Raiva (doença): diferenças entre revisões

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}}
A '''raiva''' (também conhecida impropriamente como '''[[hidrofobia]]'''<ref>A ''hidrofobia'' é um dos [[sintomas]] desta doença — que pode não estar presente no quadro clínico (donde a impropriedade da sinonímia — [[Dicionário Aurélio]], ed. Nova Fronteira, 1992, verbete ''hidrofobia''</ref> e arcaicamente '''rábia'''), é uma [[doença]] [[infecção|infecciosa]] que afeta os [[mamífero]]s causada por um [[vírus]] que se instala e multiplica primeiro nos [[sistema nervoso periférico|nervos periféricos]] e depois no [[sistema nervoso central]] e dali para as [[glândulas salivares]], de onde se multiplica e propaga.<ref name="pasteur1">{{citar web|url=http://www.pasteur.saude.sp.gov.br/informacoes/informacoes_05.htm |título=A Raiva |autor=Instituto Pasteur de São Paulo |data=2002 |acessodata=24/5/2010}}</ref> Por ocorrer em animais e também afetar o [[ser humano]], é considerada uma [[zoonose]].<ref name="pasteur2">{{citar web|url=http://www.pasteur.saude.sp.gov.br/raiva/raiva_01.htm |título=O que é a raiva |autor=Instituto Pasteur de São Paulo |data=2002 |acessodata=24/5/2010}}</ref>
 
A transmissão dá-se do animal infectado para o sadio através do contato da [[saliva]] por mordedura, lambida em feridas abertas, mucosas ou arranhões. Outros casos de transmissão registrados são pela via inalatória, pela [[placenta]] e [[aleitamento]] e, entre humanos, pelo transplante de córnea.<ref name="pasteur1" /><ref name="estudo">{{citar web|url=http://evunix.uevora.pt/~sinogas/TRABALHOS/2004/Raiva.pdf |título=A Raiva |autor= Leila Duarte; Maria do Carmo Drago |local=Évora |acessodata=24/5/2010}}</ref> Infectando animais [[homeotermia|homeotérmicos]], a raiva nas áreas urbanas tem como principal agente o cão, seguido pelo gato; na em zonas silvestres, se dá principalmente por lobos, raposas, coiotes e nos morcegos hematófogos.<ref name="estudo" /> 80% dos casos registrados de animais infectados são [[carnívoro]]s.<ref name="vet1">{{citar web|url=http://www.saudeanimal.com.br/artig175.htm |título=Raiva ou Hidrofobia |autor=Carmello Liberato Thadei |acessodata=2/9/2010 }}</ref>
 
Mesmo sendo controlada nos animais domésticos em várias partes do mundo, a raiva demanda atenção em razão dos animais silvestres. Na [[saúde pública]] gera grande despesa para seu controle e vigilância, mesmo nos locais onde é considerada erradicada ou sob controle, já que é uma doença [[morte|fatal]] em todos os casos<ref name="pasteur1" /><ref name="pasteur2" /> que evoluem para a manifestação dos sintomas. Até 2006 apenas 6 casos de cura entre humanos foram registrados, dos quais 5 haviam recebido o tratamento vacinal [[Profilaxia pré-exposição|pré]] e [[Profilaxia pós-exposição|pós-exposição]] e somente um, em 2004, parece não haver recebido estes cuidados.<ref name="book1">{{Citar livro|url=http://books.google.com.br/books?id=mJSsXSrZkasC&pg=PA1179&dq=historia+hidrofobia&hl=pt-BR&ei=LmuCTIvyFsH-8AbTq9mPAg&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=4&ved=0CDUQ6AEwAw#v=onepage&q&f=false |autor= LOPES, Antonio Carlos |título=Diagnostico e tratamento |idioma=português |edição= |local=Barueri |editora=Editora Manole Ltda |ano=2006 |páginas=2112 páginas, Página 1178 e seg.|volume=Volume 2 |id=ISBN 9788520424735, ISBN 8520424732}}</ref> A este caso único de cura, uma adolescente de [[Milwaukee]] , ensejou a uma segunda cura, esta feita num hospital público do [[Recife]], no Brasil.<ref name="folha">{{citar web|url=http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u467666.shtml |título=Brasil registra caso único de cura de raiva |autor=Fábio Guibu |data=14/11/2008 |publicado=Folha de S. Paulo |acessodata=fevereiro de 2012}}</ref>
 
Sua incidência é global, salvo em algumas áreas específicas em que é considerado erradicado, como a [[Antártida]], [[Japão]], [[Reino Unido]], e outras ilhas.<ref name="estudo" />
 
== Histórico ==
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O termo ''raiva'' deriva do [[latim]] ''rabere'' (significando ''fúria'' ou ''delírio''), mas também encontra raízes no [[sânscrito]] ''rabhas'' (''tornar-se violento''). Entre os gregos era chamada de ''Lyssa'' ou ''Lytta'' (''loucura'', ''demência''). Também a palavra ''vírus'' deriva desta doença, significando ''veneno'' no latim, pois muitos supunham que era um mal derivado de um veneno contido na saliva dos animais infectados.<ref name="pasteur3">{{citar web|url=http://www.pasteur.saude.sp.gov.br/extras/manual_08.pdf|titulo=Raiva - aspectos gerais e clínica|ultimo=Kotait|primeiro=Ivanete|coautores=Maria Luiza Carrieri e Neide Yumie Takaoka|data=2009|obra=Manual 08|publicado=Instituto Pasteur, São Paulo|formato=PDF|lingua=português|acessodata=04/09/2010}} (OBS: A reprodução deste material é livre, desde que citada a fonte)</ref>
 
Desde a [[Antiguidade]] a raiva era temida em razão da sua forma de transmissão, ao quadro clínico e sua evolução. Acreditavam os antigos que era causada por motivos sobrenaturais, pois cães e lobos pareciam estar possuídos por entidades malignas.<ref name="pasteur3" /> É a doença de registro mais antigo.<ref name="vet1" />
 
Entre os [[Egipto Antigo|egípcios]] era comum a crença de que havia a interferência maligna da estrela [[Sirius]] (da [[constelação]] de [[Cão Maior]]) sobre os cachorros, alterando-lhes o comportamento. Entre os [[Mesopotâmia|mesopotâmios]], cerca de {{AC|1900|x}}, já era citada no [[Código de Eshnunna]]: quando um animal provocasse a morte de alguém, seu dono era obrigado a depositar certa quantia nos cofres públicos — o que demonstra ser a raiva um problema consideravel, na época.<ref name="pasteur3" />
 
Na [[Grécia Antiga]] era temida, e [[Homero]] ([[Ilíada]]) registra a presença de cães raivosos; na [[mitologia grega|mitologia]] eram invocados os deuses [[Aristeu]] e [[Ártemis]] para a proteção e cura da raiva. Autores gregos e romanos estudaram o mal, entre os séculos IV e {{AC|I|x}}, tais como [[Demócrito]], [[Aulo Cornélio Celso]] e [[Galeno]], descrevendo-as em homens e animais e sua transmissão, recomendando práticas como a sucção, cauterização por meio de substâncias cáusticas e/ou ferro em brasa e também a excisão cirúrgica dos ferimentos: se a vítima não viesse a óbito ficaria com várias cicatrizes.<ref name="pasteur3" />. Foi descrita por [[Aristóteles]], que assinalou o risco da mordida por cães infectos — embora ainda se acreditasse que sua ocorrência poderia se dar de modo espontâneo, por meio de alimentos muito quentes, pela sede, por conta da falta de sexo ou forte excitação nervosa.<ref name="vet1" />
 
[[Imagem:Middle Ages rabid dog.jpg|thumb|esquerda|Gravura medieval de um cão rábico.]]
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Em França eram frequentes os relatos dramáticos de ataques por lobos vindos da Europa Central. [[André Besson]] traz um registro da municipalidade de [[Doubs (departamento)|Doubs]]: "''Em 23 de setembro de 1798, por volta das 5 horas da manhã, alguns camponeses que iam ao mercado de [[Besançon]] foram atacados, perto da aldeia de [[Beure]], por um lobo furioso. (...) As autoridades organizaram uma perseguição e encontraram o lobo perto de Vellote. Travou-se então uma luta violenta: o animal enfim sucumbiu e seus despojos foram exibidos em toda a aldeia em festa. Mas o acontecimento teve um desfecho triste. Embora a autópsia tenha concluído que o animal era são, após algumas semanas todos os que haviam sido mordidos revelaram sinais de hidrofobia, um dos sintomas habituais da raiva. Uma dúzia de pessoas morreu após sofrimentos atrozes''".<ref name="viva" />
 
As práticas terapêuticas da antiguidade sobreviveram até o {{séc|XIX}}, quando finalmente [[Louis Pasteur]] iniciou seu estudo de modo [[metodologia científica|científico]].<ref name="vet1" />
 
=== Pasteur e a raiva ===
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Na sua cidade natal, [[Arbois]], havia a história do "Traseiro sem raiva", bastante popular, onde um valentão chamado Gavignon gabava-se de nada temer e, enfrentando um enorme cão, acaba por refugiar-se numa árvore, quando foi atacado "na parte mais carnosa do corpo". O animal foi abatido por um caçador mas, apesar de conferido ser sadio, o fanfarrão ainda assim postou-se de cama por vários dias, acreditando estar raivoso, recebendo o apelido que dá nome à fábula. Também essa história deve ter ouvido Pasteur, em sua juventude.<ref name="viva" />
 
O longo período de incubação da doença fazia com que as pessoas ministrassem diversas mezinhas nos ferimentos, e os médicos indicassem variados venenos para neutralizar o vírus. Em 1852 o governo ofereceu uma recompensa a quem indicasse um tratamento eficaz contra a raiva, e houve quem recomendasse a primitiva [[Prescrição médica|receita]] de Galeno, de olhos de [[lagosta]]. A Academia de Medicina, consultada, respondeu que a [[cauterização]] era a única medida [[profilaxia|profilática]] eficaz contra o mal. Dezoito anos mais tarde, [[Henri Marie Bouley]] publicou num estudo que a solução era a destruição dos tecidos tocados pela saliva contaminada e, à falta de ferro em brasa para a cauterização, indicava o uso de substâncias cáusticas, tais como os ácidos [[Ácido nítrico|nítrico]] ou [[Ácido sulfúrico|sulfúrico]], ou mesmo [[nitrato de prata]]: o método de Cornelius Celsus do {{séc|I}} ainda era o indicado, a ciência não tinha operado nenhum progresso no combate à raiva.<ref name="rene" />
 
==== Estudos da raiva ====
[[Imagem:Louis Pasteur (M Renourad - Illustration - 1884).jpg|thumb|330px|A criação de coelhos de Pasteur, para produção da vacina da raiva.]]
Em [[1880]] Victor Galtier, da Escola de Medicina Veterinária de Lyon (a primeira do mundo<ref>Fundada por [[Claude Bourgelat]], em [[1762]], com respaldo em édito de [[Luís XV da França|Luís&nbsp;XV]]. BESSON, op. cit.</ref>), descrevera a evolução da doença nos cães:
:"''Após uma mordida virulenta e um período de incubação mais ou menos longo (15 a 60 dias), surgem, visíveis nas alterações do comportamento do cão, os primeiros sintomas da doença. Ele se torna triste, melancólico ou muito alegre e carinhoso. Ainda obedece e não tenta morder, mas já é perigoso, uma vez que a saliva contém o mal. (...) Depois sua agitação aumenta; se a doença assumir a forma furiosa, haverá acessos de alucinação; o animal fica parado, late, abocanha moscas inexistentes, rasga almofadas, tapetes e cortinas, arranha o chão e come terra.<br />O som do latido torna-se rouco e abafado, a nota final é bastante aguda e a boca não se fecha totalmente. Tais modificações no latido constituem um sinal bem grave. Em certos casos, o cão tem tendência a fugir, abandonando a casa do dono. (...) É nessa época que o animal se torna mais perigoso. Depois surgem fenômenos de paralisia: as pernas posteriores ficam enfraquecidas e o andar incerto. O cão pára na beira do caminho e ainda é perigoso nos momentos de alucinação; posteriormente a fraqueza se acentua, a respiração torna-se irregular, ele se deita e a morte ocorre quatro ou seis dias contados do início dos sintomas''".<ref name="rene" />
 
[[Imagem:Pasteur and rabid dog by Alfons Mucha.jpg|thumb|esquerda|Pasteur extrai o vírus num cão raivoso (por [[Alfons Mucha|Mucha]]).]]
Em dezembro do mesmo ano Pasteur voltou sua atenção para o problema. Auxiliado por cientistas como [[Émile Roux]], [[Charles Chamberland]] e [[Louis Thuillier]], em 1881 conseguem isolar o vírus. Efetuam a passagem do agente entre [[coelho]]s e, dessecando sua [[medula espinal]] e submetendo-s à ação de [[potassa]], conseguem um vírus mais "estável" (com virulência e incubação constantes), e que podia então ser reproduzido em laboratório, de modo a se produzir uma [[vacina]].<ref name="pasteur3" />
 
No ano de 1884 descrevem para a [[Academia de Ciências de Paris]] que, após sucessivas passagens, a virulência diminuía. Passam a usar experimentalmente em animais a vacina que produziram.<ref name="pasteur3" />
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Ante a inevitabilidade do óbito, Pasteur decide aplicar a imunização já provada eficaz em coelhos e nos cães. Meister foi curado.<ref name="centenario" /> No mesmo ano a vacina é ministrada em outro jovem — [[Jean-Baptiste Berger Jupille]], que teve a cena de seu ataque pelo cão raivoso registrado numa escultura de [[Émile-Louis Truffot]].<ref name="pasteur3" /><ref>Nota: Esta escultura encontra-se no monumento funerário de Pasteur, em sua cripta.</ref>
 
O sucesso da imunização humana fez seu método se espalhar rapidamente pelo mundo. Em 1890 havia centros de tratamento anti-rábico em [[Argel]], [[Bandung]], [[Budapeste]], [[Chicago]], [[Florença]], [[Madras]], [[Nova Iorque]], [[São Paulo (cidade)|São Paulo]], [[Tunis]], [[Varsóvia]], [[Xangai]] e outras cidades.<ref name="centenario" />
 
==== Reconhecimento ====
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== Ciclos de transmissão e hospedeiros ==
[[Imagem:Vampire Bat 003.jpg|thumb|esquerda|O ''[[Desmodus rotundus]]'' é o principal hospedeiro da raiva silvestre aérea, na América Latina.]]
Para a forma de transmissão da raiva se convencionou classificar as ciclos de transmissão em ''urbana'', ''rural'', ''silvestre'', ''aéreo'' ou ''terrestre''.<ref name="reviso">{{citar web|url=http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/artigo718.pdf|título=Raiva: uma breve revisão |autor=Helena Beatriz de Carvalho Ruthner Batista1, Ana Cláudia Franco1 & Paulo Michel Roehe |data=2007|publicado=Acta Scientiae Veterinariae. 35(2): 125-144 |acessodata=fevereiro de 2012}}</ref>
 
O ciclo aéreo diz respeito aos morcegos, sendo todos os demais considerados terrestres; será urbano quando a doença é transmitida por animais domésticos, notadamente cães e gatos; o rural dá-se nos herbívoros (bois, ovelhas, etc.) em geral atacados por morcegos hematófagos; já o silvestre diz respeito aos animais que habitam às matas — aos quais muitas vezes o ciclo aéreo também está associado.<ref name="reviso" />
 
O cão é o principal hospedeiro do ciclo urbano, e a relação de proximidade com o homem evidencia a condição de zoonose da doença; os cães transmitem o vírus entre si ou eventualmente, em geral em episódios envolvendo morcegos, de animais de outras espécies.<ref name="reviso" />
 
No ciclo aéreo o [[Morcego-vampiro|morcego hematófago]] é o principal hospedeiro, sendo considerável por exemplo na América Latina, onde a espécie ''[[Desmodus rotundus]]'' é a que mais provoca casos de transmissão silvestre aérea.<ref name="reviso" /> Além do morcego hematófago é de se considerar a transmissão por animais que não se alimentam de sangue (frugívoros, insetívoros, etc.), que podem representar eventual risco dada a sua condição de habitar ambientes urbanos.<ref>{{citar web|url=http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-736X2008001000012&script=sci_arttext |título=Diagnóstico de raiva no Rio Grande do Sul, Brasil, de 1985 a 2007 |autor=Thais F. Teixeira et. all. |data=Outubro de 2008 |publicado=Pesq. Vet. Bras. vol.28 no.10 Rio de Janeiro |acessodata=fevereiro de 2012 }}</ref>
 
== Etiologia ==
[[Imagem:Rabid virus schema.png|thumb|Representação esquemática do [[Vírus da raiva]], em forma de bala (à direita), e os [[corpúsculos de Negri]], livres e em [[neurônio]] (à esquerda).]]
{{Artigo principal|Vírus da raiva}}
O agente da raiva é um [[Rhabdovirus]] com [[genoma]] de [[RNA]] simples de sentido negativo (a sua cópia é que é lida como [[RNA mensageiro]] — ou mRNA — na [[síntese proteica]]). O vírus tem envelope bilipídico, medindo cerca de 170 [[nanômetro]]s de comprimento por 70 nanômetros de largura (11 a 15 kb) e formato de bala.<ref name="estudo" />
 
Para a produção dos [[anticorpo]]s o [[antígeno]] capaz de fazê-lo é a [[glicoproteína]] do envoltório viral. O vírus, por sua vez, é tornado inativo através de vários agentes físicos e químicos, tais como [[raio ultravioleta|radiação ultravioleta]], álcool, [[raio X]], etc.<ref name="pasteur1" />
 
=== Histórico ===
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[[Imagem:Rabies Free Countries new.svg|thumb|esquerda|300px|Lugares livres da raiva, em 2010: [[Austrália]], [[Nova Zelândia]], [[Singapura]], [[Fiji]], [[Papua-Nova Guiné]], Províncias de [[Irian Jaya]] e [[Papua Ocidental]] na ilha de [[Nova Guiné]] na [[Indonésia]], [[Guam]], [[Havaí]], [[Japão]], [[Taiwan]], [[Alemanha]], [[Áustria]], [[Reino Unido]], [[República da Irlanda]], [[Dinamarca]], [[Noruega]], [[Suécia]], [[Islândia]], [[Sardenha]] e [[Córsega]].]]
 
Com exceção da [[Austrália]] e [[Antártida]], a raiva está ainda presente em todos os continentes da Terra. Alguns países conseguiram erradicá-la — como [[Reino Unido]], [[Irlanda]], [[Japão]] e nações da [[Escandinávia]]; esta ampla distribuição deve-se à grande adaptabilidade do vírus em várias espécies de hospedeiros.<ref name="reviso" />
 
Na [[América do Norte]] e [[Europa]] os casos urbanos são considerados erradicados, restando ainda as do ciclo silvestre; nos demais países os registros urbanos persistem: a [[Índia]], por exemplo, chegou a registrar mais de 20 mil casos ao ano, e a [[China]] 5 mil.<ref name="rsp">{{citar web|url=http://www.scielo.br/pdf/rsp/v28n1/11.pdf |título=Avanços na pesquisa da raiva |autor=Pedro Manuel Leal Germano |data=1994 |publicado=Revista Saúde Pública, 28 (1) |acessodata=fevereiro de 2012}}</ref>
 
Diversas cepas do vírus se encontram em reservatórios silvestre e em cães, através do globo.<ref name="rsp" />
 
Na [[África]] casos de cães assintomáticos foram registrados na [[Etiópia]] e [[Nigéria]], além da detecção de RNA viral em [[hiena]]s, o que sugere a existência de cepas de baixa capacidade patogênica nesta espécie.<ref name="reviso" />
 
A incidência da doença em herbívoros tem significativo impacto econômico; apenas em bovinos ela representa um valor estimado em 50 milhões de dólares ao ano, em todo o mundo.<ref name="herb">{{citar web|url= http://www.biologico.sp.gov.br/docs/arq/V72_2/albas.PDF |título=Vacinação anti-rábica em bovinos: comparação de cinco esquemas vacinais |autor=A. Albas et. al. |data= abr./jun., 2005|publicado=Arq. Inst. Biol., São Paulo, v.72, n.2, p.153-159 |acessodata=fevereiro de 2012}}</ref>
 
No período de 1990 a 1998 houve 383 casos de raiva humana no Brasil e seis em São Paulo. Esses números vêm diminuindo progressivamente. Em 2002 foram somente dez casos.<ref name="uol">http://saude.hsw.uol.com.br/raiva1.htm</ref>
 
== Aspectos clínicos ==
{{aviso-médico}}
A inoculação ocorre a partir da saliva do animal contaminado, especialmente pela mordida (menos frequentemente por arranhadura ou lambida em mucosas). Formas remotas de transmissão inter-humanas são possíveis, embora raras, e há alguns relatos (transplantes ou por via respiratória).<ref name="msb">{{citar livro|autor=Ministério da Saúde / Secretaria de Vigilância em Saúde / Departamento de Vigilância Epidemiológica |título=Doenças Infecciosas e Parasitárias: guia de bolso, 6ª ed. revista, Brasília |editora=Ministério da Saúde |ano=2006 |página=249-254|id=ISBN 8533412223}}</ref>
 
=== Incubação ===
O período de incubação da raiva é muito variável, podendo ir de alguns dias até um ano; a média, contudo, é de 45 dias na raiva humana e de 10 dias a 2 meses, no cão.<ref name="msb" />
 
Este tempo está diretamente relacionado ao local e à gravidade do ferimento provocado pelo animal, com a distância deste local dos troncos nervosos e, finalmente, à quantidade viral inoculada.<ref name="msb" />
 
=== Transmissibilidade ===
Em animais domésticos (cão e gato) o período de transmissão tem início de 2 a 3 dias antes do surgimento dos sintomas clínicos, e perdura por toda a evolução da doença — com a morte ocorrendo entre 5 e 7 dias após a manifestação sintomática; já entre animais silvestres não há estudos que apontem esse período com certeza, variando conforme a espécie hospedeira; nos morcegos, contudo, sabe-se que este período é bastante longo e assintomático.<ref name="msb" />
 
=== Diagnóstico diferencial ===
A doença guarda similaridade com outros quadros patogênicos, como o [[tétano]], [[pasteurelose]]s decorrentes de mordida de cães e gatos, a [[Herpesvirus simiae]], [[botulismo]], outras [[Encefalite viral|encefalites virais]], [[sodoku]], etc. Para diferenciar devem ser observados o [[fácies (medicina)|fácies]], [[hiperacusia]], [[hiperosmia]], [[fotofobia]], [[aerofobia]], [[hidrofobia]] e mudanças comportamentais.<ref name="msb" />
 
=== Diagnóstico ambulatorial ===
[[Imagem:Jackal head 2.JPG|thumb|Cabeça de chacal, para exame comprobatório.]]
No exame em vida em humanos é comumente usado a imunofluorescência direta, em impressão de tecidos como a córnea, mucosa lingual, tecido bulbar do [[folículo piloso]], e ainda através da [[biópsia]] de pele extraída da região cervical — embora o resultado, quando negativo, não seja conclusivo, sendo de extrema importância a realização de [[necropsia]] confirmatória; guarda contudo a vantagem de ser rápida, sensível e específica.<ref name="msb" />
 
A prova do diagnóstico se dá no exame microscópico de tecidos nervosos; a prova biológica se processa com a inoculação em camundongos.<ref name="msb" />
 
Ainda se processa a técnica de tipificação viral, para determinação da cepa; quando aponta resultados inesperados deve ser feito o [[Sequenciamento de DNA|sequenciamento genético]].<ref name="msb" />
 
A avaliação sorológica é feita nos indivíduos imunizados previamente e expostos ao risco de infecção; avaliações semestrais devem ocorrer em todos os indivíduos do grupo de risco.<ref name="msb" />
 
Para o diagnóstico virológico o encéfalo do animal é o tecido eleito (vide fotografia); ao laboratório são remetidas amostras que incluam partes do [[cerebelo]], [[hipocampo]] e [[córtex cerebral]].<ref name="reviso" />
 
=== Tratamento ===
[[Imagem:Rabies patient.jpg|thumb|esquerda|Paciente com raiva em agitação]]
O paciente humano deve ser mantido em isolamento, num local com baixa luminosidade e incidência de ruídos; não pode receber visitas e apenas se permite a entrada de profissionais envolvidos no tratamento, com uso de equipamentos de proteção individual (EPI).<ref name="msb" />
 
Sem tratamento específico, a raiva comporta terapia de suporte: alimentação por [[sonda nasogástrica]], hidratação, controle de distúrbios eletrolíticos e ácido-básicos, da febre e dos vômitos; uso de [[betabloqueador]]es na hiperatividade simpática, entre outros.<ref name="msb" />
 
Confere-se imunidade pela aplicação da vacina antes e depois da exposição, pois, uma vez manifestado o quadro sintomático, o paciente evolui para o óbito.<ref name="msb" />
 
=== Vacina ===
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A primeira [[vacina]] contra a raiva deve-se ao célebre microbiologista [[França|francês]] [[Louis Pasteur]], que a desenvolveu em [[1886]].
 
A vacinação de cães e o tratamento preventivo em humanos são as duas principais formas de controle da raiva.<ref name="vac">{{citar web|url=http://www.scielo.br/pdf/rsbmt/v34n1/4318.pdf |título=Efeito do congelamento sobre a imunogenicidade da vacina contra a raiva produzida em tecido cerebral de camundongo |autor=Avelino Albas et. al.|data=jan-fev, 2001 |publicado=Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 34(1):49-52 |acessodata=fev 2012}}</ref>
 
Diversas formas de vacina foram desenvolvidas e são produzidas, atualmente,<ref name="rsp" /> algumas delas destinadas a uso exclusivo veterinário; todas dependem de adequada conservação para sua eficácia, bem como a depender da espécie a ser imunizada o período de proteção pode variar — como no caso dos bovinos, que são protegidos por apenas 30-45 dias, bastante ampliado se houver uma aplicação de dose de reforço.<ref name="herb" />
 
O avanço das pesquisas da [[biologia molecular]] e da [[engenharia genética]] levaram à criação de vacinas anti-rábicas que se utilizam de apenas partes da estrutura viral, de certos [[epítopo]]s ou ainda de pedaços de [[peptídeo]]s.<ref name="rsp" />
 
A vacina que melhores resultados apresenta em humanos é a desenvolvida a partir de culturas celulares e, destas, aquelas feitas com [[diploide|células diploides humanas]]; essa produção, contudo, é bastante dispendiosa, o que inviabiliza seu uso em países pobres.<ref name="rsp" />
 
A vacina tipo Semple, usada ainda na Índia, por exemplo, tem a possibilidade de produzir acidentes pós-vacinais, que podem levar à morte.<ref name="rsp" />
 
Desenvolvida no [[Instituto de Bacteriologia do Chile]] em [[1954]], a vacina feita a partir do [[cérebro]] de camundongos recém-nascidos foi inicialmente criada para uso em cães mas, a partir da [[década de 1960]], passou também a ser usada em humanos.<ref name="vac" /> Esta vacina é a que se utiliza no Brasil.<ref name="rsp" />
 
Na China foi desenvolvida uma vacina a partir da cultura de células dos rins de [[hamster]]s, aplicada com relativo sucesso; tanto a chinesa quanto a chilena têm a vantagem do baixo custo.<ref name="rsp" />
 
=== A cura, em 2004 ===
{{Artigo principal|Protocolo de Milwaukee}}
No ano de [[2004]] foi registrado o primeiro caso de cura da doença em paciente que não tomara a vacina, publicado nos [[Estados Unidos]], utilizando-se um tratamento que consistia na sedação profunda ([[coma induzido]]) e uso de antivirais.<ref name="prot">{{citar web|url=http://scielo.iec.pa.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-49742009000400008&lng=pt&nrm=iso |título=Protocolo para tratamento de raiva humana no Brasil (relatório) |data=Dezembro de 2009 |autor=Departamento de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil |obra=Epidemiologia e Serviços de Saúde, v.18 n.4 Brasília |acessodata=7.4.2011}}</ref>
 
Este caso, utilizando-se do tratamento que passou a ser chamado [[Protocolo de Milwaukee]], trouxe a possibilidade de cura para uma doença até então considerada letal.<ref name="prot" />
 
Até 2008 o protocolo de Milwaukee havia sido aplicado em 16 casos, mas a técnica somente teve resultado positivo com dois pacientes — a jovem americana e num rapaz brasileiro.<ref name="folha" />
 
=== A cura, no Brasil ===
Com base na experiência americana em 2008, na cidade de [[Recife]], foi aplicado o tratamento num jovem mordido por morcego hematófago que, curado, possibilitou a reunião dos dados e a elaboração do [[Protocolo de Recife]] pelo [[Ministério da Saúde (Brasil)|Ministério da Saúde]].<ref name="prot" />
 
Um rapaz [[Pernambuco|pernambucano]] de 15 anos de idade havia contraído o vírus e desenvolvido a doença; levado para a UTI do [[Hospital Universitário Oswaldo Cruz]], no Recife onde, por ausência de alguns dos remédios indicados no ''protocolo de Milwaukee'', foi utilizada nova forma de tratamento. Após 35 dias de internação, foi declarado curado.<ref name="folha" />
 
== Dia Mundial Contra a Raiva ==
Linha 188:
 
== Situação no Brasil ==
O Brasil possuía, em meados do {{séc|XX}}, uma elevada taxa de incidência de raiva humana, o que levou os governos a editarem normas municipais de maior controle das zoonoses, especialmente da raiva.<ref name="est09">{{citar web|url=http://scielo.iec.pa.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-49742011000400010&lng=pt&nrm=iso|título=Situação da Raiva no Brasil, 2000 a 2009 |autor=Marcelo Yoshito Wada; Silene Manrique Rocha; Ana Nilce Silveira Maia-Elkhoury |data=|dez. 2011 publicado=Epidemiol. Serv. Saúde v.20 n.4 Brasília |acessodata=fevereiro de 2012}}</ref>
 
Em 1973 foi criado o [[Programa Nacional de Profilaxia da Raiva Humana]] com o fim de diminuir a infecção humana através do controle nos animais domésticos, além das medidas profiláticas imediatas para aqueles que tiveram contato com animais raivosos. Essas ações foram efetivadas em lenta progressão, até serem aceleradas em razão do ''Plano de Ação para Eliminação de Raiva Urbana das Principais Cidades da América Latina'', da [[Organização Pan-Americana da Saúde]], de 1983, que estabeleceu como meta-limite o ano de 2012.<ref name="est09" />
 
[[Imagem:Vacina caes gatos df.jpg|esquerda|thumb|Campanha de vacinação antirrábica para cães e gatos da área urbana em Brasília]]
 
O país desenvolveu então o ''Sistema de Informação de Agravos de Notificação'', desenvolvido em 1990, implantado a partir de 1992 e regulamentado apenas em 1998. Por ele todos os casos de raiva passaram a ser de notificação compulsória e imediata.<ref name="est09" />
 
Estudos realizados no país dão conta de que entre os anos 2000 a 2009 houve uma incidência média de 16 casos em humanos ao ano; alguns avanços com a redução dos casos humanos e em cães se deu, especialmente em decorrência do controle destes últimos e, desde 2006, os casos de mortes de animais rábicos também passaram a ser de notificação compulsória, o que é importante para sua vigilância e controle. A despeito da redução urbana, os casos decorrentes do chamado ciclo silvestre têm emergido, onde há reservatórios tais como morcegos, canídeos do mato e macacos.<ref name="est09" />
 
De 1997 a 2003, 84% dos casos em humanos tinham como hospedeiro principal o cão; em 2004 e 2005, contudo, um surto na [[Amazônia]] fez com que a raiva silvestre aérea se tornasse a principal origem, sendo estes dois anos os de maior incidência em humanos no período decenal, com 133 casos; além dos casos humanos, a raiva provoca perda na {{Ilink condicional|pecuária no Brasil|pecuária|[[pecuária]]}}, havendo o decênio 1997-2006 registrado mais de 23 mil casos.<ref name="reviso" /> Antes disso tem-se dados como o do ano de 1993, que apontam 2.294 casos de raiva animal; no ano de 1995 ocorreram, apenas em cães, 1.035 casos.<ref name="prof">{{citar web|url=http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-89101997000600009&script=sci_arttext&tlng=pt |título=Resposta imune humoral de cães à vacina inativada, de cérebro de camundongos lactentes, utilizada nas campanhas anti-rábicas no Brasil |autor=Marilene F. Almeida et. all. |data=Out. 1997|publicado=Rev. Saúde Pública vol. 31 no. 5 São Paulo |acessodata=fevereiro de 2012}}</ref>
 
Em razão disto a principal medida adotada no país para o controle da raiva se dá no ciclo urbano, pela vacinação de cães e gatos, criando-se assim uma proteção imune pela redução dos animais suscetíveis.<ref name="prof" />
 
{{referências|Notas e referências}}