertas desde o início da arqueologia cartaginesa..[10]

A identificação dos locais de culto conhecidos coloca alguns problemas.[4] A catedral de Cartago não é conhecida e Damous El Karita não a é mesmo se, segundo Duval, é «certamente o santuário mais venerado no meio do principal cemitério cristão».[2] Marc Griesheimer, após os trabalhos de 1996-1997 de Heimo Dolenz, notou a presença de um batistério e da sua localização, propondo identificá-lo como basilica Fausti, citado em textos literários (Historia persecutionis Wandalorum de Victor de Vita) e pelo seu papel na história eclesiástica de Cartago: foi local de um concílio (em 419 e em 421) e de uma reunião de bispos em 418. Pelo seu tamanho, terá sido o local de acolhimento de prisioneiros capturados durante o Saque de Roma de Genserico.[11][12] As primeiras buscas encontram sob o trifolium um columbarium interior contendo ainda urnas,[13] assim como citernas da época romana.[14] Fragmentos de mármore de época pagã também foram identificados por Delattre, particularmente epitáfios.[15]

 
Vista geral da basílica

O complexo basilical situa-se na proximidade de uma das portas da antiga muralha, mais precisamente a 150 metros do muro de Teodoro, construído em 425,[9] e na borda setentrional da colina de odéon.[16] Documentos antigos permitiram identificar as diversas fases da construção, sendo que a primeira fase aparente datar do final do século IV.[17] Os elementos arquitetônicos e as esculturas encontradas durante as diversas campanhas de arqueologia não são inferiores ao século V (segundo Duval), e testemunhariam um estado tardio do edifício.[18] O complexo mudou de tamanho diversas vezes, aumentado e depois diminuido[8] por razões que se desconhecem. O apogeu da construção aparenta ter sido no século VI[19] mesmo se o complexo aparente ter tido uma história complexa.[2] Noël Duval propõe três etapas na evolução da construção: num primeiro tempo, a construção terá sido orientada a sudeste (abside)-nordeste (porche). A grande igreja terá sido edificada após uma mudança de eixo antes da construção tardia retomar a orientação original.[20] O mesmo autor não exclui uma interpretação diferente, na qual a construção terá tido uma abside lateral, como já se encontraram em outras localizações arqueológicas tais como em Makthar.[21]

Redescoberta do sítio editar

 
Sarcófagos durante as escavações levadas a cabo por Alfred Louis Delattre

A basílica é descoberta em 1878 pelo padre Alfred Louis Delattre, um dos pioneiros da arqueologia cartaginesa. Essa descoberta coloca uma missão arqueológica permanente em Cartago, sob pedido do Cardeal Lavigerie.[22] As escavações são no entanto feitas de forma irregular por razões económicas.[22] As primeiras escavações são objeto de breves relatórios, em conformidade com a metodologia arqueológica dessa época, e a estratigrafia é muito pouco explícita. O objetivo passa então na recuperação das inscrições funerárias cristãs, tendo sido encontrados fragmentos aos milhares: desde 1892 foram contados 14000 fragmentos.[23] Os epitáfios raramente estão intactos. Em 1911 Delattre menciona inscrições que mencionam um bispo, outra um padre, e outras mencionam religiosas e a maior parte é relativa a fiéis do local.[24]

Um dos hipogeus encontrados é reproduzido durante a exposição universal de Paris de 1900.[25]

Várias centenas de fragmentos de baixo-relevo, provenientes principalmente de sarcófagos, são mencionadas por Delattre como ricas iconograficamente. Evoca assim uma Anunciação encontrada em 1889 que pertencia a baixos-relevos decorativos.[26] Assinala também que as lápidas mais importantes medem dois metros por sessenta centímetros e foram trabalhadas em pedra local[27]. Evoca um quadrante solar côncave com o monograma no centro.[28] Entre os baixo-relevos, alguns estão fragmentados e outros figuram personagens mutiladas intencionalmente (segundo Delattre).[29] Entre os mais belos floretos da escultura paleocristã figuram dois relevos da «adoração dos pastores e dos magos», encontrados nas escavações.[7]

Escavações do século XX editar

 
Antiga carta postal durante as escavações das cellæ, em 1911
 
Basílica numa antiga carta postal, vista sobre o cemitério católico
 
Complexo visto de avião (c. 1950).

Entre as descobertas de 1911, Delattre relata a possibilidade de existir uma outra basílica, retangular e dividida em três naves.[30] Durante as escavações do hypogeu em arcosolia, encontra vestígios de baixo-relevos, lâmpadas a óleo com desenhos cristãos, vasos de vidro assim como uma mão abençoando.[31]

Um cemitério católico foi colocado ao nordeste da construção[32] para abrigar as sepulturas dos Pais Brancos (Missionários de África).

O sítio foi intensamente escavado, e foi objeto de «restaurações» intempestivas feitas pelo Congresso Eucarístico de 1930; estas são semelhantes às efetuadas na basílica de São Cipriano, localizada na colina dita de Santa Mónica.[33]

Nos anos de 1960, Alexandre Lézine estuda a rotonda da basílica.[34] Em 1973-1974, no quadro de uma campanha internacional da UNESCO «para salvar Cartago», a rotonda de Damous el Karita foi objeto de estudo por parte de uma equipa búlgara chefiada por Stephen Boyadjiev.[35] As equipas propuseram então restituições dessa zona do complexo.[2]

Em 1996-1997, anexos da basílica foram estudados por uma equipa tuniso-austríaca e por Heimo Dolenz. A pesquisa do complexo permanece incompleta e as conclusões de Delattre sobre a evolução da construção são afastadas por Noël Duval.[36]

Ver também editar

Notas editar

Referências

  1. Noël Duval, «Études d'architecture chrétienne nord-africaine », Mélanges de l'École française de Rome. Antiquité, vol. 84, n°84-2, 1972, pág. 1107-1108
  2. a b c d Noël Duval, « Les monuments de culte chrétien et les cimetières [de Carthage] », Encyclopédie berbère, tome XII, 1993, pág. 1808
  3. André Laronde e Jean-Claude Golvin, L’Afrique antique, ed. Taillandier, Paris, 2001, pág. 176
  4. a b Noël Duval, « Les monuments de culte chrétien et les cimetières [de Carthage] », pág. 1805
  5. Noël Duval, « Histoire ecclésiastique [de Carthage] », Encyclopédie berbère, tome XII, 1993, pág. 1804
  6. Paul Corbier e Marc Griesheimer, L’Afrique romaine. 146 av. J.-C. - 439 ap. J.-C., ed. Ellipses, Paris, 2005, pág. 277
  7. a b Azedine Beschaouch, La légende de Carthage, coll. Découvertes Gallimard (n° 172), ed. Gallimard, Paris, 1993, pág. 119
  8. a b Yann Le Bohec, Histoire de l’Afrique romaine, ed. Picard, Paris, 2005, pág. 221
  9. a b Paul Corbier e Marc Griesheimer, L’Afrique romaine. 146 av. J.-C. - 439 ap. J.-C., ed. Ellipses, Paris, 2005, pág. 279
  10. Paul Corbier e Marc Griesheimer, L’Afrique romaine. 146 av. J.-C. - 439 ap. J.-C., ed. Ellipses, Paris, 2005, pág 275
  11. Victor de Vita, Historia persecutionis Wandalorum, I, 25
  12. Paul Corbier e Marc Griesheimer, L’Afrique romaine. 146 av. J.-C. - 439 ap. J.-C., ed. Ellipses, Paris, 2005, pág. 280
  13. Alfred Louis Delattre, La Basilique de Damous El-Karita à Carthage, éd. Adolphe Braham, Constantine, 1892, pág. 7
  14. Alfred Louis Delattre, La Basilique de Damous El-Karita à Carthage, pág. 8
  15. Alfred Louis Delattre, « Les dépendances de la Basilique de Damous-el-Karita à Carthage », CRAI, vol. 55, n°7, 1911, pág. 575
  16. Noël Duval, « Études d'architecture chrétienne nord-africaine », pág. 1109
  17. Liliane Ennabli, Carthage, une métropole chrétienne du IVe à la fin du VIIe siècle, ed. CNRS, Paris, 1997, pág. 123-126
  18. Noël Duval, « Études d'architecture chrétienne nord-africaine », p. 1113
  19. É a construção dessa época que foi objeto de uma restituição de Jean-Claude Golvin em André Laronde e Jean-Claude Golvin, L’Afrique antique, ed. Taillandier, Paris, 2001, pág. 177.
  20. Noël Duval, « Études d'architecture chrétienne nord-africaine », pág. 1112
  21. Noël Duval, « Études d'architecture chrétienne nord-africaine », pág. 1112-1113
  22. a b Alfred Louis Delattre, La Basilique de Damous El-Karita à Carthage, pág. 5
  23. Alfred Louis Delattre, La Basilique de Damous El-Karita à Carthage, pág. 10
  24. Alfred Louis Delattre, « Les dépendances de la Basilique de Damous-el-Karita à Carthage », pág. 568
  25. Alfred Louis Delattre, « Les fouilles de Damous-el-Karita », pág. 466
  26. Alfred Louis Delattre, La Basilique de Damous El-Karita à Carthage, pág. 11
  27. Alfred Louis Delattre, La Basilique de Damous El-Karita à Carthage, pág. 16
  28. Alfred Louis Delattre, « Les dépendances de la Basilique de Damous-el-Karita à Carthage », pág. 573
  29. Alfred Louis Delattre, « Les dépendances de la Basilique de Damous-el-Karita à Carthage », pág. 575
  30. Alfred Louis Delattre, « Les dépendances de la Basilique de Damous-el-Karita à Carthage », pág. 566
  31. Alfred Louis Delattre, « Les dépendances de la Basilique de Damous-el-Karita à Carthage », pág. 581
  32. Alfred Louis Delattre, La Basilique de Damous El-Karita à Carthage, pág. 17
  33. Noël Duval, « Études d'architecture chrétienne nord-africaine », pág. 1108
  34. Noël Duval, « Études d'architecture chrétienne nord-africaine », pág. 1114
  35. Collectif, Pour sauver Carthage. Exploration et conservation de la cité punique, romaine et byzantine, ed. Unesco/INAA, 1992, p. 98
  36. Noël Duval, « Études d'architecture chrétienne nord-africaine », pág. 1108-1109
 
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