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== Imagem, autoimagem e mitologias==
 
Durante muito tempo os paulistas não gozaram de uma reputação lisonjeira. Desde o século XVII diversos relatos foram produzidos por viajantes, religiosos e oficiais do governo mostrando o povo paulista como semisselvagem, dado a vícios, libertinagem e maus costumes, com tendência à rebeldia e insubmissão ao governo, orgulhosos, traiçoeiros, interesseiros e independentes demais para serem considerados súditos bons e leais. Alguns exemplos são ilustrativos: Dom [[Luis de Céspedes García Xería|Luís de Céspede Xería]] disse que eram inclinados ao latrocínio e levavam uma vida infame e indigna de cristãos; o jesuíta padreJusto Mansilla escreveu ao Geral da Companhia de Jesus acusando os moradores de São Paulo como "gente desalmada e orgulhosa que não faz caso nem das leis do Reirei nem de Deus"; [[Antonio Ruiz de Montoya]] os retratou como "tigres raivosos", "bestiais", inimigos da evangelização dos índios e interessados apenas em escravizá-los; o governador do Brasil [[Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho]] escreveu ao rei mostrando-os como rebeldes e incapazes de prestarem bom serviço, pois "nenhuma ordem do governo geral guardam, nem as leis de Vossa Majestade"; o governador do Rio de Janeiro, [[Antônio Paes de Sande]], disse que só serviam bem se seu interesse próprio também fosse servido, pois "nunca serviam a seu rei nem ao bem público pela obrigação de súditos", e [[Sebastião da Rocha Pita]] alegou que viviam somente pela lei do seu arbítrio. A [[Guerra dos Emboabas]] veio a manchar ainda mais sua reputação, e ao longo do século XVIII essa imagem negativa ainda foi predominante, reforçada por dois influentes tratados históricos, escritos pelo jesuíta francês Pierre-François-Xavier Charlevoix e pelo beneditino francês Joseph VaissetteVaissète, que se basearam muito na obra de Montoya.<ref name="Schneider">Schneider, Alberto Luiz. "Os paulistas e os outros: Fama e infâmia na representação dos moradores da Capitania de São Paulo nas letras dos séculos XVII e XVIII". In: ''Projeto História'', 2016 (57): 84-107</ref>
 
Contudo, no que todos cronistas concordavam era em seu grande valor como exploradores e guerreiros. Mantendo íntima convivência com os indígenas desde sempre, adquiriram um amplo conhecimento do território e das maneiras de sobreviver na mata e nos sertões, e de fato muitas vezes foram requisitados pelo governo para várias batalhas, recebendo benesses e honrarias em reconhecimento.<ref name="Schneider"/>
 
Em fins do século XVII alguns documentos já referem a importância das bandeiras para a conquista do sertão, de certa forma legitimando-as. Mas só em fins do século XVIII, com a formação de uma elite ilustrada em São Paulo, é que iniciou um processo de reversão sistemática da imagem depreciativa que havia sido tão repisada até então, especialmente através dos importantes escritos de frei [[Gaspar da Madre de Deus]] e [[Pedro Taques de Almeida Paes Leme]], ambos descendentes de antigas famílias de São Paulo. Frei Gaspar foi autor das ''Memórias para a História da Capitania de São Vicente'' (1797), onde procurou construir uma imagem honrosa para a civilização paulista, e acusou seus detratores, especialmente Charlevoix e VaissetteVaissète, de trabalharem com informações falsas ou duvidosas. De caçadores de índios selvagens e violentos, frei Gaspar mostra os bandeirantes como os bravos e leais conquistadores responsáveis pelo alargamento das fronteiras nacionais, cuja grandeza de realizações redimiria seus eventuais pecados.<ref name="Schneider"/>
 
Já seu primo Pedro Taques foi autor da ''Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica'' (1772), onde também desacreditou os relatos dos religiosos franceses, mas, ao contrário de frei Gaspar, que reconheceu a miscigenação, Taques minimizou muito a miscigenação com os indígenas e se preocupou em dar aos primeiros colonizadores uma origem castiça e nobre.<ref name="Schneider"/> Para a historiadora Kátia Abud, Gaspar e Taques escreveram imbuídos do "orgulho de casta", ou seja, estavam à "procura das provas de ascendência ilustre para a classe dominante", ameaçada como estava por um grande grupo de recém-chegados que incluía tropeiros e comerciantes, numa sociedade cada vez mais mercantilizada.<ref>Abud, Kátia M. ''O sangue intimorato e as nobilíssimas tradições. A construção de um símbolo paulista: o bandeirante''. Doutorado. Universidade de São Paulo, 1985, pp. 90-91 </ref> Porém, nem tudo era uma encenação e retórica, pois frei Gaspar pesquisou muitos arquivos e se baseou em muitos documentos até então inéditos que colaboraram para emprestar uma imagem mais positiva para os paulistas.<ref name="Schneider"/>
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[[File:Raposo Tavares (Luigi Brizzolara).jpg|thumb|Estátua do bandeirante [[Raposo Tavares]] no Museu Paulista.]]
 
Várias obras genealógicas foram produzidas no século XIX, especialmente depois da criação do [[Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro]], e vários trabalhos foram publicados no âmbito do IHGB enaltecendo a figura do bandeirante como símbolo do povo paulista e transformando-o em um gigante,<ref name="Bogaciovas"/> processo fortalecido na década de 1890 com a criação do [[Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo]] (IHFSP). Segundo Paulo César Marins, "romances, artigos em jornais e na revista do IHGSP, livros de história, monumentos escultóricos públicos e pinturas históricas foram os maiores responsáveis pela disseminação de uma visão positiva dos bandeirantes".<ref name="Veiga"/> O próprio perfil urbano se transformava, suprimindo-se as edificações simples dos primeiros tempos coloniais em troca de edificações majestosas, pois constituíam, segundo Paulo César Garcez Marins, "testemunho inegável – e incômodo – da precariedade material da capitania e da província paulista", readequando a cidade "ao triunfo dos fazendeiros e políticos republicanos, que guardavam muito pouco do cotidiano tosco, semi-isolado e sertanejo de seus ancestrais quinhentistas, seiscentistas e setecentistas".<ref name="Anais">Marins, Paulo César Garcez. [https://www.scielo.br/pdf/anaismp/v6-7n1/02.pdf "O Parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista"]. In: ''Anais do Museu Paulista'', (1998-1999); (6/7): 9-36</ref> Para Luís Soares de Camargo, "o contexto histórico é fácil de ser entendido: São Paulo despontava como a grande potência econômica, mas faltava-lhe uma base historiográfica que desse uma base a esse novo papel do povo paulista. Faltava um 'herói' para dar mais consistência a uma tese de que desde o passado São Paulo já estava à frente das demais capitanias. Assim, alguns historiadores deram início a esse processo de glorificação do passado paulista e a figura que mais se adequava era a dos sertanistas. Forte, corajoso, guerreiro".<ref name="Veiga">Veiga Edison. [https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/20/como-os-bandeirantes-cujas-homenagens-hoje-sao-questionadas-foram-alcados-a-herois-paulistas.htm "Como os bandeirantes, cujas homenagens hoje são questionadas, foram alçados a heróis paulistas"]. ''UOL'', 20/06/2020 </ref> Na análise de Gonçalves & Coelho, "o bandeirante ao mesmo tempo em que era uma figura capaz de unir todos os setores da sociedade e assim construir uma identidade histórica homogênea, também tinha a função de separar as antigas famílias paulistas de um grupo de imigrantes que acabara de chegar. O mesmo bandeirante acionado para unir a população, permitia a distinção de um grupo de pessoas que se consideravam descendentes dos fundadores da cidade de São Paulo".<ref name="Gonçalves">Gonçalves, Andressa da Silva & Coelho, Mauro Cezar. [https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/escritasdotempo/article/view/1384 "As narrativas didáticas sobre o bandeirante: entre a mitologia bandeirante e a crítica histórica"]. In: ''Escritas do Tempo'', 2020; 2 (5)</ref>
 
Essa visão magnificada do bandeirante e sua transformação em símbolo de todo o povo, concentrada nos trabalhos do IHFSP, foi muito apoiada por [[Washington Luís]], prefeito da capital, governador do estado e depois presidente do Brasil, e através de sua influência muitas publicações foram editadas e a imagem do bandeirante se tornou mais popular.<ref name="Gonçalves"/> O orgulho das famílias pioneiras foi renovado com a publicação, no início do século XX, da obra ''[[Genealogia Paulistana]]'', de [[Luís Gonzaga da Silva Leme]], uma revisão muito expandida da obra de Pedro Taques, enfatizando a ascendência indígena de grande parte das famílias mais distintas do tempo do bandeirismo e dos grandes cafeicultores, estabelecendo elos entre os antigos sertanistas e as elites emergentes do café.<ref name="Anais"/> Durante a [[Revolução de 1932]] foram impressas cédulas que levavam as efígies dos bandeirantes e outros símbolos paulistas. Por ocasião das grandiosas comemorações do Quarto Centenário, em 1954, a glorificação do bandeirante e das famílias quatrocentonas estava em seu auge, foram reeditadas obras que falavam da antiga Vila de [[São Paulo de Piratininga]] e foram lançadas obras inéditas.<ref name="Bogaciovas"/><ref name="Veiga"/><ref name="Anais"/> No entanto, neste momento já ficava claro que outros atores sociais, de diferentes origens, haviam dado contribuições valiosas para o crescimento da cidade e do estado, especialmente os imigrantes, dando margem a uma disputa pela memória a ser construída.<ref name="Anais"/>
 
Entre as principais obras que retratavam os bandeirantes na primeira parte do século XX, encontram-se ''São Paulo nos primeiros anos'', ''São Paulo no século XVI'', ''São Paulo seiscentista'' e ''História Geral das Bandeiras Paulistas'', em 11 volumes, de [[Afonso d'Escragnolle Taunay]], que desempenhou um papel central na consagração dos quatrocentões, tanto pelas suas publicações, onde recuperou os escritos de frei Gaspar e Pedro Taques, dando-lhes grande crédito, quanto pela sua atividade como diretor do [[Museu Paulista]] entre 1917 e 1945, onde privilegiou um vigoroso, apologético e de certa forma anacrônico discurso em torno dos bandeirantes, que envolveu a produção de iconografia e estatuária.<ref name="Schneider"/><ref name="Veiga"/> Segundo Alberto Schneider, ao reeditar Gaspar e Taques e tomá-los como referências fundamentais na reconstrução da imagem do bandeirante, Taunay lançou as bases da moderna mitologia que ainda cerca os pioneiros.<ref name="Schneider"/> Para Marcelo Bogaciovas, seu trabalho representou "o ápice da mitificação do bandeirantismo".<ref name="Bogaciovas"/> Essa ideologia penetrou nos livros didáticos produzidos na época, gerando uma persistente imagem pública identificando o bandeirante com o paulista e exaltando sua mitologia heroica como um indicativo de sua liderança na formação da sociedade brasileira, muitas vezes esquecendo ou minimizando suas ações violentas e destrutivas.<ref name="Gonçalves"/>
 
Outras obras relevantes foram ''No tempo dos bandeirantes'', de [[Belmonte (cartunista)|Belmonte]]; ''O Bandeirismo Paulista e o Recuo do Meridiano'' e ''Raça de Gigantes - A Civilização no Planalto Paulista'', de [[Alfredo Ellis Júnior]].,<ref name="Veiga"/> autor que se preocupou em defender a diferenciação dos paulistas com base em uma teoria de superioridade racial.<ref name="Gonçalves"/> Também pode ser citada a obra ''São Paulo na Federação'' (1924), de Sousa Lobo, exemplo típico da mitificação das origens dos paulistas,<ref name="Bogaciovas"/> onde o autor declara que "quem compulsa as memórias, os assentamentos, os arquivos em suma, dos tempos coloniais e tudo o que sobre nobiliarquia escreveram os autores brasileiros e portugueses dessa época, chega, ao conhecimento de que o substractumsubstrato da colonização de São Paulo proveio da melhor nobreza de Leão e Castela, de Portugal e dos Países Baixos".<ref>Lobo, T. de Sousa. ''São Paulo na Federação''. São Paulo, 1924, pp. 42-57</ref>
 
Porém, com ''Vida e morte do bandeirante'' (1929), de [[José de Alcântara Machado]], autor do termo "quatrocentão",<ref name="Bogaciovas"/> baseada em uma extensa pesquisa documental, começa a ser definida uma outra visão sobre as origens do povoamento, desfazendo o mito de que a grande maioria das famílias pioneiras descendia das grandes famílias nobres de Portugal. Segundo o autor, o capital presente nos primeiros tempos era muito pequeno, e entre os seus povoadores "não há representantes das grandes casas peninsulares, nem da burguesia endinheirada. Mas, se migraram para província tão áspera e distante, é exatamente porque a sorte lhes foi madrasta na terra natal. Outros, a imensa maioria, são homens do campo, [...] artífices aventureiros de toda a casta". Isso não anula o fato de que se no início foram pobres, em pouco tempo formou-se uma elite empoderada e orgulhosa de suas conquistas, cuja riqueza se media mais pela quantidade de índios que conseguia mobilizar para suas milícias.<ref>Fragoso, João. [https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2801200706.htm "A gênese do quatrocentão"]. ''Folha de São Paulo'', 28/01/2007</ref>