Heráldica: diferenças entre revisões

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O uso desses elementos na [[Antiguidade]] foi amplamente disseminado. Escudos de guerreiros, estandartes processionais e emblemas encontrados no Egito, na Pérsia, na Grécia e Roma, entre outros lugares, costumavam apresentar desenhos identificadores. O falcão de [[Hórus]], protetor dos [[faraó]]s, o [[leão de Judá]], identificador da tribo hebraica, e a [[águia de Roma]], representando o poder imperial, são exemplos famosos, mas pouco se sabe sobre as regras de aplicação dessas decorações e seus significados precisos.<ref name="Davies">Fox-Davies, Arthur Charles. [https://en.wikisource.org/wiki/Index:A_Complete_Guide_to_Heraldry.djvu ''A Complete Guide to Heraldry'']. T. C. & E. C. Jack, 1909</ref><ref name="Campos"/>
 
A prática da Antiguidade não pode ser caracterizada como heráldica no senso mais estrito da palavra, embora esteja em sua raiz e em essência almeje os mesmos objetivos. Como hoje é conhecida, a heráldica se articulou lentamente na Europa medieval, consolidando-se em torno do século XII, padronizando usos regionais diferenciados através de uma série de regras que no geral ainda se mantém em vigor, e servindo como um identificador de pessoas, famílias, lugares, nações, e expondo publicamente conquistas, ideologias, valores, dignidades, pertencimentos e ligações de parentesco.<ref name="Davies"/><ref name="Marquês"/><ref name="Campos"/><ref name="Nogueira"/>
 
Tradicionalmente considerava-se que teria se originado da necessidade dos guerreiros serem identificados facilmente em campo de batalha, mas essa opinião foi em parte desacreditada, uma vez que os escudos pintados só podem ser lidos claramente a uma distância pequena. Além disso, registros primitivos apontam que em seus inícios os mesmos guerreiros podiam usar, conforme a ocasião, diferentes emblemas em seus escudos e bandeiras. Isso é bem exemplificado na [[Tapeçaria de Bayeux]] (c. 1070), que retrata a [[conquista normanda da Inglaterra]], onde os guerreiros trazem seus escudos com vários símbolos heráldicos, mas seu uso não é consistente e não foram herdados pelos descendentes daqueles guerreiros. Ao que parece, em vez, é que os brasões tinham uso mais eficiente não nas guerras, mas nos torneios e justas de [[cavalaria]], realizados dentro de um espaço limitado e bem ao alcance da leitura pelo público.<ref name="Davies"/><ref name="Marquês"/><ref name="Campos"/>
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Uma das primeiras representações conhecidas a empregar símbolos heraldicamente está na tumba de [[Godofredo V, Conde de Anjou]], que carrega um escudo de campo azul com leões rampantes, que teria sido concedido por [[Henrique I de Inglaterra|Henrique I]] em 1128, e depois herdado pela descendência do conde.<ref name="Davies"/> Outra representação primitiva é o selo de [[Canuto VI da Dinamarca]], depois usado como símbolo da [[Casa de Estridsen]].<ref>Bartholdy, Nils G. ''Danmarks Våben og Krone''. Kultur Ministeriet, 1995, p. 16</ref> Em Portugal estão entre os primeiros exemplos os escudos da [[Casa de Sousa|linhagem dos Sousões]] encontrados no Claustro de [[Dom Dinis]] do [[Mosteiro de Alcobaça]].<ref name="Marquês"/>
 
Com a aceitação em larga escala das regras de heráldica, e com sua associação principal com a elite (onde se incluíam a [[nobreza]] e o alto [[clero]]), as instituições e os Estados, e com sua importância em termos de hereditariedade, surgiu a necessidade de legalizar e controlar os brasões concedidos e eliminar as repetições ou usurpações. Assim começaram a aparecer os [[rei de armas|reis de armas]], arautos ou heraldos, altos funcionários régios que se responsabilizavam pelo registro dos brasões em listas ou catálogos oficiais e pelo próprio desenho dasde novas armas. NoPara entanto,Adrian apesarFrutiger da"o aceitaçãotermo dasheráldica regrasprovém gerais,da houvepalavra sempre‘heraldo’, muitasque variaçõesna regionaisIdade eMédia cronológicasdesempenhava em[...] seua uso,função ede emdiplomata”. certosNa paísesinterpretação essade regulamentaçãoGabriel teveEysenbach, poros muitoarautos tempo,de poucaarmas efetividade.<ref name="Davies"/>ocupavam-se Nade Germâniatudo eo nosque Paísesestivesse Baixos,relacionado porcom exemploa heráldica, naà [[Idadequal Média]]deram o principalseu controlenome; oficialparticipavam parecenas tercerimônias sidode nocasamento, sentidocoroação dee impedirfuneral usurpaçõesdos dereis; insígniasentregavam as existentes,declarações ede mesmoguerra; camponesesestabeleceram podiamas criarformalidades dos torneios e adotardas umbatalhas, brasãoalém parade sifazerem eos suasavisos famíliasaos comandantes das cidades sitiadas".<ref name="Nogueira"/>
 
No entanto, apesar da aceitação das regras gerais, houve sempre muitas variações regionais e cronológicas em seu uso, e em certos países essa regulamentação teve, por muito tempo, pouca efetividade.<ref name="Davies"/> Na Germânia e nos Países Baixos, por exemplo, na [[Idade Média]] o principal controle oficial parece ter sido no sentido de impedir usurpações de insígnias já existentes, e mesmo camponeses podiam criar e adotar um brasão para si e suas famílias, tornando-=se um costume de ampla penetração social. Já na França, Itália e algumas outras regiões o uso de brasões entre plebeus foi bem mais raro, mas a heráldica em si conhecia a mesma popularidade: era uma língua franca continental. Diz Nogueira que "no início do século XIII o uso de brasões já se encontrava disseminado pelo continente europeu. Se inicialmente o brasão pertencia a alguns grupos militarizados, em menos de um século, o seu uso propagou-se por todos os estratos sociais. Os brasões tornaram-se hereditários, como um bem de família, 'sem falar dos municípios, das igrejas e de diversas corporações [que] utilizavam esta distinção' (Labitte, 1872 : 2). Por volta de 1350 toda a sociedade ocidental, incluindo as classes agrícolas, os utilizava e a partir do século XV os brasões invadem o quotidiano como símbolos de identificação".<ref name="Nogueira"/>
[[Ficheiro:Livro do Armeiro-Mor, Carlos Magno.jpg|thumb|[[Carlos Magno]] e suas armas no ''Livro do Armeiro-Mor''.]]
 
A heráldica tornou-se um elemento típico da cultura europeia, e enquanto a monarquia foi a forma de governo predominante, adquiriu grande importância política e social. Possuir um brasão era a confirmação simbólica do prestígio e poder da família ou do indivíduo, e não admira, desta forma, que em muitos países houvesse extensa legislação para proteger e controlar a concessão e exibição pública de armas. Em seu apogeu, que perdurou até o século XIX, os heraldistas se multiplicaram e passaram a competir em erudição, compilando extensos tratados sobre variados aspectos contidos nos brasões. Neste ímpeto, foram atribuídas armas imaginárias até mesmo a personagens da Antiguidade, como [[Adão]], [[César]] e [[Jesus]], que não as tinham, e nem a heráldica naquele tempo remoto existia. Também foram produzidos neste período florescente numerosos e importantes catálogos de brasões, os [[armorial|armoriais]] ou blasonários, alguns deles com ilustrações da mais alta qualidade estética, a exemplo do ''[[Livro do Armeiro-Mor]]'', português.<ref name="Marquês"/><ref name="Campos"/><ref name="Seixas">Seixas, Miguel Metelo de. [https://lerhistoria.revues.org/1218 "As insígnias municipais e os primeiros armoriais portugueses: razões de uma ausência"]. In: ''Ler História'', 2010 (58):155-179</ref>
 
Na virada do século XIX para o século XX, período em que muitas monarquias europeias foram extintas, as pompas e símbolos associados à nobreza caíram em desuso e se tornaram até certo ponto objeto de ridículo. Por outro lado, em alguns domínios a heráldica sobreviveu sem grandes traumas às transformações republicanas, como na armaria eclesiástica, cívico-estatal e institucional, que de fato parecem ter ganhadoganharam um novo ímpetoimpulso no século XX, disseminando-se por todo o mundo.<ref name="Marquês"/><ref name="Campos"/><ref name="Seixas"/>
 
Ao mesmo tempo, nas décadas recentes a heráldica verdadeiramente se popularizou junto ao cidadão comum, ocorrendo uma forte onda de [[revivalismo]] e a multiplicação exponencial de novos brasões, entrando com força na [[cultura de massa]] e associando-se à nova cultura do [[logotipo]], da sinalização e da [[marca registrada]] comercial. Na esteira deste fenômeno, poucasmuitas vezes não são observadas as regras tradicionais, que têm uma significativa complexidade, ou sequer essas regras são bem conhecidas pelo público leigo, que tem adotado brasões desenhados de todas as formas imagináveis. NaInexistindo ausência de instituiçõesalçadas regulamentadoras do uso de armas pessoais ou institucionais em países republicanos, a diversidade e irregularidade têm sido a tônica, mas nas atuais monarquias há instituições que fiscalizam o campo dos brasões. Paralelamente a isso, proliferam pseudo-autoridades, instituições e websites que prometem pesquisas e levantamentos "científicos" mas na verdade enganam seus clientes com dados falsificados ou fantasiosos, enquanto estudiosos sérios lutam para revalorizar corretamente esta antiga arte.<ref name="Marquês"/><ref name="Nogueira">Nogueira, Sónia Patrícia Marques. [https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/1563/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20S%C3%B3nia%20Patr%C3%ADcia%20_%20Do%20bras%C3%A3o%20%C3%A0%20Marca.pdf ''Tradição e Inovação na Identidade Visual dos Municípios Portugueses: Do Brasão à Marca'']. Dissertação. Universidade da Beira Interior, 2012</ref>
 
Definida tradicionalmente como "a arte dos brasões", maisMais do que uma arte e uma antiga tradição, a heráldica é hoje considerada academicamente uma valiosa auxiliar da ciência, e seu estudo permite desvendar importante conhecimento sobre costumes, sociedade, política, história, [[iconografia]], [[genealogia]] e outros campos do saber.<ref name="Marquês"/><ref name="Campos"/> Definida tradicionalmente como "a arte dos brasões", é bem mais larga do que isso e tem muitas definições entre os estudiosos. Joel Serrão, por exemplo, no ''Dicionário de História de Portugal'', a descreve como "uma ciência e uma arte que estuda, ordena e elabora os símbolos ou ‘marcas’ da personalidade singular ou colectiva, moral ou territorial". Sónia Patrícia Nogueira ofereceu uma abrangente descrição:
 
::"A importância da heráldica é evidente. Nas áreas da identificação e da cronologia é um precioso auxiliar de investigação. Como núcleo de símbolos gráficos é um contributo irrefutável para a história, os estudos da simbólica e a história da arte. Eysenbach (1848 : 2) afirma que a heráldica é realmente 'uma ciência com grande importância social, que tinha as suas leis designadas leis de armas [exigindo-se] dos reis [...] o exercício público desta ciência. De linguagem misteriosa, [...] de utilização universal, [...] ela era a pedra basilar do edifício feudal'. A sua simbologia detém uma concepção religiosa e guerreira, evidente na Idade Média considerando o objectivo dos escudos, e uma função social, patente na questão da identificação, quase sempre relacionada com a linhagem e a importância civil. Mas embora a heráldica de família seja a heráldica propriamente dita, ela estendeu-se, ao longo do tempo, a outros campos, como a heráldica eclesiástica, real, de corporação militar, de domínio, comercial, desportiva, entre muitas outras áreas, sendo amplo o seu campo de acção e múltiplas as suas subdivisões. [...]
Ao mesmo tempo, nas décadas recentes a heráldica verdadeiramente se popularizou, ocorrendo uma forte onda de [[revivalismo]] e a multiplicação exponencial de novos brasões. Na esteira deste fenômeno, poucas vezes são observadas as regras tradicionais, que têm uma significativa complexidade, ou sequer essas regras são bem conhecidas pelo público leigo, que tem adotado brasões desenhados de todas as formas imagináveis. Na ausência de instituições regulamentadoras do uso de armas pessoais ou institucionais em países republicanos, a diversidade e irregularidade têm sido a tônica. Paralelamente a isso, proliferam pseudo-autoridades, instituições e websites que prometem pesquisas e levantamentos "científicos" mas na verdade enganam seus clientes com dados falsificados ou fantasiosos, enquanto estudiosos sérios lutam para revalorizar corretamente esta antiga arte.<ref name="Marquês"/>
 
::"Hoje em dia, os brasões são frequentemente os únicos elementos de que se dispõe para situar objectos, monumentos e documentos no espaço e no tempo. Embora a tradição heráldica ainda se mantenha viva em muitos países, como a Inglaterra, a Escócia ou a Suíça, ela é sobretudo notável pela quantidade de códigos a que deu origem e que regem grande parte da história simbólica social, das bandeiras às fardas, das etiquetas de produtos alimentares e vitivinícolas, passando pelos símbolos de partidos políticos ou de clubes de futebol".<ref name="Nogueira/">
Definida tradicionalmente como "a arte dos brasões", mais do que uma arte e uma antiga tradição, a heráldica é hoje considerada academicamente uma valiosa auxiliar da ciência, e seu estudo permite desvendar importante conhecimento sobre costumes, sociedade, política, história, [[iconografia]], [[genealogia]] e outros campos do saber.<ref name="Marquês"/><ref name="Campos"/>
 
== As regras da Heráldica ==