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'''O Guardador de Rebanhos''' é um conjunto de [[poema]]s (49 no total) escritos pelo [[heterônimo]] [[Alberto Caeiro]] de [[Fernando Pessoa]]. Os poemas foram escritos em [[1914]] e Fernando Pessoa atribiu sua gênses a uma única noite de insônia de Caeiro. Foram publicados em [[1925]] nas 4ª e 5ª edições da revista ''Athena'', com exceção do 8º poema do conjunto que só viria a ser publicado em [[1931]], na revista ''Presença''.
 
 
<center>
:I
 
Eu nunca guardei rebanhos,
 
Mas é como se os guardasse.
 
Minha alma é como um pastor,
 
Conhece o vento e
 
o sol
 
E anda pela mão das Estações
 
A seguir e a olhar.
 
Toda a paz da Natureza sem gente
 
Vem sentar-se a meu lado.
 
Mas eu fico triste como um pôr do Sol
 
Para a nossa imaginação,
 
Quando esfria no fundo da planície
 
É se sente a noite entrada
 
Como uma borboleta pela janela.
 
Mas a minha tristeza é sossego
 
Porque é natural e justa
 
E é o que deve estar na alma
 
Quando já pensa que existe
 
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
 
Como um ruído de chocalhos
 
Para além da curva da estrada,
 
Os meus pensamentos são contentes.
 
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
 
Porque, se o não soubesse,
 
Em vez de serem contentes e tristes,
 
Seriam alegres e contentes.
 
Pensar incomoda como andar à chuva
 
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
 
Não tenho ambições nem desejos
 
Ser poeta não é uma ambição minha
 
É a minha maneira de estar sozinho.
 
E se desejo às vezes
 
Por imaginar, ser cordeirinho
 
(Ou ser o rebanho todo
 
Para andar espalhado por toda a encosta
 
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
 
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do Sol,
 
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
 
E corre um silêncio pela erva fora.
 
Quando me sento a escrever versos
 
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
 
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
 
Sinto um cajado nas mãos
 
E vejo um recorte de mim
 
No cimo dum outeiro,
 
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
 
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
 
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
 
E quer fingir que compreende.
 
Saúdo todos os que me lerem,
 
Tirando-lhes o chapéu largo
 
Quando me veem à minha porta
 
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
 
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
 
E chuva, quando a chuva é precisa,
 
E que as suas casas tenham
 
Ao pé duma janela aberta
 
Uma cadeira predilecta
 
Onde se sentem, lendo os meus versos.
 
E ao lerem os meus versos pensem
 
Que sou qualquer cousa natural —
 
Por exemplo, a árvore antiga
 
À sombra da qual quando crianças
 
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
 
E limpavam o suor da testa quente
 
Com a manga do bibe riscado.
 
08/03/1914
 
II
 
O meu olhar é nítido como um girassol.
 
Tenho o costume de andar pelas estradas
 
Olhando para a direita e para a esquerda,
 
E de vez em quando olhando para trás…
 
E o que vejo a cada momento
 
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
 
E eu sei dar por isso muito bem…
 
Sei ter o pasmo essencial
 
Que tem uma criança se, ao nascer,
 
Reparasse que nascera deveras…
 
Sinto-me nascido a cada momento
 
Para a eterna novidade do mundo…
 
Creio no mundo como num malmequer,
 
Porque o vejo. Mas não penso nele
 
Porque pensar é não compreender…
 
O Mundo não se fez para pensarmos nele
 
(Pensar é estar doente dos olhos)
 
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…
 
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
 
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
 
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
 
Porque quem ama nunca sabe o que ama
 
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
 
Amar é a eterna inocência,
 
E a única inocência é não pensar…
 
08/03/1914
 
III
 
Ao entardecer, debruçado pela janela,
 
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
 
Leio até me arderem os olhos
 
O livro de Cesário Verde.
 
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
 
Que andava preso em liberdade pela cidade.
 
Mas o modo como olhava para as casas,
 
E o modo como reparava nas ruas,
 
E a maneira como dava pelas cousas,
 
É o de quem olha para árvores,
 
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
 
E anda a reparar nas flores que há pelos campos…
 
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
 
Que ele nunca disse bem que tinha,
 
Mas andava na cidade como quem anda no campo
 
E triste como esmagar flores em livros
 
E pôr plantas em jarros…
 
IV
 
Esta tarde a trovoada caiu
 
Pelas encostas do céu abaixo
 
Como um pedregulho enorme…
 
Como alguém que duma janela alta
 
Sacode uma toalha de mesa,
 
E as migalhas, por caírem todas juntas,
 
Fazem algum barulho ao cair,
 
A chuva chovia do céu
 
E enegreceu os caminhos…
 
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
 
E abanavam o espaço
 
Como uma grande cabeça que diz que não,
 
Não sei porquê — eu não tinha medo —
 
Pus-me a rezar a Santa Bárbara
 
Como se eu fosse a velha tia de alguém…
 
Ah! é que rezando a Santa Bárbara
 
Eu sentia-me ainda mais simples
 
Do que julgo que sou…
 
Sentia-me familiar e caseiro
 
E tendo passado a vida
 
Tranquilamente, como o muro do quintal;
 
Tendo ideias e sentimentos por os ter
 
Como uma flor tem perfume e cor…
 
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara…
 
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
 
(Quem crê que há Santa Bárbara,
 
Julgará que ela é gente e visível
 
Ou que julgará dela?)
 
(Que artifício! Que sabem
 
As flores, as árvores, os rebanhos,
 
De Santa Bárbara?… Um ramo de árvore,
 
Se pensasse, nunca podia
 
Construir santos nem anjos…
 
Poderia julgar que o sol
 
É Deus, e que a trovoada
 
É uma quantidade de gente
 
Zangada por cima de nós…
 
Ali, como os mais simples dos homens
 
São doentes e confusos e estúpidos
 
Ao pé da clara simplicidade
 
E saúde em existir
 
Das árvores e das plantas!)
 
E eu, pensando em tudo isto,
 
Fiquei outra vez menos feliz…
 
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
 
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
 
E nem sequer de noite chega…
 
V
 
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
 
O que penso eu do mundo?
 
Sei lá o que penso do mundo!
 
Se eu adoecesse pensaria nisso.
 
Que ideia tenho eu das cousas?
 
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
 
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
 
E sobre a criação do Mundo?
 
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
 
E não pensar. É correr as cortinas
 
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
 
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
 
O único mistério é haver quem pense no mistério.
 
Quem está ao sol e fecha os olhos,
 
Começa a não saber o que é o sol
 
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
 
Mas abre os olhos e vê o sol,
 
E já não pode pensar em nada,
 
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
 
De todos os filósofos e de todos os poetas.
 
A luz do sol não sabe o que faz
 
E por isso não erra e é comum e boa.
 
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
 
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
 
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
 
A nós, que não sabemos dar por elas.
 
Mas que melhor metafísica que a delas,
 
Que é a de não saber para que vivem
 
Nem saber que o não sabem?
 
«Constituição íntima das cousas»…
 
«Sentido íntimo do Universo»…
 
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
 
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
 
É como pensar em razões e fins
 
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
 
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
 
Pensar no sentido íntimo das cousas
 
É acrescentado, como pensar na saúde
 
Ou levar um copo à água das fontes.
 
O único sentido íntimo das cousas
 
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
 
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
 
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
 
Sem dúvida que viria falar comigo
 
E entraria pela minha porta dentro
 
Dizendo-me, Aqui estou!
 
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
 
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
 
Não compreende quem fala delas
 
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
 
Mas se Deus é as flores e as árvores
 
E os montes e sol e o luar,
 
Então acredito nele,
 
Então acredito nele a toda a hora,
 
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
 
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
 
Mas se Deus é as árvores e as flores
 
E os montes e o luar e o sol,
 
Para que lhe chamo eu Deus?
 
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
 
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
 
Sol e luar e flores e árvores e montes,
 
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
 
E luar e sol e flores,
 
É que ele quer que eu o conheça
 
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
 
E por isso eu obedeço-lhe,
 
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
 
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
 
Como quem abre os olhos e vê,
 
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
 
E amo-o sem pensar nele,
 
E penso-o vendo e ouvindo,
 
E ando com ele a toda a hora.
 
VI
 
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
 
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
 
Por isso se nos não mostrou…
 
Sejamos simples e calmos,
 
Como os regatos e as árvores,
 
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
 
Belos como as árvores e os regatos,
 
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
 
E um rio aonde ir ter quando acabemos!…
 
VII
 
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo…
 
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
 
Porque eu sou do tamanho do que vejo
 
E não do tamanho da minha altura…
 
Nas cidades a vida é mais pequena
 
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
 
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
 
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
 
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
 
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
 
VIII
 
Num meio-dia de fim de primavera
 
Tive um sonho como uma fotografia.
 
Vi Jesus Cristo descer à terra.
 
Veio pela encosta de um monte
 
Tornado outra vez menino,
 
A correr e a rolar-se pela erva
 
E a arrancar flores para as deitar fora
 
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
 
Tinha fugido do céu.
 
Era nosso demais para fingir
 
De segunda pessoa da Trindade.
 
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
 
Com flores e árvores e pedras.
 
No céu tinha que estar sempre sério
 
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
 
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
 
Com uma coroa toda à roda de espinhos
 
E os pés espetados por um prego com cabeça,
 
E até com um trapo à roda da cintura
 
Como os pretos nas ilustrações.
 
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
 
Como as outras crianças.
 
O seu pai era duas pessoas…
 
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
 
E que não era pai dele;
 
E o outro pai era uma pomba estúpida,
 
A única pomba feia do mundo
 
Porque não era do mundo nem era pomba.
 
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
 
Não era mulher: era uma mala
 
Em que ele tinha vindo do céu.
 
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
 
E nunca tivera pai para amar com respeito,
 
Pregasse a bondade e a justiça!
 
Um dia que Deus estava a dormir
 
E o Espírito Santo andava a voar,
 
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
 
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
 
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
 
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
 
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
 
E serve de modelo às outras.
 
Depois fugiu para o sol
 
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
 
Hoje vive na minha aldeia comigo.
 
É uma criança bonita de riso e natural.
 
Limpa o nariz ao braço direito,
 
Chapinha nas poças de água,
 
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
 
Atira pedras aos burros,
 
Rouba a fruta dos pomares
 
E foge a chorar e a gritar dos cães.
 
E, porque sabe que elas não gostam
 
E que toda a gente acha graça,
 
Corre atrás das raparigas
 
Que vão em ranchos pelas estradas
 
Com as bilhas às cabeças
 
E levanta-lhes as saias.
 
A mim ensinou-me tudo.
 
Ensinou-me a olhar para as cousas.
 
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
 
Mostra-me como as pedras são engraçadas
 
Quando a gente as tem na mão
 
E olha devagar para elas.
 
Diz-me muito mal de Deus.
 
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
 
Sempre a escarrar no chão
 
E a dizer indecências.
 
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
 
E o Espírito Santo coça-se com o bico
 
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
 
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
 
Diz-me que Deus não percebe nada
 
Das coisas que criou —
 
«Se é que ele as criou, do que duvido» —
 
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
 
Mas os seres não cantam nada.
 
Se cantassem seriam cantores.
 
Os seres existem e mais nada,
 
E por isso se chamam seres.»
 
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
 
O Menino Jesus adormece nos meus braços
 
E eu levo-o ao colo para casa.
 
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
 
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
 
Ele é o humano que é natural,
 
Ele é o divino que sorri e que brinca.
 
E por isso é que eu sei com toda a certeza
 
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
 
E a criança tão humana que é divina
 
É esta minha quotidiana vida de poeta,
 
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
 
E que o meu mínimo olhar
 
Me enche de sensação,
 
E o mais pequeno som, seja do que for,
 
Parece falar comigo.
 
A Criança Nova que habita onde vivo
 
Dá-me uma mão a mim
 
E a outra a tudo que existe
 
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
 
Saltando e cantando e rindo
 
E gozando o nosso segredo comum
 
Que é o de saber por toda a parte
 
Que não há mistério no mundo
 
E que tudo vale a pena.
 
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
 
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
 
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
 
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
 
Damo-nos tão bem um com o outro
 
Na companhia de tudo
 
Que nunca pensamos um no outro,
 
Mas vivemos juntos e dois
 
Com um acordo íntimo
 
Como a mão direita e a esquerda.
 
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
 
No degrau da porta de casa,
 
Graves como convém a um deus e a um poeta,
 
E como se cada pedra
 
Fosse todo um universo
 
E fosse por isso um grande perigo para ela
 
Deixá-la cair no chão.
 
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
 
E ele sorri, porque tudo é incrível.
 
Ri dos reis e dos que não são reis,
 
E tem pena de ouvir falar das guerras,
 
E dos comércios, e dos navios
 
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
 
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
 
Que uma flor tem ao florescer
 
E que anda com a luz do sol
 
A variar os montes e os vales
 
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
 
Depois ele adormece e eu deito-o.
 
Levo-o ao colo para dentro de casa
 
E deito-o, despindo-o lentamente
 
E como seguindo um ritual muito limpo
 
E todo materno até ele estar nu.
 
Ele dorme dentro da minha alma
 
E às vezes acorda de noite
 
E brinca com os meus sonhos.
 
Vira uns de pernas para o ar,
 
Põe uns em cima dos outros
 
E bate as palmas sozinho
 
Sorrindo para o meu sono.
 
Quando eu morrer, filhinho,
 
Seja eu a criança, o mais pequeno.
 
Pega-me tu ao colo
 
E leva-me para dentro da tua casa.
 
Despe o meu ser cansado e humano
 
E deita-me na tua cama.
 
E conta-me histórias, caso eu acorde,
 
Para eu tornar a adormecer.
 
E dá-me sonhos teus para eu brincar
 
Até que nasça qualquer dia
 
Que tu sabes qual é.
 
Esta é a história do meu Menino Jesus.
 
Por que razão que se perceba
 
Não há-de ser ela mais verdadeira
 
Que tudo quanto os filósofos pensam
 
E tudo quanto as religiões ensinam?
 
IX
 
Sou um guardador de rebanhos.
 
O rebanho é os meus pensamentos
 
E os meus pensamentos são todos sensações.
 
Penso com os olhos e com os ouvidos
 
E com as mãos e os pés
 
E com o nariz e a boca.
 
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
 
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
 
Por isso quando num dia de calor
 
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
 
E me deito ao comprido na erva,
 
E fecho os olhos quentes,
 
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
 
Sei a verdade e sou feliz.
 
X
«Olá, guardador de rebanhos,
 
Aí à beira da estrada,
 
Que te diz o vento que passa ?»
 
«Que é, vento, e que passa,
 
E que já passou antes,
 
E que passará depois.
 
E a ti o que te diz ?»
 
«Muita cousa mais do que isso.
 
Fala-me de muitas outras cousas.
 
De memórias e de saudades
 
E de cousas que nunca foram.»
 
«Nunca ouviste passar o vento.
 
O vento só fala do vento.
 
O que lhe ouviste foi mentira,
 
E a mentira está em ti.»
 
XI
 
Aquela senhora tem um piano
 
Que é agradável mas não é o correr dos rios
 
Nem o murmúrio que as árvores fazem…
 
Para que é preciso ter um piano?
 
O melhor é ter ouvidos
 
E amar a Natureza.
 
XII
 
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
 
E cantavam de amor literariamente.
 
(Depois — eu nunca li Virgílio.
 
Para que o havia eu de ler?)
 
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
 
E a Natureza é bela e antiga.
 
XIII
 
Leve, leve, muito leve,
 
Um vento muito leve passa,
 
E vai-se, sempre muito leve.
 
E eu não sei o que penso
 
Nem procuro sabê-lo.
 
XIV
 
Não me importo com as rimas. Raras vezes
 
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra,
 
Penso e escrevo como as flores têm cor
 
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
 
Porque me falta a simplicidade divina
 
De ser todo só o meu exterior.
 
Olho e comovo-me,
 
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
 
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento…
 
XV
 
As quatro canções que seguem
 
Separam-se de tudo o que eu penso,
 
Mentem a tudo o que eu sinto,
 
São do contrário do que eu sou…
 
Escrevi-as estando doente
 
E por isso elas são naturais
 
E concordam com aquilo que sinto,
 
Concordam com aquilo com que não concordam…
 
Estando doente devo pensar o contrário
 
Do que penso quando estou são.
 
(Senão não estaria doente)
 
Devo sentir o contrário do que sinto
 
Quando sou eu na saúde,
 
Devo mentir à minha natureza
 
De criatura que sente de certa maneira…
 
Devo ser todo doente — ideias e tudo.
 
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.
 
Por isso essas canções que me renegam
 
Não são capazes de me renegar
 
E são a paisagem da minha alma de noite,
 
A mesma ao contrário…
 
XVI
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
 
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
 
E que para de onde veio volta depois
 
Quase à noitinha pela mesma estrada.
 
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas…
 
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…
 
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
 
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
 
XVII
 
No meu prato que mistura de Natureza!
 
As minhas irmãs as plantas,
 
As companheiras das fontes, as santas
 
A quem ninguém reza…
 
E cortam-as e vêm à nossa mesa
 
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
 
Que chegam com correias tendo mantas
 
Pedem «Salada», descuidosos…,
 
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
 
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
 
As primeiras verdes palavras que ela tem,
 
As primeiras cousas vivas e irisantes
 
Que Noé viu
 
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
 
Verde e alagado surgiu
 
E no ar por onde a pomba apareceu
 
O arco-íris se esbateu…
 
XVIII
 
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
 
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
 
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
 
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…
 
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
 
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo…
 
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
 
E que ele me batesse e me estimasse…
 
Antes isso que ser o que atravessa a vida
 
Olhando para trás de si e tendo pena…
 
XIX
 
O luar quando bate na relva
 
Não sei que cousa me lembra…
 
Lembra-me a voz da criada velha
 
Contando-me contos de fadas.
 
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
 
Andava à noite nas estradas
 
Socorrendo as crianças maltratadas…
 
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
 
Para que bate o luar na relva?
 
XX
 
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
 
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
 
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
 
O Tejo tem grandes navios
 
E navega nele ainda,
 
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
 
A memória das naus.
 
O Tejo desce de Espanha
 
E o Tejo entra no mar em Portugal.
 
Toda a gente sabe isso.
 
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
 
E para onde ele vai
 
E donde ele vem.
 
E por isso, porque pertence a menos gente,
 
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
 
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
 
Para além do Tejo há a América
 
E a fortuna daqueles que a encontram.
 
Ninguém nunca pensou no que há para além
 
Do rio da minha aldeia.
 
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
 
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
 
XXI
 
Se eu pudesse trincar a terra toda
 
E sentir-lhe um paladar,
 
Seria mais feliz um momento…
 
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
 
É preciso ser de vez em quando infeliz
 
Para se poder ser natural…
 
Nem tudo é dias de sol,
 
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
 
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
 
Naturalmente, como quem não estranha
 
Que haja montanhas e planícies
 
E que haja rochedos e erva…
 
O que é preciso é ser-se natural e calmo
 
Na felicidade ou na infelicidade,
 
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…
 
XXII
Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
 
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
 
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
 
Na cara dos meus sentidos,
 
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
 
Não sei bem como nem o quê…
 
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
 
Quem me disse que havia que perceber?
 
Quando o Verão me passa pela cara
 
A mão leve e quente da sua brisa,
 
Só tenho que sentir agrado porque é brisa
 
Ou que sentir desagrado porque é quente,
 
E de qualquer maneira que eu o sinta,
 
Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo…
 
 
XXIII
 
O meu olhar azul como o céu
 
É calmo como a água ao sol.
 
É assim, azul e calmo,
 
Porque não interroga nem se espanta…
 
Se eu interrogasse e me espantasse
 
Não nasciam flores novas nos prados
 
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo.
 
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
 
E se o sol mudasse para mais belo,
 
Eu sentiria menos flores no prado
 
E achava mais feio o sol…
 
Porque tudo é como é e assim é que é,
 
E eu aceito, e nem agradeço.
 
Para não parecer que penso nisso…)
 
XXIV
 
O que nós vemos das cousas são as cousas.
 
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
 
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
 
Se ver e ouvir são ver e ouvir ?
 
O essencial é saber ver,
 
Saber ver sem estar a pensar,
 
Saber ver quando se vê,
 
E nem pensar quando se vê
 
Nem ver quando se pensa.
 
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
 
Isso exige um estudo profundo,
 
Uma aprendizagem de desaprender
 
E uma sequestração na liberdade daquele convento
 
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
 
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
 
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
 
Nem as flores senão flores,
 
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
 
XXV
 
As bolas de sabão que esta criança
 
Se entretém a largar de uma palhinha
 
São translucidamente uma filosofia toda.
 
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
 
Amigas dos olhos como as cousas,
 
São aquilo que são
 
Com uma precisão redondinha e aérea,
 
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
 
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
 
Algumas mal se veem no ar lúcido.
 
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
 
E que só sabemos que passa
 
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
 
E aceita tudo mais nitidamente.
 
13/03/1914
 
XXVI
 
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
 
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
 
Pergunto a mim próprio devagar
 
Por que sequer atribuo eu
 
Beleza às cousas.
 
Uma flor acaso tem beleza?
 
Tem beleza acaso um fruto?
 
Não: têm cor e forma
 
E existência apenas.
 
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
 
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.
 
Não significa nada.
 
Então por que digo eu das cousas: são belas?
 
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver
 
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
 
Perante as cousas,
 
Perante as cousas que simplesmente existem.
 
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
 
 
13/03/1914
 
XXVII
 
Só a Natureza é divina, e ela não é divina…
 
Se falo dela como de um ente
 
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
 
Que dá personalidade às cousas,
 
E impõe nome às cousas.
 
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
 
Existem, e o céu é grande a terra larga,
 
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado…
 
Bendito seja eu por tudo quanto sei.
 
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.
 
XXVIII
 
Li hoje quase duas páginas
 
Do livro dum poeta místico,
 
E ri como quem tem chorado muito.
 
Os poetas místicos são filósofos doentes,
 
E os filósofos são homens doidos.
 
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
 
E dizem que as pedras têm alma
 
E que os rios têm êxtases ao luar.
 
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
 
Eram gente;
 
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
 
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
 
Os rios seriam homens doentes.
 
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
 
Para falar dos sentimentos deles.
 
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
 
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
 
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
 
E que os rios não são senão rios,
 
E que as flores são apenas flores.
 
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
 
E fico contente,
 
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
 
E não a compreendo por dentro
 
Porque a Natureza não tem dentro;
 
Senão não era a Natureza.
 
XXIX
 
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
 
Mudo, mas não mudo muito.
 
A cor das flores não é a mesma ao sol
 
De, que quando uma nuvem passa
 
Ou quando entra a noite
 
E as flores são cor da sombra.
 
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
 
Por isso quando pareço não concordar comigo,
 
Reparem bem para mim:
 
Se estava virado para a direita,
 
Voltei-me agora para a esquerda,
 
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
 
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
 
E aos meus olhos e ouvidos atentos
 
E à minha clara simplicidade de alma…
 
XXX
 
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
 
Sou místico, mas só com o corpo.
 
A minha alma é simples e não pensa.
 
O meu misticismo é não querer saber.
 
É viver e não pensar nisso.
 
Não sei o que é a Natureza: canto-a.
 
Vivo no cimo dum outeiro
 
Numa casa caiada e sozinha,
 
E essa é a minha definição.
 
XXXI
 
Se às vezes digo que as flores sorriem
 
E se eu disser que os rios cantam,
 
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
 
E cantos no correr dos rios…
 
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
 
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
 
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
 
À sua estupidez de sentidos…
 
Não concordo comigo mas absolvo-me,
 
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
 
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
 
Por ela não ser linguagem nenhuma.
 
XXXII
 
Ontem à tarde um homem das cidades
 
Falava à porta da estalagem.
 
Falava comigo também.
 
Falava da justiça e da luta para haver justiça
 
E dos operários que sofrem,
 
E do trabalho constante, e dos que têm fome
 
E dos ricos, que só têm costas para isso.
 
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
 
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
 
O ódio que ele sentia, e a compaixão
 
Que ele dizia que sentia.
 
(Mas eu mal o estava ouvindo.
 
Que me importam a mim os homens
 
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
 
Sejam como eu — não sofrerão.
 
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos, uns com os outros,
 
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
 
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
 
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
 
Eu no que estava pensando
 
Quando o amigo de gente falava
 
(E isso me comoveu até às lágrimas),
 
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
 
A esse entardecer
 
Não parecia os sinos duma capela pequenina
 
A que fossem à missa as flores e os regatos
 
E as almas simples como a minha.
 
(Louvado seja Deus que não sou bom,
 
E tenho o egoísmo natural das flores
 
E dos rios que seguem o seu caminho
 
Preocupados sem o saber
 
Só com o florir e ir correndo.
 
É essa a única missão no Mundo,
 
Essa — existir claramente,
 
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)
 
E o homem calara-se, olhando o poente.
 
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?
 
XXXIII
 
Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
 
Parecem ter medo da polícia…
 
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
 
E têm o mesmo sorriso antigo
 
Que tiveram para o Primeiro olhar do primeiro homem
 
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
 
Para ver se elas falavam…
 
XXXIV
 
Acho tão natural que não se pense
 
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
 
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
 
Que tem que ver com haver gente que pensa…
 
Que pensará o meu muro da minha sombra?
 
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
 
A perguntar-me cousas…
 
E então desagrado-me, e incomodo-me
 
Como se desse por mim com um pé dormente…
 
Que pensará isto de aquilo?
 
Nada pensa nada.
 
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
 
Se ela a tiver, que a tenha…
 
Que me importa isso a mim?
 
Se eu pensasse nessas cousas,
 
Deixaria de ver as árvores e as plantas
 
E deixava de ver a Terra,
 
Para ver só os meus pensamentos…
 
Entristecia e ficava às escuras.
 
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.
 
XXXV
 
O luar através dos altos ramos,
 
Dizem os poetas todos que ele é mais
 
Que o luar através dos altos ramos.
 
Mas para mim, que não sei o que penso,
 
O que o luar através dos altos ramos
 
E, além de ser
 
O luar através dos altos ramos,
 
É não ser mais
 
Que o luar através dos altos ramos.
 
XXXVI
 
E há poetas que são artistas
 
E trabalham nos seus versos
 
Como um carpinteiro nas tábuas!…
 
Que triste não saber florir!
 
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
 
E ver se está bem, e tirar se não está!…
 
Quando a única casa artística é a Terra toda
 
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
 
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
 
E olho para as flores e sorrio…
 
Não sei se elas me compreendem
 
Nem se eu as compreendo a elas,
 
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
 
E na nossa comum divindade
 
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
 
E levar ao colo pelas Estações contentes
 
E deixar que o vento cante para adormecermos
 
E não termos sonhos no nosso sono.
 
XXXVII
 
Como um grande borrão de fogo sujo
 
O sol posto demora-se nas nuvens que ficam.
 
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
 
Deve ser dum comboio longínquo.
 
Neste momento vem-me uma vaga saudade
 
E um vago desejo plácido
 
Que aparece e desaparece.
 
Também às vezes, à flor dos ribeiros,
 
Formam-se bolhas na água
 
Que nascem e se desmancham
 
E não têm sentido nenhum
 
Salvo serem bolhas de água
 
Que nascem e se desmancham.
 
 
XXXVIII
 
Bendito seja o mesmo sol de outras terras
 
Que faz meus irmãos todos os homens
 
Porque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,
 
E nesse puro momento
 
Todo limpo e sensível
 
Regressam lacrimosamente
 
E com um suspiro que mal sentem
 
Ao homem verdadeiro e primitivo
 
Que via o Sol nascer e ainda o não adorava.
 
Porque isso é natural — mais natural
 
Que adorar o ouro e Deus
 
E a arte e a moral…
 
XXXIX
 
O mistério das cousas, onde está ele?
 
Onde está ele que não aparece
 
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
 
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
 
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
 
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
 
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
 
Porque o único sentido oculto das cousas
 
É elas não terem sentido oculto nenhum,
 
É mais estranho do que todas as estranhezas
 
E do que os sonhos de todos os poetas
 
E os pensamentos de todos os filósofos,
 
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
 
E não haja nada que compreender.
 
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
 
As cousas não têm significação: têm existência.
 
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
 
XL
 
Passa uma borboleta por diante de mim
 
E pela primeira vez no Universo eu reparo
 
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
 
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
 
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
 
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
 
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
 
A borboleta é apenas borboleta
 
E a flor é apenas flor.
 
07/05/1914
 
XLI
 
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
 
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
 
Que passa, um momento, uma leve brisa…
 
Mas as árvores permanecem imóveis
 
Em todas as folhas das suas folhas
 
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
 
Tiveram a ilusão do que lhes agradaria…
 
Ah, os sentidos, os doentes que veem e ouvem!
 
Fôssemos nós como devíamos ser
 
E não haveria em nós necessidade de ilusão…
 
Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida
 
E nem repararmos para que há sentidos…
 
Mas graças a Deus que há imperfeição no Mundo
 
Porque a imperfeição é uma cousa,
 
E haver gente que erra é original,
 
E haver gente doente torna o Mundo engraçado.
 
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
 
E deve haver muita cousa
 
Para termos muito que ver e ouvir…
 
07/05/1914
 
XLII
 
Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
 
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
 
Assim é a acção humana pelo mundo fora.
 
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
 
E o sol é sempre pontual todos os dias.
 
07/05/1914
 
XLIII
 
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
 
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
 
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
 
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
 
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
 
A recordação é uma traição à Natureza,
 
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
 
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
 
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!
 
07/05/1914
 
XLIV
 
Acordo de noite subitamente,
 
E o meu relógio ocupa a noite toda.
 
Não sinto a Natureza lá fora.
 
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
 
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
 
Só o relógio prossegue o seu ruído.
 
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa
 
Abafa toda a existência da terra e do céu…
 
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
 
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca
 
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa
 
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
 
É a curiosa sensação de encher a noite enorme
 
Com a sua pequenez…
 
07/05/1914
 
XLV
 
Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
 
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
 
Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.
 
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
 
Que traçam linhas de cousa a cousa,
 
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
 
E desenham paralelos de latitude e longitude
 
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!
 
07/05/1914
 
XLVI
 
Deste modo ou daquele modo,
 
Conforme calha ou não calha,
 
Podendo às vezes dizer o que penso,
 
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
 
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
 
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
 
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
 
Como dar-me o sol de fora.
 
Procuro dizer o que sinto
 
Sem pensar em que o sinto.
 
Procuro encostar as palavras à ideia
 
E não precisar dum corredor
 
Do pensamento para as palavras.
 
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
 
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
 
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
 
Procuro despir-me do que aprendi,
 
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
 
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
 
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
 
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
 
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
 
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
 
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
 
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
 
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
 
Caindo aqui, levantando-me acolá,
 
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
 
Ainda assim, sou alguém.
 
Sou o Descobridor da Natureza.
 
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
 
Trago ao Universo um novo Universo
 
Porque trago ao Universo ele-próprio.
 
Isto sinto e isto escrevo
 
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
 
Que são cinco horas do amanhecer
 
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
 
Por cima do muro do horizonte,
 
Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos
 
Agarrando o cimo do muro
 
Do horizonte cheio de montes baixos.
 
10/05/1914
 
XLVII
 
Num dia excessivamente nítido,
 
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
 
Para nele não trabalhar nada,
 
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
 
O que talvez seja o Grande Segredo,
 
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
 
Vi que não há Natureza,
 
Que Natureza não existe,
 
Que há montes, vales, planícies,
 
Que há árvores, flores, ervas,
 
Que há rios e pedras,
 
Mas que não há um todo a que isso pertença,
 
Que um conjunto real e verdadeiro
 
É uma doença das nossas ideias.
 
A Natureza é partes sem um todo.
 
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
 
Foi isto o que sem pensar nem parar,
 
Acertei que devia ser a verdade
 
Que todos andam a achar e que não acham,
 
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
 
XLVIII
 
Da mais alta janela da minha casa
 
Com um lenço branco digo adeus
 
Aos meus versos que partem para a humanidade.
 
E não estou alegre nem triste.
 
Esse é o destino dos versos.
 
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
 
Porque não posso fazer o contrário
 
Como a flor não pode esconder a cor,
 
Nem o rio esconder que corre,
 
Nem a árvore esconder que dá fruto.
 
Ei-los que vão já longe como que na diligência
 
E eu sem querer sinto pena
 
Como uma dor no corpo.
 
Quem sabe quem os lerá?
 
Quem sabe a que mãos irão?
 
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
 
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
 
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
 
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
 
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
 
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
 
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
 
Passo e fico, como o Universo.
 
XLIX
 
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
 
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
 
E a minha voz contente dá as boas noites.
 
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
 
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
 
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
 
A tarde suave e os ranchos que passam
 
Fitados com interesse da janela,
 
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
 
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
 
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
 
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
 
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
 
</center>
 
=={{Fontes}}==
 
# Obra Poética e em Prosa
# Ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986
 
=={{Ligações externas}}==
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