Cerco de Constantinopla (674–678): diferenças entre revisões

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Imperio
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[[Imagem:Constantinople area map-pt.svg|thumb|305px|Mapa da região de Constantinopla no período bizantino]]
 
O '''cerco árabe de Constantinopla de 674–678''', também conhecido como '''primeiro cerco árabe de Constantinopla''', foi um dos principais conflitos das [[guerras bizantino-árabes]] e marcou o culminar da estratégia expansionista do primeiro [[Califado Omíada|califa omíada]], {{Lknb|Muawiya|I}}, contra o [[Império Bizantino| Bizantino]]. Alguns historiadores recentes têm sérias dúvidas sobre a ocorrência de um verdadeiro cerco, pelo menos no sentido clássico do termo, sugerindo que o que ocorreu de facto foi uma série de campanhas árabes nos territórios bizantinos da [[Ásia Menor]], algumas delas tendo chegado a Constantinopla.
 
Muawiya I, que tinha ascendido à liderança do império árabe em 661, após uma [[Primeira Guerra Civil Islâmica|guerra civil]] que ficou conhecida como Primeira ''Fitna'', deu um novo impulso à guerra agressiva contra Bizâncio, que tinha acalmado durante vários anos, com o objetivo de dar um golpe fatal ao inimigo conquistando a sua capital. Segundo os relatos do [[Crónica (historiografia)|cronista]] bizantino [[Teófanes, o Confessor]], o ataque dos árabes foi foi metodicamente planeado: em 672–673, [[frota|armadas]] árabes asseguraram bases ao longo das costas da Ásia Menor e depois levantaram um bloqueio frouxo em volta de Constantinopla. Usaram a península de [[Cízico]], na costa sul do [[mar de Mármara]], como base para passarem o inverno e voltaram nas primaveras seguintes para lançarem ataques contra as fortificações da cidade.
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{{Artigo principal|vt=s|Expansão islâmica}}
 
A seguir à derrota desastrosa na [[batalha de Jarmuque]], travada em 636, o Império Bizantino retirou o grosso das tropas que lhe restavam no [[Levante (Mediterrâneo)|Levante]] para a Ásia Menor, a qual estava escudada da expansão muçulmana pelos [[Montes Tauro]]. Isso deixou o campo aberto para os guerreiros do nascente [[Califado Rashidun]] completarem a [[Conquista muçulmana da Síria|conquista]] da [[Síria]], após o que [[Conquista muçulmana do Egito|conquistaram]] também o [[Egito]]. Os [[raide]]s contra a zona de fronteira na [[Cilícia]] e mais profundamente no interior da Ásia Menor começaram em 640, senão mais cedo, e prosseguiram sob a liderança de Muawiya, governador Rashidun da Síria e futuro califa.{{Harvy|kaegi|Kaegi|2008|p = 369ff}}{{HarvRef|Lilie|1976|p = 60–68}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 303–307, 310, 312–313}}
 
[[Imagem:Europe around 650.jpg|thumb|esquerda|upright=1.2|Mapa da [[Europa]] e da [[Bacia do Mediterrâneo]] {{ca.|650}}]]
 
O enérgico Muawiya impulsionou também a criação de uma marinha de guerra muçulmana, cujo poderio cresceu em poucos anos ao ponto de ocupar [[Chipre]] e lançar raides em locais tão distantes como [[Cós (Grécia)|Cós]], [[Rodes]] e [[Creta]], no [[mar Egeu]]. Finalmente, a nova marinha muçulmana alcançou uma vitória esmagadora sobre a sua [[Marinha bizantina|congénere bizantina]] em 655, na [[batalha dos Mastros]].{{Harvy|kaegi|Kaegi|2008|p = 372}}{{HarvRef|Lilie|1976|p = 64–68}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 312–313}} Porém, a seguir ao assassinato do califa [[Otman|Uthman]] em 656 e ao rebentamento da [[Primeira Guerra Civil Islâmica]], os ataques árabes pararam. Em 659, Muawiya acordou mesmo uma trégua com Bizâncio, que incluía o pagamento de um tributo ao império.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 68}}
 
A paz durou até ao fim da guerra civil muçulmana em 661, da qual Muawiya saiu vencedor, estabelecendo o [[Califado Omíada]].{{HarvRef|Lilie|1976|p = 69}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 318}} Os ataques muçulmanos a territórios bizantinos recomeçaram no ano seguinte, com a pressão a crescer à medida que os exércitos muçulmanos começaram a passar o inverno em solo bizantino a ocidente da cordilheira do Tauro, aumentando se sobremaneira a disrupção causada à economia bizantina. Estas expedições terrestres eram por vezes lançadas em conjunto com raides navais contras as costas do sul da Ásia Menor.{{Harvy|kaegi|Kaegi|2008|p = 373, 375}}{{HarvRef|Lilie|1976|p = 69–71}}{{HarvRef|name=tr320|Treadgold|1997|name = tr320|p = 320}} Em 668, os árabes enviaram ajuda a [[Sabório]], o [[estratego]] dos [[Thema Armeníaco|armeníacos]], que se tinha rebelado e auto-proclamado imperador. As tropas árabes comandadas por [[Fadhala ibn 'Ubayd]] chegaram tarde demais para apoiar Sabório, que tinha morrido depois de cair do seu cavalo, e passaram o inverno em Hexapolis, perto de [[Melitene]], onde esperaram por reforços.<ref name="tr320" />{{HarvRef|Lilie|1976|p = 71–72}}
 
Na primavera de 669, depois de receber mais tropas, Fadhala entrou na Ásia Menor e avançou pelo menos até [[Calcedônia (cidade)|Calcedónia]], na margem do [[Bósforo]] em frente à capital bizantina. Os ataques dos árabes a Calcedónia foram repelidos e o exército omíada foi dizimado pela fome e pela doença. Muawiya enviou outro exército em socorro de Fadhala, comandado pelo seu filho (e futuro califa) Yazid. Os relatos históricos diferem sobre o que aconteceu depois. O cronista bizantino [[Teófanes, o Confessor]] escreve que os árabes permaneceram em Calcedónia durante algum tempo antes de regressarem à Síria e no caminho de regresso capturaram a [[Amório]], onde colocaram uma [[Guarnição (força militar)|guarnição]]. Esta foi a primeira vez que os árabes tentaram manter um fortaleza capturada no interior da Ásia Menor para além do período de um campanha, o que provavelmente significava que tencionavam voltar no ano seguinte e usar a cidade como base, mas Amório foi reconquistada pelos bizantinos no inverno que se seguiu. Por outro lado, as fontes árabes reportam que os muçulmanos cruzaram o Bósforo até à costa europeia e atacaram Constantinopla sem sucesso, antes de retirarem para a Síria.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 72–74,90}}{{HarvRef|name=tr325|Treadgold|1997|name = tr325|p = 325}} Dado que não há qualquer menção a tal assalto nas fontes bizantinas, o mais provável é que os cronistas árabes, tendo em conta a presença de Yazid e o facto de Calcedónia ser um subúrbio de Constantinopla, tivessem apresentado o ataque a Calcedónia como um ataque à capital bizantina propriamente dita.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 73–74}}
 
==Primeiras movimentações: as campanhas de 672 e 673==
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[[Imagem:Solidus of Constantine IV with Heraclius and Tiberius.jpg|esquerda|thumb|[[Soldo (moeda)|Soldo]] de ouro de {{Lknb|Constantino|IV}}]]
 
A campanha de 669 demonstrou claramente aos árabes que era possível um ataque direto a Constantinopla, bem como a necessidade de terem uma base logística na região. Esta foi encontrada na península de [[Cízico]], na margem sul do [[mar de Mármara]], onde uma frota de assalto comandada por Fadhala ibn 'Ubayd invernou em 670 ou 671.<ref name="tr325" />{{HarvRef|Lilie|1976|p = 75}}{{Harvy|mangsc|Mango & Scott|1997|p = 492}} Muawiya começou então a preparar o assalto final à capital bizantina. Ao contrário do que tinha sucedico com a expedição de Yazid, que não envolveu a marinha, Muawiya tinha a intenção de assegurar uma rota costeira para Constantinopla. {{HarvRef|Lilie|1976|p = 76 (nota #61)}} As operações não foram feitas ao acaso, antes seguiram um cuidadoso plano de aproximação faseado: primeiro os muçulmanos tinham que assegurar redutos e bases ao longo da costa e após isso, usando Cízico como base, Constantinopla seria bloqueada por mar e por terra, isolando-a das regiões agrícolas vizinhas, das quais dependia para o abastecimento de víveres.{{HarvRef|Haldon|1990|p = 63}}{{HarvRef|Lilie|1976|p = 90–91}}
 
Seguindo os planos, em 672, três grandes frotas foram enviadas para defender as rotas marítimas e estabelecerem bases na Síria e no Egeu. A frota de Muhammad ibn Abdallah passou o inverno em [[Esmirna]], uma frota comandada por um tal Qays (talvez [[Abdallah ibn Qays]]) invernou na [[Lícia]] e na [[Cilícia]] e uma terceira, comandada por Khalid, juntou-se à segunda. Segundo Teófanes, o imperador Constantino&nbsp;IV começou a equipar a sua própria marinha para a guerra ao saber da aproximação dos navios árabes. O armamento de Constantino incluía navios equipados com [[Sifão|sifões]] destinados ao uso de uma nova substância incendiária recentemente desenvolvida, o fogo grego.<ref name="tr325" />{{HarvRef|Lilie|1976|p = 75, 90–91}}{{Harvy|mangsc|Mango & Scott|1997|p = 493}}
 
Em 673, outra frota árabe, sob o comando de [[Gunada ibn Abu Umayya]], tomou [[Tarso]], na Cilícia, bem como a ilha de Rodes. Esta última, situada a meio caminho entre a Síria e Constantinopla, foi convertida numa base avançada de abastecimento e ponto de partida para raides navais. A sua guarnição de {{formatnum:120000}} homens era regularmente substituída com contingentes da Síria e foi destacada uma pequena frota para defesa da ilha e para raides. Os árabes chegaram a semear trigo e a levarem animais para pastarem na ilha. Os bizantinos tentaram travar os planos dos árabes com um ataque naval no Egito, mas não tiveram sucesso.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 76–77}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 32}} Ao longo deste período continuaram os assaltos por terra no interior da Ásia Menor e as tropas árabes passaram o inverno em solo bizantino.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 74–76}}
 
==Ataques árabes e expedições relacionadas em 674–678==
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[[Imagem:Theodosian Golden Gate.jpg|thumb|A [[Porta Dourada]] e a [[Muralha Teodosiana]] de Constantinopla]]
 
[[Imagem:Greekfire-madridskylitzes1.jpg|thumb|Representação do [[fogo grego]], numa [[iluminura]] do [[Skylitzes de Madrid]] ({{séc|XII}}. Esta arma secreta bizantina foi usada pela primeira vez durante o cerco, em 677 ou 678.<ref name="hald64" />]]
 
Em 674, a marinha árabe zarpou das suas bases no Egeu oriental e entrou no mar de Mármara. Segundo Teófanes, desembarcaram na costa da [[Trácia]] perto de [[Hebdomão]] em abril e até setembro as tropas árabes envolveram-se em constantes confrontos com as tropas bizantinas — ''«todos os dias havia um confronto militar desde manhã até à noite, entre as [[Obra exterior|obras exteriores]] da [[Porta Dourada]] e o [[Kyklobion]], com ataques e contra-ataques.»''. Em seguida os árabes partiram para Cízico, que capturaram e converteram num campo fortificado para passarem o inverno. Isto marcou um padrão que se repetiu ao longo do cerco: todas as primaveras os árabes cruzavam o mar de Mármara e assaltavam Constantinopla, retirando para Cízico no inverno.<ref name="tr325" />{{HarvRef|Lilie|1976|p = 77–78}}{{Harvy|mangsc|Mango & Scott|1997|p = 493–494}}{{HarvRef|name=hald64|Haldon|1990|name = hald64|p = 64}} Na realidade, o "cerco" foi uma série de combates em volta da cidade, que pode até ser estendida para incluir o ataque de 669 de Yazid.{{Harvy|name=mg494n3|mangsc|Mango & Scott|1997|name = mg494n3|p = 494 (nota #3)}} Saliente-se também que tanto os cronistas bizantinos como os árabes relatam que o cerco durou sete e não cinco anos. Isto pode ser conciliado com a versão dos cinco anos incluindo as primeiras campanhas, "de abertura", de 672 e 673 ou contando os anos até à retirada definitiva dos árabes, em 680.<ref name="mg494n3" />{{HarvRef|Lilie|1976|p = 80 (nota #73)}}
 
Os pormenores dos combates durante os anos seguintes a 674 em redor de Constantinopla são mal conhecidos, pois Teófanes condensa o cerco no seu relato do primeiro ano e os cronistas árabes não mencionam de todo o cerco, apenas indicando os nomes dos comandantes de expedições não especificadas em território bizantino.{{HarvRef|Brooks|1898|p = 187–188}}{{HarvRef|name=lil78|Lilie|1976|name = lil78|p = 78–79}}{{Harvy|name=mg494|mangsc|Mango & Scott|1997|name = mg494|p = 494}} Sabe-se apenas que Abdallah ibn Qays e Fadhala ibn 'Ubayd levaram a cabo raides em Creta e lá invernaram em 675, enquanto que no mesmo ano Malik ibn Abdallah liderou um raide na Ásia Menor. Os historiadores árabes [[Ya'qubi|ibn Wadih]] e [[al-Tabari]] relatam que Yazid foi enviado por Muawiya com reforços para Constantinopla em 676 e que Abdallah ibn Qays comandou uma campanha em 677, cujo alvo se desconhece.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 79–80}}<ref name="tr325" />{{Harvy|mangsc|Mango & Scott|1997|p = 495}} Ao mesmo tempo, os bizantinos tiveram que enfrentar um ataque dos [[eslavos]] a [[Salonica]] e ataques dos [[lombardos]] em [[península Itálica|Itália]].{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 326}} Finalmente, no outono de 677 ou início de 678, Constantino&nbsp;IV resolveu enfrentar os sitiantes num combate frontal. A sua frota, equipada com fogo grego, destroçou a frota inimiga. É provável que a morte do almirante Yazid ibn Shagara, registada pelos cronistas árabes em 677 ou 678, esteja relacionada com a sua derrota. Aproximadamente ao mesmo tempo, o exército muçulmano na Ásia Menor, sob o comando de [[Sufyan ibn 'Awf]], foi derrotado pelo exército bizantino comandado pelos generais Floras, Petrenas e Cipriano, perdendo {{formatnum:30000}} homens, segundo Teófanes. Estas derrotas forçaram os árabes a levantar o cerco em 678. No caminho de regresso à Síria, a frota árabe foi quase completamemente aniquilada por uma tempestado ao largo de [[Silião]].<ref name="hald64" /><ref name="mg494" /><ref name="lil78" />{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 326–327}}
 
==Rescaldo==
O fracasso dos árabes ante Constantinopla coincidiu com um aumento da atividade dos [[mardaítas]], um grupo cristão que vivia nas montanhas da Síria e resistia ao controlo muçulmano, assaltando as terras baixas. Confrontado com esta nova ameaça, depois das enormes perdas sofridas frente aos bizantinos, Muawiya iniciou negociações para tréguas, tendo havido troca de embaixadas entre as duas cortes. As negociações prolongaram-se até 679, o que deu tempo aos árabes para levarem a cabo um último raide na Ásia Menor, comandado por 'Amr ibn Murra, que pode ter tido como objetivo pressionar os bizantinos. O tratado de paz acordado, com a duração nominal de 30 anos, previa que o califado pagasse um tributo anual de {{formatnum:3000}} ''[[Soldo (moeda)|nomismata]]'', 50 cavalos e 50 escravos. As guarnições árabes foram retiradas das suas bases nas terras costeiras bizantinas e em Rodes em 679–680.<ref name="hald64" />{{Harvy|kaegi|Kaegi|2008|p = 381–382}}{{HarvRef|Lilie|1976|p = 81–82}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 327}}
 
Constantino IV aproveitou a paz para atuar contra a crescente [[Guerras bizantino-búlgaras|ameaça búlgara]] nos [[Bálcãs]], mas o seu enorme exército, que compreendia todas as tropas disponíveis do império, sofreu uma derrota decisiva, o que abriu caminho para o estabelecimento de um [[Primeiro Império Búlgaro|estado búlgaro]] no nordeste dos Bálcãs.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 83}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 328–329}} No mundo muçulmano, depois da morte de Muawiya em 680, as diversas forças de oposição dentro do califado manifestaram-se, originando a [[Segunda Fitna|Segunda Guerra Civil Islâmica]], que dividiu o califado e permitiu aos bizantinos obterem não só a paz mas também uma posição predominante na sua fronteira oriental. A [[Emirado da Armênia|Arménia]] e a [[Principado da Ibéria|Ibéria]] (parte da atual [[Geórgia]]) voltaram durante algum tempo ao controlo dos bizantinos e Chipre tornou-se um {{NT|condominium|condomínio}} entre o Império Bizantino e o califado.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 99–107}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 330–332}}
 
A paz só durou até {{Lknb|Justiniano|II}} {{nowrap|(r. 685–695}} e {{nowrap|705–711)}} a ter quebrado em 693, com consequências devastadoras: os bizantinos foram rapidamente derrotados, Justiniano foi deposto e seguiu-se um período de anarquia que durou vinte anos. As incursões muçulmanas intensificaram-se e culminaram numa segunda e derradeira tentativa fracassada para [[Cerco de Constantinopla (717-718)|conquistar Constantinopla em 717–718]].{{Harvy|kaegi|Kaegi|2008|p = 382–385}}{{HarvRef|Lilie|1976|p = 107–132}}{{HarvRef|Treadgold|1997|p = 334–349}}
 
==Importância e impacto histórico e cultural==
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[[Imagem:Eyupsultan5.JPG|thumb|esquerda|''[[Türbe]]'' ([[mausoléu]]) de [[Abu Ayyub al-Ansari|al-Ansari]], no complexo da [[Mesquita de Eyüp Sultan]]]]
 
Constantinopla era o centro nervoso do estado bizantino. Se tivesse caído, o resto das províncias do império dificilmente se teriam mantido unidas e ter-se-iam tornado uma presa fácil para os árabes.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 91}} Ao mesmo tempo, o fracasso do ataque omíada a Constantinopla foi um acontecimento importante, que marcou o culminar da campanha de desgaste levada a cabo de forma contumaz desde 661. Foram investidos recursos imensos nesse empreendimento, que incluíram a criação de uma enorme marinha. O seu fracasso teve importantes repercussões e representou um duro golpe para o prestígio do califa.{{HarvRef|Lilie|1976|p = 80–81, 89–91}} Pelo contrário, o prestígio bizantino alcançou novos patamares, especialmente no [[Mundo ocidental|Ocidente]]: Constantino&nbsp;IV recebeu enviados dos ávaros e dos [[Eslavos meridionais|eslavos balcânicos]], que lhe levaram presentes, felicitações e o reconhecimento da supremacia bizantina.<ref name="hald64" /> A paz que se seguiu ao cerco trouxe também uma pausa às constantes incursões na Ásia Menor, permitindo que o estado bizantino recuperasse o seu equilíbro e se consolidasse após as mudanças cataclísmicas das décadas anteriores.{{HarvRef|Haldon|1990|p = 66}}
 
As fontes árabes posteriores discorrem extensivamente sobre os eventos da expedição de Yazid de 669 e o suposto ataque a Constantinopla, e incluem vários episódios míticos, que são encarados pelos académicos modernos como referindo-se a eventos do cerco de 674–678. Várias personalidades importantes das primeiras gerações do islão são mencionadas como tendo participado no ataque, como {{ilc|ibn Abbas|Abd Allah ibn Abbas|Abdullah ibn Abbas|ʿAbd Allah ibn ʿAbbas}}, [[Abdullah ibn Umar|ibn Umar]] e [[Abdullah ibn al-Zubair|ibn al-Zubair]].{{HarvRef|Canard|1926|p = 70–71}}{{HarvRef|El-Cheikh|2004|p = 62}} Uma dessas figuras islâmicas mais proeminentes nas tradições posteriores é [[Abu Ayyub al-Ansari]], conhecido em turco como Eyüp Sultan, um dos companheiros (''[[sahaba]]'') e ajudantes (''[[ansar]]'') de [[Maomé]], além de seu [[porta-estandarte]]. Segundo a lenda, al-Ansari morreu durante o cerco junto às [[Muralha de Constantinopla|muralhas]], onde foi enterrado. Ainda segundo a tradição muçulmana, Constantino&nbsp;IV ameaçou destruir o túmulo, mas o califa avisou-o que se o fizesse os cristãos que viviam em territórios do califado sofreriam represálias. O túmulo foi por isso deixado em paz e chegou a tornar-se um local de veneração dos bizantinos, que ali iam rezar em tempos de seca. O túmulo foi "redescoberto" quase oito séculos depois, após a [[Queda de Constantinopla|conquista de Constantinopla]] em 1453, pelo [[dervixe]] [[Ak Shams al-Din]], e o [[sultão]] [[Império Otomano|otomano]] {{lknb|Maomé|II, o Conquistador}} {{nowrap|(r. 1444–1446}} e {{nowrap|1451–1481)}} ordenou a construção de um ''[[türbe]]'' ([[mausoléu]]) e uma mesquita adjacente em memória de al-Ansari, a [[Mesquita de Eyüp Sultan]], que ainda hoje se erguem no [[Distritos da Turquia|distrito]] [[Eyüp|homónimo]] de [[Istambul]]. Tornou-se uma tradição que os sultões otomanos fossem cingidos na Mesquita de Eyüp com a [[espada de Osman]], o símbolo do poder otomano, quando ascendiam ao trono. A mesquita e o mausoléu são ainda hoje um dos santuários muçulmanos mais sagrados de Istambul.{{HarvRef|Canard|1926|p = 71–77}}{{HarvRef|El-Cheikh|2004|p = 62–63}}{{Harvy|turn|Turnbull|2004|p = 48}}
 
==Análise moderna dos acontecimentos==
[[Imagem:Car bed 1.jpg|thumb|[[Muralha de Teodósio]]]]
 
A narrativa do cerco aceite pelos historiadores modernos baseia-se em larga medida nos relatos de [[Teófanes, o Confessor|Teófanes]], pois as [[Documento histórico|fontes]] [[Língua árabe|árabes]] e [[Língua siríaca|siríacas]] não mencionam qualquer cerco, mas sim campanhas individuais, algumas delas que chegaram a Constantinopla — há registos da captura de uma ilha perto da cidade em 673 ou 674 e também é dito que que a expedição de Yazid chegou até à capital bizantina. Os cronistas siríacos também colocam a batalha decisiva e a destruição da frota árabe pelo [[fogo grego]] em 674, durante uma expedição árabe nas costas da [[Lícia]] e [[Cilícia]], e não em Constantinopla. A isso seguiu-se o desembarque de tropas bizantinas na Síria em 677–678, que despoletou a rebelião [[mardaítas|mardaíta]] que ameaçou o domínio do califado na Síria ao ponto de resultar no acordo de paz de 678–679.{{HarvRef|Brooks|1898|p = 186–188}}{{HarvRef|Howard-Johnston|2010|p = 302–303, 492–495}}{{HarvRef|Stratos|1983|p = 90–95}}
 
Tendo por base uma reavaliação das fontes originais usadas pelos historiadores medievais, na sua obra aclamada{{Harvy|kald|Kaldellis|2010}} ''“Witnesses to a World Crisis: Historians and Histories of the Middle East in the Seventh Century”'', o académico de [[Oxford]] [[James Howard-Johnston]] rejeita a interpretação tradicional dos acontecimentos, baseada em Teófanes (que nasceu 80 anos depois do suposto cerco), em favor da versão dos cronistas siríacos. Howard-Johnston afirma que nenhum cerco aconteceu realmente, baseado não só na sua ausência nas fontes orientais, mas também na impossibilidade em termos logísticos de tal empreendimento durante a duração reportada. Em vez disso, ele acredita que a referência a um cerco foi uma interpolação posterior, influenciada pelos acontecimentos do [[Cerco de Constantinopla (717-718)|segundo cerco árabe]] de 717-718, feita por uma fonte anónima usada por Teófanes. Segundo Howard-Johnston, ''«o bloqueio de Constantinopla na década de 670 é um mito que tem sido usado para mascarar o grande êxito real alcançado pelos bizantinos na última década do califado de Muawiya, primeiro no mar, ao largo da Lícia, e depois em terra, através de uma insurgência que, em pouco tempo, despertou profunda ansiedade entre os árabes, que estavam conscientes que tinham {{NT|merely coated|apenas abafado}} o Médio Oriente com o seu poder.»{{HarvRef|Howard-Johnston|2010|p = 303–304}}''
 
==Notas e referências==