Guillaume de Machaut: diferenças entre revisões

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Machaut se coloca em destaque na produção medieval de poesia musicada, sendo largamente considerado o fundador do gênero da canção polifônica, uma categoria que incluía várias formas diferenciadas como o ''lai'', a ''balada'' e o ''rondeau'', que eram novidade, como já foi observado, entre outras coisas pelo tratamento polifônico do texto, ao contrário das tradições monofônicas anteriores empregadas para o gênero da canção.<ref name="Butterfield"/> As canções, gêneros eminentemente profanos que descendiam de tradições populares, foram preferidas pelos compositores da vanguarda, estando livres dos impedimentos colocados pela Igreja para as técnicas da ''Ars Nova'', e isso se revela também na escolha dos textos, que tratam principalmente do amor cortês e de temas políticos e sociais.<ref>Pearcy, pp. 10-11</ref> Também foram um campo propício para a exploração do espectro das emoções humanas, e Machaut demonstrou grande habilidade no manejo de contrastes entre tempos, cadências, harmonias e ritmos "perfeitos" e "imperfeitos" para sinalizar sentimentos respectivamente positivos e negativos. Ao mesmo tempo, ele destacou-se pela capacidade de criar estruturas integradas através do uso de repetições e variações de motivos e sonoridades.<ref>Bain, Jennifer. "Ballades 32 and 33 and the ''res dalemangne''". In: Leach, Elizabeth Eva (ed.). ''Machaut's Music: New Interpretations''. Boydell & Brewer, 2003, pp. 206-211</ref><ref name="Speculum"/><ref name="Musician"/> Diversas canções foram registradas em versões diferentes, com um variável número de vozes, e tem sido objeto de polêmica se algumas dessas vozes extras deviam ou não ser efetivamente executadas ou se eram escolhas deixadas ao critério do intérprete, pois em alguns casos a combinação de todas ao mesmo tempo parece criar dissonâncias duras, mas isso pode se dever a uma compreensão imperfeita das regras de harmonia da época e dos usos da ''musica ficta'', a erros dos copistas e a um desconhecimento das intenções precisas do autor. Algumas dessas dissonâncias têm sido corrigidas em edições modernas, mas esta prática é questionada.<ref>Hoppin, p. 481</ref><ref name="Boogaart"/><ref name="Performance"/> Ele provavelmente não foi o criador da canção polifônica, uma vez que as fontes medievais são bastante pobres e testemunhos anteriores podem ter sido perdidos, há inclusive evidências de que os avanços nesta direção já estavam adiantados no tempo de seu florescimento, mas parece seguro que ele a levou a um nível de sofisticação inédito e contribuiu decisivamente para sua aceitação em ampla escala, gerando escola.<ref name="Butterfield"/> Segundo Poirion, "é evidente que os temas, os motivos e a linguagem de Machaut vão exercer uma influência difusa sobre todo o lirismo de sua época".<ref>Poirion, p. 278</ref>
 
Apesar disso, e em que pesem as muitas novidades que sua poesia e música apresentam, ele não foi um [[iconoclasta]]. Como assinalou Wilkins, em seu tempo inovações excessivamente radicais não eram apreciadas, preferia-se releituras sutilmente variadas da tradição.<ref name="Chaucer"/> Machaut, com efeito, trabalhou sobre essas tradições antigas, ainda que as tenha diversificado e expandido enormemente, e mesmo seu tratamento de todo o universo emocional, de muitas maneiras inovador, manteve laços com a antiga preferência pela prática de escrever canções para serem cantadas e dançadas e produzirem alegria, associando fortemente a ideia da ''performance'' à concepção original das obras, hábito que seria progressivamente abandonado em favor de uma concepção mais voltada à pura leitura.<ref name="Speculum"/><ref name="Hélène">Basso, Hélène. "L'Espace d'un Recueil Amoureuse"; La Louange des Dames". In: Ducos, Joëlle & Latry, Guy (eds.). ''En un Vergier... : mélanges offerts à Marie-Françoise Notz''. Presses Universitaires de Bordeaux, 2009, pp. 177-196</ref> Elizabeth Leach, uma das principais pesquisadoras de sua obra, afirma que a meta suprema de Machaut com sua arte era produzir felicidade, tanto na esfera pública e política quanto na privada e emotiva, e produzir obras tristes e perturbadoras, especialmente no meio educado, regrado e tradicional da elite em que vivia e para o qual produzia, podia significar a exclusão social.<ref name="Musician"/> Ela esclarece:
 
[[Imagem:Guillaume de Machaut et Bon Espoir - Le Remede de Fortune.jpg|thumb|esquerda|Machaut, infeliz, recebe conselhos da Esperança, em ''Le Remède de Fortune''.]]
 
::"O duplo de desejo de produzir alegria e exprimir a verdade do poeta entram em conflito porque este último não permite uma expressão autêntica da tristeza: canções tristes afugentam a audiência que procura alegria, e por outro lado um cantor não pode garantir a verdade da sua poesia se ela não concorda com seu sentimento pessoal. [...] Ligada intimamente à ''performance'' musical, a poesia do {{séc|XIII}} fundava sua verdade no ser a comunicação direta do 'corpo cantor' do intérprete. Como [[prosopopeia]], sua verdade emocional é cantada, incorporada, e assim atestada pela sua presença ao vivo. No {{séc|XIV}}, contudo, a poesia escrita se torna órfã do 'corpo cantor', e a projeção do sentimento autêntico se torna índice de uma nova espécie de verdade ancorada na escrita. [...] O problema de como compor satisfazendo ao mesmo tempo o sentimento e as demandas dos patronos ou audiências emerge assim como um novo [[''topos]]'' cuja própria discussão passa a atestar a autenticidade do sentimento. [...] A poesia [...] deixa de ser sobre um amante infeliz incapaz de escrever poesia alegre, mas sobrepassa a referir-se a um poeta profissional negociando com sucesso a escrita de poesia encomendada por patronos em uma cultura criativa que prestigia o sentimento autoral autêntico. [...]
 
::"As obras de Machaut, especialmente as líricas, dão voz aos pensamentos de muitos amantes que tentam manter a esperança, mas falham; o manuscrito das suas obras completas contêm muitos exemplos de canções que expressam a tristeza. Mas ao molduraarcabouço do livro como um todo, abrindo com o ''Prólogo'', oferece um meio de interpretar as necessárias vicissitudes da experiência humana — a vida sob o império da Fortuna — mesmo quando não podemos ser sempre verdadeiros em relação às suas demandas. As obras de Machaut mostram a humanidade essencial tanto do fracasso como da tentativa de ter sucesso, da alegria e da tristeza, e a autenticidade tanto do sentimento escrito quanto da verdade da ''performance''. Colocando ambos os universos em conflito, ele se torna capaz de questionar e rejeitar uma vida de desejo em favor de uma vida de esperança, que é a solução consoladora que ele oferece tanto aos leitores como aos ouvintes.
 
::"Há quase trinta anos, Douglas Kelly viu a sublimação do desejo através da esperança empreendida por Machaut como sua mais importante contribuição à doutrina do amor cortês. Mais recentemente, Sylvia Huot chamou isso de 'a consolação da poesia', uma releitura autoconsciente da ''[[A Consolação da Filosofia|Consolação da Filosofia]]'' de Boécio, dirigida a uma estrutura social muito modificada, na qual os referenciais seculares e vernáculos se tornam mais úteis poeticamente do que a [[teologia]], embora isso não os impeça de terem sérias ressonâncias religiosas e devocionais. A referência à esperança torna a experiência amorosa auto-suficiente e, portanto, socialmente segura. Para a audiência, isso faz o prazer sexual ser substituído pelos prazeres do texto (que podiam tratar abundantemente da experiência erótica e assim oferecer prazeres substitutos). Para o poeta a substituição é igualmente valiosa: permite expressar a alegria e a tristeza com prazer e sinceridade mas sem fazer da conquista material do amor uma pré-condição — algo útil para um plebeu e celibatário profissional. Assim preserva-se a sinceridade ao mesmo tempo em que se prova a natureza virtuosa da poesia erótica e amorosa".<ref name="Speculum"/>