Religião na Roma Antiga: diferenças entre revisões

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[[Imagem:Pantheon interior.jpg|thumb|upright=21.07|Interior do [[Panteão (Roma)|Panteão]], templo de todos os deuses, em Roma (hoje transformado em igreja).]]
A '''[[religião]] na [[Roma Antiga]]''' caracterizou-se pelo [[politeísmo]], com elementos que combinaram influências de diversos cultos ao longo de sua história. Desse modo, em sua origem, [[Mitologia etrusca|crenças etruscas]], [[Mitologia grega|gregas]] e orientais foram sendo incorporadas aos costumes já tradicionais de acordo com sua efetividade.
 
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== ''Pietas'' ==
{{APArtigo principal|Piedade (virtude){{!}}Piedade}}
Segundo os pesquisadores, a religião desempenhava um papel fundamental na definição da sociedade e nas relações de poder. Ao participar dos cultos, era garantida a ''[[pax deorum]]'' ("paz divina", em [[latim]]), a harmonia civil e a maior integração destas comunidades no império levando a uma maior integração de cultos relacionados ao poder imperial<ref>BELTRÃO, Cláudia. 2011: 11.</ref>.
 
Dentro do caráter social da religiosidade romana, a importância que é estabelecida nas relações pessoais é expressa pelo termo latino ''[[pietas]]'', literalmente traduzido como "piedade". Apesar de sua ligação com o verbo ''piare'' ("apaziguar", "apagar uma falta", "conjurar" um mau presságio), a ''pietas'' designava a observação escrupulosa dos rituais, mas também o respeito aos relacionamentos entre as pessoas no próprio âmbito social <ref>{{harvnb|Eliade, |2011: |p=109.}}</ref>. Para um filho, a ''pietas'' consistia em obedecer ao pai, e ao mesmo tempo existia a ''pietas'' que os membros de um grupo deviam à cidade que pertenciam. Contudo, mais importante do que esses deveres era a ''pietas'' com relação aos deuses <ref name="Eliade, 2011: 110">{{harvnb|Eliade, |2011: |p=110.}}</ref>. As [[Humanismo|ideologias humanitárias]] dos séculos XVIII e século XIX tentaram retomar essa concepção; todavia, dessacralizaram a velha concepção da ''pietas'' romana. A ''pietas'' também era representada em moedas por objetos de culto ou como uma figura feminina realizando sacrifícios com um fogo. Ela tinha tal importância na vida cotidiana romana que possíveis falhas durante o ritual (daí a ideia de impiedade) eram uma questão permanente para cuidados.
 
== O sacrifícioSacrifício ==
[[Imagem:Roman sacrifice Louvre Ma992.jpg|thumb|upright=0.9|esquerda|''Sacrifício romano'',<small> relevo em mármore no [[Museu do Louvre]]</small>]]
Tanto no culto público quanto no privado, o sacrifício consistia na oferenda de determinada matéria alimentar. Cereais, uva, vinho e principalmente vítimas animais. Efetuavam-se [[Libação|libações]] preliminares sobre o lar portátil (''[[foculus]]''), que representava o ''foculus'' do sacrificante, e situava-se em frente ao [[templo]], ao lado do [[altar]] <ref name="Eliade, 2011: 115">{{harvnb|Eliade, |2011: |p=115.}}</ref>. A parte reservada aos deuses (fígado, pulmão, coração e alguns outros pedaços) era queimada sobre o altar. A carne era consumida pelo sacrificante e por seus companheiros no culto privado, e pelo corpo de sacerdotes nos sacrifícios celebrados em favor do Estado.
 
== A tríade capitolina ==
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| caption3 = ''Minerva'', estátua no Ninfemburgo em [[Munique]]
}}
Ao contrário dos [[Grécia Antiga|gregos]], que desde cedo tinham organizado um [[Mitologia grega|panteão]] estruturado, os romanos apresentavam, no começo de sua época histórica, apenas um agrupamento hierárquico das divindades <ref name="Eliade, 2011: 115"/> . A tríade arcaica era composta por [[Júpiter (mitologia)|Júpiter]], [[Marte (mitologia)|Marte]] e [[Quirino]], completada por [[Jano]] e [[Vesta]]. Na qualidade de deus dos "começos", Jano foi colocado no topo da lista, e Vesta, protetora da cidade, no fim. Júpiter é por excelência o deus soberano, celeste e fulgurante, regente da justiça e fiador da fecundidade<ref name="Eliade, 2011: 116">{{harvnb|Eliade, |2011: |p=116.}}</ref>. Marte representava entre todos os povos itálicos o deus guerreiro. Quirino é solidário da comunidade dos ''viri'', a reunião do povo romano.
 
Quanto a Jano e Vesta, sua incorporação à tríade arcaica dá continuidade a uma tradição [[Indo-europeus|indo-europeia]] <ref name="Eliade, 2011: 116"/>. Espacialmente, Jano encontra-se nos limiares das casas e nas portas. No ciclo temporal, é ele quem rege os começos do ano. O fechamento das portas do [[templo de Jano]] em Roma, ocorrido raras vezes, simbolizava que o [[Império Romano|império]] estava em paz. O nome de Vesta deriva de uma raiz indo-europeia que significa "queimar", pois o fogo perpétuo constitui o lar de Roma. Geralmente, os templos deveriam ser inaugurados e orientados segundo as quatro direções celestes (ter quatro cantos, ser quadricular), mas a [[Templo de Vesta|casa da deusa Vesta]] não deveria ser inaugurada, visto que toda a força dela está sobre a terra, por isso seu santuário é circular: é uma ''aedes sacra'', não um ''templum'' <ref name="E117"/>.
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Sob a dominação etrusca, a velha tríade Júpiter, Marte e Quirino perde sua atualidade, sendo substituída pela tríade Júpiter, [[Juno]] e [[Minerva]], instituída na época dos [[Tarquínios]] <ref name="E117"/>. Devido à influência etrusca e helena, as divindades eram representadas em estátuas antropomórficas e com atributos distintos. Júpiter Optimus Maximus, como passa a ser chamado, é apresentado aos romanos sob a imagem modificada do [[Zeus]] heleno, e [[Templo de Júpiter Ótimo Máximo|seu templo]] era considerado o principal templo de Roma.
 
Juno era provavelmente considerada a mais importante das deusas romanas, mas também podia ser desconcertante. Seu nome latino, Juno, deriva de uma raiz que exprime "a força vital" <ref name="E117"/> . Suas funções são múltiplas: rege a fecundidade das mulheres, mas também o começo dos meses. No [[Monte Capitolino|Capitólio]] ela era ''Regina'' ("rainha"), título que refletia uma tradição de realeza sagrada.
 
Minerva á a padroeira das artes e dos artesãos. O nome é provavelmente itálico (derivado de "''men''", que designa toda e qualquer atividade do espírito) <ref name="E117"/> . Os romanos a receberam por intermédio dos [[etruscos]], mas já na [[Etrúria]], [[Menrva]] (Minerva) representava uma adaptação de [[Palas Atena]].
 
A tríade capitolina não prolongou nenhuma tradição romana. Júpiter era o único representante da herança indo-europeia. A associação entre Juno e Minerva foi obra dos etruscos <ref name="E117">{{harvnb|Eliade, |2011: |p=117.}}</ref>. Para eles, a tríade divina também exercia um papel na hierarquia do panteão. Sabe-se, por exemplo, que ela presidia a fundação dos templos.
 
== Colégios sacerdotais ==
=== Flâmines ===
 
=== Os flâmines ===
{{Artigo principal|Flâmine}}
[[Imagem:Ara pacis fregio lato ovest 2 B.JPG|thumb|esquerda|upright=1.0|Relevo com os flâmines. Altar da Paz, em [[Roma]]]]
 
O culto público, sob o controle do Estado, era efetuado por certo número de oficiantes e confrarias religiosas - no entanto, esses cargos sacerdotais não eram separados das [[Magistrado|magistraturas]] regulares do Estado. Na época da [[monarquia romana]], o [[Lista de reis de Roma|rei]] ocupava o primeiro posto na hierarquia sacerdotal: ele era o [[rei das coisas sagradas]] (''rex sacrorum'')<ref>{{harvnb|Eliade, |2011: |p=112.}}</ref>. Depois do rei, vinham, na hierarquia sacerdotal, os 15 [[flâmine]]s. Em primeiro lugar, os três flâmines maiores: os de [[Júpiter (mitologia)|Júpiter]] ([[Flâmine Dial]]), de [[Marte (mitologia)|Marte]] ([[Flâmine Marcial]]) e de [[Quirino]] ([[Flâmine Quirinal]]). Os flâmines não formavam uma casta e não consistiam um colégio. Cada flâmine era autônomo e ligado a uma divindade <ref>Beltrão, {{harvnb|Rosa|2006: |p=14.}}</ref>. O flâmine de Júpiter era repleto de proibições: não podia se afastar de Roma, não devia aparecer despido sob o céu (aos olhos de Júpiter), nem ver o [[exército romano]], nem montar a cavalo, devia evitar o contato com as coisas impuras e os mortos ou com aquilo que evocava a morte <ref>{{harvnb|McKeown, |2010: |p=89}}</ref>.
 
Houve um intervalo de quase setenta anos para a nomeação do Flâmine Dial desde a morte do último em {{AC|86|x}} Um novo sacerdócio só foi inaugurado nos anos {{AC|20|x}}, sob o [[Principado romano|principado]] de [[Augusto]] {{nwrap|r.|{{AC|27|x}}|{{DC|14|x}}}} <ref>Beltrão, {{harvnb|Rosa|2006: |p=149.}}</ref>. Este evento, para além de outros, foi celebrado no grande friso do [[Altar da Paz]] (''Ara Pacis''), mostrando Augusto na frente e os outros quatro flâmines o seguindo. A mensagem é a de que o dano causado pelo lapso foi afastado pelo novo pontífice máximo.
 
[[Imagem:Augustus as pontifex maximus.jpg|thumb|upright=0.8|''Augusto como pontífice máximo''<br><small>Estátua no [[Museu Nacional Romano]]</small>]]
 
=== O pontíficePontífice ===
{{APArtigo principal|Pontífice}}
Ao lado flâmine Dial, o [[pontífice]] (''pontifex'') desempenhava, no círculo sagrado do rei, uma função complementar. O [[colégio dos pontífices]], mais precisamente o [[pontífice máximo]] (''pontifex maximus''), de quem os outros eram apenas o prolongamento, dispunha ao mesmo tempo de liberdade e de iniciativa <ref name="E113">{{harvnb|Eliade, |2011: |p=113.}}</ref>. O pontífice máximo era o líder e falava pelo colégio no [[Senado romano|senado]]. Comparecia às reuniões em que se decidiam sobre os atos religiosos, respondia pelos cultos sem titulares e fiscalizavam as festas. No tempo da [[República Romana]], incumbia ao pontífice máximo nomear os flâmines maiores e as [[Vestal|vestais]], sobre os quais possuía poderes disciplinares e ser o conselheiro e também às vezes, o representante destas últimas. O colégio dos pontífices era composto por 9 membros desde {{AC|300|x}}, em outros momentos, eram eleitos por 17 das 35 tribos <ref name="B143"/>.
 
=== As vestaisVestais ===
{{APArtigo principal|Vestal}}
[[Imagem:Chief Vestal.jpg|thumb|esquerda|upright=0.8|Vestal]]
As seis [[Vestal|vestais]] estavam vinculadas ao colégio pontificial. Escolhidas entre os seis e os dez anos de idade pelo pontífice máximo, as vestais eram ordenadas por um período de 30 anos <ref name="E113"/>. Protegiam o povo romano alimentando o fogo da cidade, que tinham a obrigação de nunca deixar extinguir. Sua força religiosa dependia da virgindade. A condenação de uma virgem vestal por má conduta sexual era um evento raro, porém significativo. A punição era parte de um ritual de purificação do Estado. Por ser sacrossanta, a vestal não podia ser executada. Por isso, era confinada numa câmara subterrânea com um cama, uma lamparina e um pouco de água e comida, largada para a morte. Cúmplices do sexo masculino eram açoitados publicamente até a morte <ref>{{harvnb|McKeown, |2010: |p=27.}}</ref>.
 
As virgens vestais tinham privilégios dos quais nenhuma outra mulher em Roma podia desfrutar: eram mantidas em condições de luxo, com dinheiro público; eram livres da autoridade paternal; guardavam testamentos e tratados, e podiam elas mesmas ter um testamento; podiam dar depoimentos em cortes sem fazer juramento; até os magistrados mais condecorados tinham que ceder passagem a elas <ref>{{harvnb|McKeown, |2010: |p=26.}}</ref>.
 
As funções desses três tipos de sacerdotes era aconselhar o Senado sobre todos os assuntos referentes aos ''sacra'', aconselhar o povo em temas da lei sagrada, incluindo a lei dos mortos, supervisionar os assuntos da lei familiar (adoção, herança, etc.) e manter os registros do Estado <ref name="B143"/>.
 
=== Outros colégios ===
O colégio augural era tão antigo e tão independente quanto o colégio dos pontífices. Mas o segredo da disciplina foi bem guardado. Sabe-se apenas que os [[áugure]]s não era convocado para desvendar o futuro - seu papel era esclarecer se este ou aquele projeto era um sinal divino<ref>{{harvnb|Eliade, |2011: |p=114.}}</ref>. O colégio dos áugures tinha o mesmo número dos pontífices e eram supervisores e conselheiros sobre os rituais e procedimentos concernentes aos [[auspício]]s. Com o tempo, certas técnicas divinatórias de origem helênica e etrusca foram introduzidas em Roma. O método dos [[arúspice]]s, que consistia em examinar as [[Víscera|entranhas]] da vítimas animais, era uma prática etrusca. Existe uma lista de 60 membros <ref name="B143">Beltrão, {{harvnb|Rosa|2006: |p=143.}}</ref>. Eram ocasionalmente consultados pelo Senado.
 
Existia o colégio dos [[sálios (sacerdócio)|sálios]] (''Salii''), composto por dois grupos de doze membros cada, que dançavam e cantavam na cidade nos festivais de março e outubro. Os lupercos (''Luperci'') consistiam de dois grupos também, mas o número de membros é desconhecido <ref name="B143"/> . Eles corriam pelas ruas da cidade no festival da [[Lupercália]], batendo nas pessoas com chicotes de pele de cabra. Outro colégio era dos [[Irmãos Arvais]] (''Fratres Arvales''), doze membros que cuidavam da manutenção do culto da deusa [[Hemera|Dia]], numa gruta fora de Roma <ref name="B143"/>. Estes três colégios não eram consultados pelo [[Senado romano|senado]].
 
== O cultoCulto privado ==
[[Imagem:Ancient Bar, Pompeii.jpg|thumb|direita|upright=1.0|Afresco de [[Pompeia]] com a imagem do gênio no centro, flanqueado pelos ''Penates'' e os ''Lares''. No extremo esquerdo está [[Mercúrio (mitologia)|Mercúrio]], e no extremo direito, [[Baco]].]]
Os romanos expressavam sua devoção aos deuses com [oferendas nos [[templo]]s e, em [[santuário]]s domésticos, aos deuses [[lares]], embora fizessem, também, [[Procissão|procissões]], orações e sacrifícios públicos. O culto doméstico não parece ter mudado muito durante a história romana. O fogo doméstico constituía o centro do culto e nele eram oferecidos sacrifícios alimentares quotidianos. O culto endereçava-se aos [[penates]] e ao lares, personificações mítico-rituais dos antepassados <ref name="Eliade, 2011: 110"/>, e ao [[Gênio (mitologia romana)|gênio]], espécie de "duplo" que protegia o indivíduo. O gênio era a essência abstrata do indivíduo, não existindo em uma forma corpórea.
 
Os ritos funerários, que terminavam no nono dia após o enterro ou [[inumação]], prolongavam-se no culto regular dos "pais defuntos" (''divi parentes'') ou [[manes]]. Duas festas eram-lhes consagradas: as [[Parentália]], em fevereiro, e a [[Lemúria (festival)|Lemúria]], em maio <ref name="E111">{{harvnb|Eliade, |2011: |p=111.}}</ref>. Durante as Parentália, os magistrados não ostentavam suas [[insígnia]]s, os templos eram fechados, os fogos extintos sobre os altares e não se contraía casamento. Os mortos retornavam e se serviam do alimento depositado sobre os túmulos. Mas era sobretudo a ''pietas'' que apaziguava os antepassados.
 
Durante os três dias dos Lemúria (9, 11 e 13 de maio), os mortos ("lemures") retornavam e visitavam as casas de seus descendentes <ref name="E111"/>. A fim de apaziguá-los e de impedir que arrastassem consigo alguns vivos, o ''[[Pater familias|paterfamilias]]'' enchia a boca de [[fava]]s pretas e, enquanto cuspia, pronunciava nove vezes as seguintes palavras: "Com estas favas redimo a mim e os meus." Finalmente, fazendo barulho com um objeto de bronze para amedrontar as sombras, repetia nove vezes: "Manes de meus pais, afastem-se daqui."<ref>BUSTAMANTE, Regina M. C. ''Festa das Lemúria: os mortos e a religiosidade na Roma Antiga.'' Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1312828923_ARQUIVO_ANPUH_2011_ReginaBustamante_08ago.pdf.</ref>
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Outros festivais públicos não estavam no calendário e ocorriam devido a outros eventos. O [[Triunfo romano|triunfo]] de um general romano era celebrado como o cumprimento de votos religiosos, apesar destes tenderem a ser ofuscados pelo significado político e social do evento. Durante a [[República Romana|República]], a elite política competia para superar uns aos outros em exibições públicas, e aos jogos foram incluídas competições de [[gladiador]]es. No [[Principado romano|Principado]], todo tipo de exibição ficou sob o controle do [[Imperador romano|imperador]]: os maiores foram subsidiados pelos próprios imperadores, e os eventos menores eram providenciados por magistrados como um dever sagrado. Festivais e jogos adicionais podiam celebrar aniversários. Outros, como os tradicionais jogos seculares republicanos, marcavam uma nova era (''saeculum'') e eram importantes para manter valores tradicionais e uma identidade romana comum.
 
O significado e origem de muitos festivais arcaicos confundiam até mesmo a elite intelectual romana, mas quanto mais obscuros eram, maior era a oportunidade para a reinvenção e reinterpretação - algo que não foi perdido nem no programa de reforma religiosa de [[Augusto]], nem com seu "criador de mitos" da época, [[Ovídio]]. Nos [[Fastos Capitolinos]], um longo poema escrito por este e que trata dos feriados romanos de janeiro a junho, Ovídio apresenta um olha único ao saber antigo de Roma e a costumes populares e práticas religiosas que se tornam imaginativas, divertidas e indecentes. É um trabalho descritivo, de imaginação e etimologia poética que reflete o amplo humor e espírito burlesco de respeitáveis festivais como os da [[Saturnália]], [[Consuália]] e a festa de [[Ana Perena]] nos [[Calendário romano|Idos]] de março, onde Ovídio trata o assassinado do recém-deificado [[Júlio César]] como totalmente fortuito para as festividades entre a população romana.
 
Todavia, calendários oficiais preservados de diferentes épocas e lugares também mostraram a flexibilidade na omissão e adição de eventos, indicando que não havia um calendário estático e autoritário exigido. No final do império, sob regras cristãs, novos festivais cristãos foram incorporados pelo quadro romano que já existia, ao lado de pelo menos alguns dos festivais tradicionais.
 
== Rituais de interação religiosa ==
{{Sacerdócios da Roma Antiga}}
Com a expansão de Roma, houve uma gradual adoção dos ritos romanos nas cidades do império por diversos motivos, como a obtenção de direitos políticos, a existência de comunidades romanas nessas cidades e elites locais com interesses nos cultos romanos, mas o principal motivo gerador dessa mudança foram as relações entre Roma e essas cidades como a presença do exército romano ou os laços sociais com Roma, por exemplo<ref name="Bel7">BELTRÃO, Cláudia. (2011) p.7</ref>
 
=== ''Interpretatio'' ===
O principal mecanismo pelo qual a cultura romana teria entrado nas [[Províncias romanas|províncias]] seria a lei. Dentre esses mecanismos se destaca a ''interpretatio'', através da qual se aceitava a equivalência entre os deuses locais e deuses estrangeiros através dos seus atributos em comum. É por isso que a visão comum que se tem da religião romana é que é derivada da religião grega, já que essa equivalência é bastante evidente nesse caso. O termo ''interpretatio'' seria mais correto do que o termo [[sincretismo]], devido ao sentido pejorativo que este recebeu na época moderna<ref name="Bel9">BELTRÃO, Cláudia. Interações religiosas no Mediterrâneo romano:práticas de''acclamatio'' e de ''interpretatio'', {{harvnb|Rosa|2010|p.=9.}}</ref>
 
Os casos mais famosos da ''interpretatio'' são provenientes da comparação entre deuses romanos e gregos: [[Zeus]] e Júpiter, [[Ares]] e Marte, [[Atena]] e [[Minerva]] e [[Hera]] e [[Juno]]. Porém, outros deuses vindos das províncias também foram associados, como o celta [[Dagda]] e Júpiter e a [[frígia]] [[Cibele]] e Magna Mater.<ref>BELTRÃO, Cláudia. 2011: 1.</ref>.
 
=== ''Acclamatio'' ===
Na [[Roma Antiga]], as divindades romanas tinham dias regulares de festas, mas sua "presença" não era certa, precisando do convite - a um ritual, festival ou a vir em socorro dos celebrantes - e do esforço daqueles que a convidam para atrair sua presença. Um desses recursos é a ''acclamatio''<ref>BELTRÃO, Cláudia. 2011: 12.</ref>. O termo ''acclamatio'' remete à criação de versos para "pedir em voz alta em favor ou contra alguém"<ref>ERNOUT-MEILLET, 2001: 124-125.</ref>.
 
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* Função de ''instauratio'' (repetição), que servia para reconciliar alguém com uma divindade ou para retomar um rito no qual tenha ocorrido alguma falha, o que era mais comum<ref name="Bel7"/>.
 
=== ''Euocatio'' ===
A ''euocatio'' era um ritual antigo de guerra, realizado no acampamento romano, que prometia às divindades dos povos inimigos que seriam recebidas em Roma e cultuadas. Dessa forma, primeiro convidava a divindade com a ''acclamatio'' e, depois, se realizava a ''euocatio''<ref name="Bel9"/>. Esse ritual "revela uma concepção indo-europeia totalmente oposta à dos [[semitas]]: o deus adversário não é um inimigo que tem que morrer com seu rei e com seu povo; é disponível e assimilável"<ref>BAYET, 1984: 122.</ref>. Para Le Bonniec, a ''euocatio'' seria um rito de exceção; para outros historiadores, ''euocatio'' seria um dos fundamentos da ''interpretatio''<ref name="Bel9"/>.
 
== Cultos estrangeiros ==
Na Roma Antiga,com o passar dos séculos, diferentes cultos e divindades foram incluídos ao sistema religioso da cidade. Embora por muito tempo as pesquisas históricas tenham apontado para uma imutabilidade da realidade [[ritual]], novas tendências vêm sendo direcionadas para um intenso processo de apropriações e renovações dos cultos estrangeiros.<ref name="BELTRÃO, C. A Religião na Urbs">BELTRÃO, C. A Religião na Urbs.{{harvnb|Rosa|2006}}</ref>
 
Apesar da tolerância que os romanos tinham com os cultos, deuses, deusas e ritos estrangeiros, esta não era de princípio. Ao que tudo indica, eles eram tolerantes ao que não parecia ser perigoso, e o contrário ocorria quando algo lhes indicava perigos, como no caso do incidente das [[Bacanal|Bacanais]] ocorrido durante a [[República Romana|República]] e citado em [[Tito Lívio]]<ref>''História de Roma'', livro 5, parágrafo 39</ref>. Porém, no geral, não tinham problemas com muitos cultos e divindades pela semelhança que estes tinham aos seus tradicionais - a ''interpretatio'' explicada acima.<ref name="BELTRÃO, C. A Religião na Urbs"/>
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Mediante uma aceitação formal do [[Senado romano|senado]], que possuía posição central na dinâmica da religião, incluindo os cultos, templos e os festivais, muitos cultos estrangeiros entraram na cidade de [[Roma]]. A "permissão" de entrada ocorria quando a religiosidade do "outro" era atestada como não perigosa à cidade e ao povo romano.
 
Variando no tempo, na divindade, na necessidade e na ocasião de sua entrada, alguns deuses e deusas tiveram seus cultos e [[Festivais romanos|festivais]] incluídos no [[Calendário romano|calendário oficial romano]], assumindo regularidade, aumentando a importância e tornando-se público, ''pro populo'', ou seja, com suas despesas bancadas pelo Estado romano e direcionados ao povo de Roma.<ref>BELTRÃO. C. Lectisternium: banquete ritual e ordem sagrada na Roma Republicana.{{harvnb|Rosa|2012}}</ref>
 
A exemplo dessa integração e oficialidade dos cultos, temos o caso de [[Magna Mater]], que tem sua entrada oficial em Roma no {{AC|{{séc|III}}|x}}, bem como o de [[Ísis]]no {{DC|{{séc|I}}|x}}
 
===O cultoCulto de Ísis ===
{{Artigo principal|Ísis}}
[[Imagem:4 Pompei0030.jpg|thumb|upright=1.0|esquerda|Templo da deusa egípcia [[Ísis]] em [[Pompeia]]]]
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Porém, o culto só foi oficialmente autorizado pelo imperador [[Calígula]] ({{DC|37-41|x}}), que também foi o responsável pelo culto ser introduzido no [[calendário romano]], que era organizado de acordo com as [[Festivais romanos|datas festivas]]. Ísis era a deusa de devoção de Calígula<ref>[Petit, P. ''Histoire Générale de l'Empire Romain, 1, Le Haut-Empire (27 av. J.-C. - 161 ap. J.-C.)''. Paris: Éditions du Seuil («Univers Historique»), 1974.]</ref><ref>[[Suetônio]], ''Vida de Calígula'', 57.</ref> e de muitos outros romanos. O culto à deusa também foi conhecido em outras partes do mundo antigo, como a [[Britânia (província romana)|Britânia]], pois, com a expansão do [[Império Romano]], expandiram-se também seus cultos e costumes, no processo cultural que chamamos de [[romanização]]. Ísis foi facilmente aceita pela população romana nas [[Províncias romanas|províncias]], e o fato de seu culto ter sido adotado por um imperador facilitou esse processo.
 
===O imperialismoImperialismo romano e os "outros" ===
A partir dos processos de [[romanização]], que se estabeleceram na relação entre as [[Identidade cultural|identidades culturais]] [[Província romana|provinciais]] e a [[Cultura da Roma Antiga|cultura romana]], a cidade de Roma teve acesso e ativa interação com cidades, povos, culturas e religiões diferentes da sua e diferentes entre si, o que levou, inicialmente, a um intenso choque de costumes e hábitos.
 
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Observando-se a situação da integração religiosa das províncias em relação ao imperialismo romano, destaca-se mais uma vez a questão da ''interpretatio'', que pela definição das professoras Norma Musco Mendes e Uiara Otero, pode ser entendida como
<blockquote>
''"a identificação dos deuses nativos com equivalentes romanos, seja pela associação do nome do deus nativo à divindade romana, seja pela latinização pura e simples do nome da divindade indígena, o que comumente e erroneamente nos faz acreditar, por exemplo, que divindades como Júpiter e Zeus eram a mesma, porém elas foram interpretadas, a partir de semelhanças, e retratadas como uma só, por fins, normalmente, políticos. Somando-se a isso, percebe-se, e ainda a partir dos estudos das autoras acima citadas, que a integração de novas divindades, cultos e festivais não se fundamentava na benevolência, mas no temor e na precaução em não desafiar os deuses dos ‘outros’, os quais poderiam ser úteis aos romanos."''<ref>MENDES;OTERO, {{harvnb|Mendes|Otero|2004: |p=22.}}</ref>
</blockquote>
 
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{{Referências|col=3}}
 
== Bibliografia ==
{{Refbegin|2}}
* ELIADE,{{citar livro|sobrenome=Eliade|nome=Mircea. ''|título=História das crenças e das ideias religiosas''. |local=Rio de Janeiro: |editora=Zahar, |ano=2011.|isbn=9788537801123|ref=harv}}
* FUNARI,{{citar livro|sobrenome=Funari|nome=Pedro Paulo. ''|título=Grécia e Roma''. |editora=São Paulo: |local=Contexto, |ano=2002.|isbn=9788572441605|ref=harv}}
* McKEOWN,{{citar livro|sobrenome=McKeown|nome=J.C. ''|título=O livro das curiosidades romanas''. |local=São Paulo:|editora=Gutenberg, |ano=2010.|isbn=978-8580620047|ref=harv}}
* BELTRÃO,{{citar Cláudia.livro|sobrenome=Rosa|nome=Claudia ''Beltrão da|capítulo=Interações religiosas no Mediterrâneo romano'': práticas de ''acclamatio'' e de ''interpretatio''.|título=Memórias do Mediterrâneo Antigo|subtítulo=Interações culturais no Mediterrâneo Antigo|editor-nome=Maria Regina|editor-sobrenome=Candido|local=Rio de Janeiro.|editora=NEA/[[Universidade 2011.Estadual do Rio de Janeiro|UERJ]]|ano=2010|páginas=42-61|ref=harv}}
* {{citar livro|sobrenome=Rosa|nome=Claudia Beltrão da|capítulo=''Interpretatio'', ''solo'' e as interações religiosas no Império Romano|título=Saberes e Poderes no Mundo Antigo|subtítulo=Estudos íbero-latino-americanos|volume=Vol. I - Dos Saberes|editor-nome1=Fábio|editor-sobrenome1=Cerqueira|editor-nome2=Ana Teresa|editor-sobrenome2=Gonçalves|editor-nome3=Edalaura|editor-sobrenome3=Medeiros|editor-nome4=José Luís|editor-sobrenome4=Brandão|local=Coimbra|editora=Impressa da Universidade de Coimbra|série=Hvmanitas Svpplementvm|isbn=978-989-26-0623-1|ano=2013|url=https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/29725/6/Saberes%20e%20poderes%20Vol.%20I.pdf|doi=10.14195/978-989-26-0624-8_15|páginas=185-207|ref=harv}}
* BELTRÃO, Cláudia. ''Interpretatio'', ''solo'' e as interações religiosas no Império Romano. In: GONÇALVES, A.T. et al. ''Saberes e Poderes''. Rio de Janeiro, 2011.
* BELTRÃO,{{citar livro|sobrenome=Rosa|nome=Claudia. ''Beltrão da|capítulo=A Religião na Urbs''. In MENDES, |editor-nome1=Norma Musco; SILVA, |editor-sobrenome1=Mendes|editor-nome2=Gilvan da Ventura (orgs.). |editor-sobrenome2=Silva|título=Repensando o Império Romano: perspectiva socioeconômica, política e cultural. |local=Rio de Janeiro:|editora=Editora Mauad;Muad e Editora da [[Universidade Federal do Espírito Santo]]|local=[[Vitória, ES/;(Espírito EDUFES,Santo)|Vitória]]|ano=2006, p.&nbsp;|páginas=137-159.|isbn=9788574781815|ref=harv}}
* BELTRÃO,{{citar livro|sobrenome=Rosa|nome=Claudia. Beltrão da|capítulo=''Lectisternium'': Banquente ritual e ordem sagrada na Roma Republicana.|editor-nome=Maria In:Regina|editor-sobrenome=Candido|título=Práticas CANDIDO,Alimentares M.no R.Mediterrâneo HistóriaAntigoisbn=978-85-60538-07-2|local=Rio dade AlimentaçãoJaneiro|editora=NEA/[[Universidade naEstadual Antiguidade.do Rio de Janeiro: NEA/|UERJ. 2011.]]|ano=2012|páginas=60-83|ref=harv}}
* MENDES,{{citar N.M.;periódico|sobrenome1=Mendes|nome1=Norma OTERO,Musco|sobrenome2=Otero|nome2= U.Uiara ''Barros|título=Religiões e as Questões de Cultura, Identidade e Poder no Império Romano''. Phoînix, 11: |local=Rio de Janeiro, |ano=2005|páginas=196-220|periódico=Phoînix|volume=11|número=1|url=http: p//phoinix.&nbsp;196historia.ufrj.br/media/uploads/artigos/11_-220_Religioes_e_as_questoes_de_cultura_identidade_e_poder_no_Imperio_Ro_o01kOtR.pdf|ref=harv}}
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