Mestre Ataíde: diferenças entre revisões

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===Tradição e originalidade===
 
Para a concepção de suas composições, também adotou a praxe de seu tempo e lugar. Na impossibilidade de ter contato direto com as grandes obras e professores da pintura europeia, Ataíde recebeu inspiração principalmente através de reproduções em [[gravura]], de resto largamente usadas por todos artistas coloniais como modelos mais ou menos prontos, um procedimento também adotado pelas [[academismo|academias]] da Europa desde a [[Renascença]] e que era universalmente aceito como válido, sem implicar demérito para o artista como criador. Na verdade, isso reafirmava a atualidade e importância de uma veneranda tradição cultural que remontava ultimamente à [[Grécia Antiga]]. Procedente de variados locais e mesmo de épocas distintas, esse corpo de gravuras tinha um perfil estilístico bastantemuito eclético, o que explica a variedade de soluções encontradas na pintura colonial como um todo e mesmo na obra de um mesmo artista, circunstância da qual Ataíde não fugiuescapou. Vários estudos já documentaram sua apropriação de tais modelos adaptando-os às necessidades e possibilidades de cada local e ao estilo de sua época. Como exemplo, seis painéis da capela-mor da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, executados entre 1803 e 1804, derivam diretamente de gravuras publicadas entre 1728 e 1730 em Paris por Michel Demarne, entre 1728 e 1730, num compêndio em três volumes intitulado ''Histoire sacreé de la providence et de la conduite de Dieu sur les hommes'' que acabou sendo mais conhecido como a ''[[Bíblia de Demarne]]''.<ref name="Levy">Levy, Hannah. [http://www.baiadeguanabara.com.br/arte_ensaios_web/a_e_15/pdf/AnaLevy.pdf "Modelos europeus na pintura colonial"] {{Wayback|url=http://www.baiadeguanabara.com.br/arte_ensaios_web/a_e_15/pdf/AnaLevy.pdf |date=20140311134753 }}. In: ''Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional'', 1944; 8</ref><ref>Leite, Pedro Queiroz. "Imagem Peregrina: a sobrevivência de uma estampa entre fins do século XVIII e meados do século XIX". In: ''Anais do II Encontro Nacional de Estudos da Imagem''. Londrina, 11-14/05/2009, p. 462</ref><ref>Oliveira, Carla Mary da Silva. "A Glorificação dos Santos Franciscanos" do Convento de Santo Antônio da Paraíba: algumas questões sobre a pintura, alegoria barroca e produção artística no período colonial". In: ''Fênix – Revista de História e Estudos Culturais'', 2006; 3, III (4)</ref> A pesquisadora [[Hannah Levy]] fez uma descrição do procedimento:
[[Imagem:Demarne---ataide.jpg|thumb|''A visita dos anjos a Abraão''. Acima a gravura de Demarne; abaixo, a interpretação de Ataíde num painel lateral da capela-mor da Igreja de São Francisco, Ouro Preto.]]
 
::"Note-se que Manuel da Costa Ataíde, em todas estas pinturas, observou fielmente o modelo das gravuras no que concerne à composição geral, à distribuição das luzes e sombras, à posição das figuras e à indumentária. Observe-se, também, que o pintor mineiro, em todas essas obras, simplificou os planos de fundo (paisagem ou arquitetura) em comparação com os das gravuras e que, quase sempre, aproveitou das estampas apenas os grupos principais do tema representado, eliminando figuras ou cenas não diretamente ligadas ao assunto principal. A nosso ver, esta redução das cenas a seus grupos principais foi motivada pelas dimensões do espaço de que dispunha o mestre de Ouro Preto.... Não tratou de transformar a composição de Demarne. Pelo contrário: conservou cuidadosamente todos os pormenores das estampas, limitando-se a deixar simplesmente de lado os grupos que não lhe interessavam. É curioso verificar que mesmo mutilando, por assim dizer, a composição original do gravador, Ataíde não introduz senão modificações insignificantes na composição dos grupos que ele aproveita. E nem por isto as suas pinturas deixam de aparecer como composições artisticamente completas.... porém, desejamos chamar a atenção para o fato de que o artista mineiro consagra um carinho especial a todos os pormenores pitorescos ou anedóticos encontrados nos modelos e suscetíveis de dar às cenas um caráter mais íntimo e mais diretamente familiar. Assim é que ele reproduz fielmente, por exemplo, na cena da restituição de [[Sara]], o cachorrinho; na cena da refeição dos anjos, o prato fumegante trazido pelo criado, os vasos de vidro, os pratos na mesa, o copo na mão do médico, a forma característica do pé da mesa, etc. Na sua ânsia de dar um aspecto convincente e humano às cenas sagradas, chega a inventar pormenores pitorescos, que não se encontram em Demarne, como, entre outros, o da escarradeira por baixo da cama de [[Abraão]]".<ref name="Levy"/>
 
É preciso reiterar que em seu tempo a tradição recebida pronta tinha um peso enorme na determinação dos aspectos formais e ideológicos da obra. Nesta colônia, onde não havia um ensino artístico institucionalizado nem aulas de [[anatomia]] para artistas, os modelos visuais disponíveis eram essas reproduções de grande circulação. Eram a referência central de trabalho.<ref name="Hauser"/><ref name="Morato, pp. 53-56"/> Além dessas gravuras, diversos estudos feitos sobre a pintura colonial revelam a circulaçãocirculavam em Minas - e no resto do Brasil - de diversos tratados teóricos, que certamente contribuíam para aprofundar os conhecimentos técnicos dos artistas locais. Segundo Claudina Moresi, os pintores de Minas Gerais tiveram acesso a obras como os estudos de [[simetria]], perspectiva e pintura do poeta e pintor lusitano [[Filipe Nunes]] e os tratados ''Ciências das sombras relativas ao desenho'', ''Segredos necessários para a arte da pintura'', ''Arte da pintura'', ''Segredos necessários para os ofícios, artes e manufaturas, e para outros objetos sobre economia doméstica'', onde havia importantes referências para o preparo de tintas, vernizes, têmperas e douramentos; Ataíde possuiu um desses tratados, como consta em seu inventário. Também com certeza estava familiarizado com as lições de um outro tratado, que se tornara canônico, ''[[Perspectiva Pictorum et Architectorum]]'', de [[Andrea Pozzo]], o maior sistematizador da pintura de arquitetura ilusionística, técnica que veio a ser popularíssima na pintura colonial brasileira, embora numa abordagem modificada.<ref name="Paiva"/><ref>Faria, Patrícia Souza de. [http://bndigital.bn.br/redememoria/mestreathayde.html ''Mestre Athayde (1762-1830)'']. Projeto Rede da Memória Virtual Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional</ref>
 
Na discussão sobre estas questões polêmicas de autoria e originalidade, tão caras à crítica contemporânea, vários aspectos devem ser levados em conta: em primeiro, a organização do trabalho, como já se mencionou, era coletiva, num sistema corporativo onde o mestre se encarregava do planejamento geral da composição e execução das partes mais importantes, com vários assistentes ajudando na feitura das partes secundárias, aquisição e preparação de materiais, colocação de andaimes, etc. O mestre, por fim, se necessário fazendo correções e outros acabamentos, aprovava o resultado final. Além disso, o encomendante da obra podia determinar alterações específicas no conjunto, conformes às suas preferências. De qualquer modo, a obra em último caso era uma criação inteiramente orquestrada pelo mestre, a quem cabia o mérito maior da autoria e da realização. E em se tratando da prática da reprodução de modelos prontos, também a tradição determinava as escolhas principais, mas havia largo espaço para a adaptação e o improviso de novas soluções técnicas e formais; isso sem dúvida confere grande dose de originalidade às pinturas de Ataíde e seus contemporâneos.<ref name="Campos"/><ref name="Morato, pp. 53-56">Morato, pp. 53-56</ref><ref name="Fontes"/>
[[Imagem:Ataíde-Sé de Mariana.jpg|thumb|''Anjos'', Sé de Mariana.]]
 
AtaídeMuitos écríticos tambémcelebram celebradoAtaíde como um mestre original quandopor se considera que eleter conseguiuconseguido plasmar em suas imagens, como dizem os críticos, as feições mestiças do povo brasileiro. Da mesma maneira, se aplaude sua rica paleta de cores luminosas em originais combinações, seu desenho preciso mas sensível e fluente, seus corpos humanos de formas cheias e sinuosas, quase lânguidas, os traços humanizados e familiares de seus santos, a lhaneza e intimidade do seu tom.<ref name="Itaú"/><ref name="Campos"/><ref name="Morato2">Morato, Elisson Ferreira. [http://www.semeiosis.com.br/wp-content/uploads/2011/05/Elisson-Morato.-A-forma-e-a-cor-do-sentido.pdf "A forma e a cor do sentido: a pintura barroca em Minas à luz da semiótica plástica"]. In: ''Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade'', 2011 (05)</ref> Marly Spitali analisou o uso das cores por Ataíde dizendo que ele é "um sinfonista da cor, não só pela expressão e suntuosidade da mesma mas também pela extraordinária habilidade instrumental, realmente sinfônica, de harmonizar as mais variadas tonalidades e dissonâncias cromáticas".<ref name="Encurralado"/> Fez ainda um uso frequente e inovador dos tons azuis, até então raros na pintura brasileira.<ref name="Sousa"/> Junto com [[Bernardo Pires da Silva]], [[Antônio Martins da Silveira]] e [[João Batista de Figueiredo]], formou a chamada "Escola de Mariana" da pintura colonial brasileira.<ref name="Cronologia"/>
[[Imagem:Manuel da Costa Ataíde - Elementos Ornamentais e Anjos.jpg|thumb|left|Detalhe da pintura arquitetônica no teto de São Francisco de Ouro Preto.]]
[[Imagem:Manuel da Costa Ataíde - Assunção da Virgem2.jpg|thumb|left|''Assunção da Virgem'', Rosário dos Pretos em Mariana.]]
 
NumNaquele tempo em que a espetacularização do culto religioso era uma tônica, e todas as artes concorriam para a criação de uma "obra total", cuja súmula brasileira sempre sintetizadafoi noo templo feericamente decorado,. ondeAli a celebração ocorria em meio aà música e oratóriaaos sermões sagradasacros, e a arquitetura resplandecia em mobílias entalhadas, pratarias, pinturas, estatuária e retábulos dourados,.<ref name="Araújo"/> cabeCabe lembrar que Ataíde não foi apenas pintor, mas grande parte de sua carreira foi empregada nas tarefas de douramento de talha e encarnação de estátuas.<ref name="Cronologia"/>
 
Entretanto, é certo que a memória de Ataíde permanece principalmente ligada à pintura de tetos de igrejas, além de alguns painéis e telas portáteis. A organização básica do conjunto é quase sempre a mesma: a partir do alto das paredes o pintor produz no teto uma pintura que sugere ilusionisticamente a continuidade da arquitetura até que ela se abre para o céu, onde é representada uma [[epifania]]. A técnica do ilusionismo arquitetônico para decoração de tetos fora desenvolvida na Itália, sistematizada pelo jesuíta [[Andrea Pozzo]], e por seu impacto visual e poderes evocativos recebeu viva aceitação tanto na Europa como no Brasil colonial. Em Minas a técnica foi introduzida aparentemente por [[Antônio Martins da Silveira]] no forro da capela-mor do Seminário Menor de Mariana, datado de 1782, inaugurando um esquema retomado inúmeras vezes pelos artistas posteriores. Ataíde melhor exibiu a força do seu gênio na elaboração desse tipo de composição, que exigia grandes capacidades de organizar coerentemente imagens diversificadas em uma escala monumental, além de bons conhecimentos de perspectiva e das leis do [[escorço]].<ref name="Encurralado"/><ref name="Paiva"/>
 
Porém, na mão do Mestre a falsa arquitetura recebeu vários tratamentos na mão do Mestrevariados, algumas vezes parecendo mais sólida, como na Matriz de Santo Antônio em [[Itaverava]], noutras se dissolvendo numa profusão de festões, guirlandas e rocalhas e outros detalhes puramente decorativos que subvertem a lógica arquitetural, a exemplo da [[Matriz de Santa Bárbara|Matriz de Santo Antônio]] em [[Santa Bárbara (Minas Gerais)|Santa Bárbara]]. Geralmente esses elementos estruturantes são povoados por várias figuras secundárias - anjos, santos, mártires, doutores da igreja e outras figuras da história sagrada. O coroamentofoco dessas composições é invariavelmente é um grande medalhão centralizado, onde é apresentada uma cena divina, usualmente com as figuras de Cristo ou da Virgem dominando a composição.<ref name="Encurralado"/>
 
Também desenvolveu outras soluções. Como no caso doNo teto de Rosário dos Pretos emde Mariana, onde criou uma moldura arquitetural perspectivada, mas a cena no medalhão central foi apresentada em visão plana frontal, sem escorço nas figuras. Essa solução era corriqueira em Portugal, onde era chamada de "quadro recolocado", pois tinha apenas e precisamente o efeito de um painel de altar posto no teto, sem explorar os recursos de uma cenografia pictórica mais expansivaescorçada e mais ilusória. Em parte isso se devia às dificuldades da criação de um bom escorço, técnica reservada somente aos pintores mais habilidosos, mas também, na opinião de [[Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira|Myriam de Oliveira]], seria uma natural continuidade de uma tradição especificamente portuguesa de não escorçar figuras humanas. Esta opção técnica teria possibilitadosuporia uma comunicação mais direta com os santos, "retirados assim das alturas celestiais pela terrena sensibilidade da alma portuguesa [...] pouco afeita aos arroubos místicos".<ref name="Paiva"/>
 
===Principais obras===