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O IV Concílio de Latrão: Heresia, Disciplina e Exclusão
 
 
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva
 
Segundo Brenda Bolton, o IV Concílio de Latrão foi o maior dos concílios ecumênicos medievais(1). O objetivo deste trabalho é discutir, à luz do contexto histórico do início do século XIII, as resoluções deste concílio registradas nos seus cânones.
 
O IV Concílio de Latrão foi convocado pelo papa Inocêncio III através da Bula Vineam Domini Sabaoth de 10 de abril de 1213. Foram convidados a participar desta assembléia não somente os líderes eclesiásticos regulares e seculares, como também autoridades laicas (2).
 
Ainda que o pontificado de Inocêncio III (1198 - 1216) seja visto por inúmeros autores como o do apogeu da Teocracia Pontifícia (3), isto não significa que a Igreja tenha se tornado a única força política no Ocidente. Que problemas enfrentava o papado neste momento e qual o seu objetivo ao convocar o concílio ?
 
As primeiras décadas do século XIII foram marcadas pelo ápice do desenvolvimento da Europa Ocidental visível através do crescimento das cidades; incremento das manufaturas e do comércio; afirmação das línguas romances; ressurgir do direito romano; nascimento das Universidades e afirmação das monarquias frente as demais poderes, de caráter universal e local que caracterizavam politicamente a sociedade feudal; dentre inúmeros outros fenômenos (4).
 
É bem verdade que a Igreja já se encontrava organizada e centralizada sob o domínio de Roma, exercendo uma grande influência na sociedade. Entretanto, era alvo de críticas, sofria com as próprias contradições de sua institucionalização, além de rivalizar com outros poderes estabelecidas na Europa (5).
 
Dentre os inúmeros problemas enfrentados pela Igreja neste momento, podemos destacar o desenvolvimento da piedade laica; o crescimento dos grupos heréticos; a perda de possessões cristãs no Oriente e a transformação da Cruzada em um veículo de afirmação e conflitos políticos tanto para o Império quanto para as monarquias nascentes; a persistência das práticas simoníacas e do nicolaísmo em meio aos clérigos e o desenvolvimento, no seio da sociedade, do fenômeno denominado por Le Goff como reação folclórica (6).
 
Ao convocar o concílio, o papado visava fazer frente aos problemas internos da Igreja, através de um novo projeto de organização jurídico - canônico, além de restabelecer a sua hegemonia frente aos leigos, legislando sobre questões civis e elaborando novas formas de controle social.
 
Em 1 de novembro de 1215 iniciou-se o IV Concílio de Latrão com a presença de cerca de 1200 pessoas, representando mais de 80 províncias eclesiásticas, não só do Ocidente, mas também da Europa Central e Oriental (7). Esta assembléia contou ainda com a presença de autoridades laicas da Sicília, Constantinopla, França, Inglaterra, Hungria, Jerusalém, Chipre e Aragão (8).
 
Durante o Concílio ocorreram três sessões plenárias, além de cerimônias litúrgicas de caráter popular (9). Deste concílio resultaram 70 cânones, cujas as atas originais não foram preservadas. Possuímos uma cópia de 1216, que foi tomada como texto de autoridade e incluída no Corpo de Direito Canônico (10).
 
Segundo Jane Sayers, " Those who took the decisions at the Fourth Lateran Council were a very small group of cardinals close to the pope and, an occasion, the pope himself alone " (11). Esta opinião é partilhada por Brenda Bolton que afirma que "o texto era redigido na Cúria ... as constitutiones domini papae foram lidas e aprovadas, e nem sequer foram debatidas no Concílio " (13).
 
Quando nos detemos no exame dos cânones conciliares e verificamos o seu caráter normativo, unidade orgânica e as temáticas abordadas, concordamos com Sayers e Bolton. Esta legislação é produto de um grupo de juristas, conhecedores do direito canônico e romano, comprometidos com a política eclesiástica do papado.
 
Os cânones de 1215 abordam questões em relação às heresias, ao governo eclesiástico, à correção dos costumes, à formação dos clérigos, ao ministério pastoral, aos sacramentos, ao casamento e aos excluídos - judeus e muçulmanos. Há, contudo, um tratamento desigual destas temáticas, sendo o governo eclesiástico alvo de um maior número de cânones.
 
Os três primeiros cânones tratam da heresia. No cânone 1, após uma exposição dos pontos básicos da fé católica, os hereges são apresentados como os que devem ser combatidos pois suas doutrinais são insensatas, fruto de uma cegueira provocada pelo pai da mentira. Segundo o cânone 3, toda a heresia está dirigida contra a fé santa, católica e ortodoxa, sendo um perigo para a unidade da fé da cristandade. Os diversos grupos hereges são vistos como um bloco único e coeso :
 
Condenamos a todos os hereges sob qualquer denominação com que se apresentem; embora seus rostos sejam diferentes, estes se encontram atados por uma cola, pois a vaidade os une (13).
 
Assim como o diabo e os demônios, criados por Deus naturalmente bons (14), pela vaidade foram expulsos do paraíso, também por causa da vaidade os hereges devem ser expulsos do convívio social. O IV Concílio de Latrão prevê que os condenados por heresia devem ser entregues às autoridades seculares para serem castigados. No caso de clérigos, deverão ser desligados de suas Ordens. Quanto aos bens, serão confiscados.
 
Os que recebiam, ajudavam e defendiam hereges, ainda que clérigos, seriam excomungados. Como estes, não poderiam exercer cargos públicos, receber os sacramentos, sepultura cristã ou heranças. Suas esmolas e ofertas seriam rechaçadas. Por outro lado, os que "... armarem-se para dar caça aos hereges, gozarão da indulgência e do santo privilégio concedidos aos que vão, em ajuda, à Terra Santa " (15).
 
Segundo as resoluções do concílio, cabia às autoridades eclesiásticas zelar pelo não desenvolvimento da heresia em suas províncias, visitando-as, investigando, buscando e condenando hereges. Caso o bispo seja negligente nesta função, "... será destituído do cargo episcopal e será substituído por uma pessoa idônea, disposta a confundir a heresia" (16).
 
Quanto ao governo eclesiástico, há inúmeros cânones que abordam desde os problemas da Igreja grega à questão da influência laica . Como ressalta Jürgen Miethke :
 
La confrontación entre el papado y el poder temporal hizo que la Iglesia y los expertos en derecho canónico elaboraran cada vez más cuidadosamente una teoría acerca de la organización de la Iglesia como corporación, acerca de la distribución de responsabilidades dentro de ella y del alcance de la obediencia pretendida por la cúpula eclesiástica (17).
 
A organização e centralização de todo o corpo eclesiástico tendo como ponto central ao Papa como portador da plenitude potesta, tema central destes cânones, visava o fortalecimento e a independência da Igreja.
 
Nos cânones 4 e 5 a preocupação é com a igreja no Oriente, visto que neste momento estas igrejas encontravam-se novamente unidas. Estes cânones exortam à submissão a Igreja grega, que "... como filhos obedientes devem imitar a Santa Igreja romana, sua mãe... " (18) e estabelecem a hierarquização entre as sedes patriarcais . À cabeça Roma, seguida por Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém, sucessivamente.
 
Os cânones 6, 9,12,13, do 23 ao 41, 57, 58 e 60 tratam dos concílios provinciais, dos capítulos gerais das ordens regulares, das eleições eclesiais, da justiça e das rendas eclesiásticas. Todos estes cânones buscavam a organização institucional da Igreja, numa perspectiva de universalidade da jurisdição eclesiástica. O objetivo papal era normatizar e submeter todo o clero ao seu governo.
 
Esta preocupação com as questões internas da Igreja é reforçada nos cânones que tratam das relações entre clérigos e laicos. O papado, em pleno século XIII, continua a sua luta contra a intromissão secular em questões eclesiásticas, principalmente no tocante as rendas e à justiça.
 
Os problemas de caráter moral clerical são um outro ponto de destaque nesta legislação. Dedicam-se a esta questão os cânones 7, 8, do 14 ao 18 e do 63 a 66. Há uma preocupação com a correção dos costumes. O concílio atribui aos bispos "... o dever de corrigir com prudência e zelo os excessos de seus subordinados ... do contrário, terão de dar conta de seu sangue " (19).
 
Que comportamento a Igreja espera de seus membros ? Viver em continência e castidade (20), servir a Deus com um coração puro (21), abster-se do abuso na bebida (22), não caçar (23), não exercer cargos seculares nem administrar negócios temporais (24), não participar ou assistir apresentações teatrais (25), não jogar (26), participar das celebrações do ofício divino (27), não praticar a simonia (28), dentre muitos outros cuidados.
 
O zelo do papado quanto ao comportamento moral do clero pode ser explicado por alguns fatores, tais como: responder aos anseios e críticas dos leigos e hereges; eliminar a influência secular junto a hierarquia; lutar pela preservação do patrimônio eclesiástico; ampliar a presença da Igreja Romana no seio da sociedade.
 
A atenção para com o comportamento moral e a formação intelectual do clero, presente no cânone 11, demonstram a preocupação por parte da Igreja de preparar os seus quadros para melhor instruírem e dar apoio pastoral aos fiéis, alvos de grupos heréticos. A inserção da Igreja romana no mundo, visando a catolicalização da população, pode ser atestada nos cânones 10 e 11, de 19 a 22, de 47 a 52 e o 63. Verifica-se uma preocupação com o que o cânone 10 denomina de "saúde do povo cristão". Para tanto, revaloriza-se a pregação, que deve ser de responsabilidade de "... pessoas capacitadas, ricas em obras e palavras" (29). Regulamentou-se a excomunhão e deu-se grande importância aos sacramentos, como a confissão, a comunhão e o casamento.
 
Segundo Wilhelm Frank, durante a Alta Idade Média, a Igreja Cristã passou por profundas mudanças, adaptando-se as novas estruturas sociais, econômicas, políticas e mentais da Europa. As comunidades cristãs ruralizaram-se, perderam o seu caráter comunitário, tornaram-se alvo da influência laica e as missas passaram a ter um caráter unicamente cultual, com a mínima participação dos fiéis (30). Com as transformações processadas na Europa Ocidental a partir do século XI, a Igreja, adaptando-se ao dinamismo econômico, social, político e cultural do momento, revalorizou o cuidado pastoral e a participação dos laicos nos sacramentos.
 
O maior interesse pela religiosidade e espiritualidade dos laicos deve ser entendido a luz das concepções políticas sustentadas pelo papado neste período. Já que o poder espiritual era visto como superior, cabia a Igreja o zelo e a assistência aos fiéis. Ao instituir a confissão anual e a comunhão, regulamentar o casamento e exigir os dízimos, a Igreja ampliava a sua presença junto à sociedade e se constituía como portadora da fé verdadeira e da vontade divina.
 
Os excluídos, por nós aqui identificados como os judeus e muçulmanos, também foram alvo da política papal, tal como assinalam os cânones de 67 a 70. Criticou-se a usura praticada pelos judeus, instituíram-se vestes especiais tanto para judeus como para muçulmanos, proibiu-se a entrega de cargos públicos aos judeus e condenou-se a manutenção de ritos judaicos por parte de judeos convertidos.
 
Os cânones que tratam dos excluídos ressaltam a necessidade de manter-se intacta a identidade e a hegemonia cristã. Os judeus receberam um tratamento ainda mais rigoroso do que os muçulmanos, justificado pela "... blasfêmia contra aquele que foi crucificado por nossa salvação " (31), por parte dos primeiros.
 
O IV Concílio de Latrão apresenta em seus 70 cânones a síntese do projeto papal de Reforma Eclesiástica que repousava nos seguintes pontos : organização e centralização de toda a hierarquia eclesiástica ao pontífice romano, a luta contra a intervenção laica na Igreja, a moralização do clero e a catolicalização da sociedade.
 
Este projeto de reforma só pode ser compreendido à luz da organização e da mentalidade política da sociedade feudal. Por um lado, o poder reinvidicado pelo papa, ainda que de caráter universal, estava fundamentado na hierarquia eclesiástica. Por outro lado, ao afirmar-se como portador de toda potesta e infalível, o papado vê o seu papel como o de um grande suserano entre todos os outros suseranos seculares.
 
A luta contra a heresia, a afirmação de uma identidade cristã frente a muçulmanos e judeus, a busca por uma disciplina rigorosa e universal no seio da Igreja e em meio a sociedade são as diversas faces de um projeto que visava fundamentar a unidade da fé cristã e assegurar o espaço da Igreja Papal no conflito de poderes que marcaram a história da Europa durante a Baixa Idade Média.
 
Notas
 
1 - BOLTON, B. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1985, p.126.
2- FOREVILLE, R. Lateranense IV. Vitória: Eset, 1973, p. 34.
3- BARRACLOUGH, G. Os Papas na Idade Média. Lisboa: Verbo, 1973; GALLEGO BLANCO, E. Relaciones entre la Iglesia y el Estado en la Edad Media. Madrid : Revista de Occidente, 1973; FRANK, I. W. Historia de la Iglesia Medieval. Barcelona : Herder, 1988, dentre outros.
4- Sobre o século XIII ver LE GOFF, J. La Baja Edad Media. 15 ed. Madrid: Siglo XXI, 1985 e GENICOT, L . Europa en el siglo XIII. Barcelona: Labor, 1976, dentre outros.
5- Sobre a Igreja no século XIII, ver livros da nota 4 e a obra de MOORE, R. I. La formación de una sociedad represora. Poder y disidencia en la Europa occidental. 950 - 1250. Barcelona : Crítica, 1989.
6- LE GOFF, J. O Maravilhoso no Ocidente Medieval. In:___. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1985, p20ss.
7- FOREVILLE,R. ,op. cit., p. 43.
8- SAYERS, J. Innocent III. Leader of Europe 1198 - 1216. London: Longman, 1994, p. 96.
9- FOREVILLE, R. op. cit, p. 55 a 68.
10- Sobre os manuscritos e trasmissão dos cânones do IV Concílio de Latrão ver FOREVILLE, R. op. cit. Em nosso trabalho nos utilizamos dos textos das únicas edições críticas das atas: a edição já citada de FOREVILLE e a de HEFELE - LECLERQ. Histoire des conciles. Paris: 1913. T. V, p. 1316 - 1398.
11- SAYERS, J. op. cit., p. 100-1.
12- BOLTON, B. op. cit., p.127.
13- Cânone 3.
14- Cânone 1.
15- Cânone 3.
16- Cânone 3.
17- MIETHKE, J. Las ideas políticas de la Edad Media. Buenos Aires : Biblos, 1993. p. 71.
18- Cânone 4.
19- Cânone 7.
20- Cânone 14.
21- Cânone 14.
22- Cânone 15.
23- Cânone 15.
24- Cânone 16.
25- Cânone 16.
26- Cânone 16.
27- Cânone 17.
28- Cânones 63 a 66.
29- Cânone 10.
30- FRANK, I. W. , op. cit., p. 31 a 39.
31- Cânone 68.
 
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