Ao falar da liturgia católica a expressão ad orientem (para o Oriente) geralmente usa-se hoje não no sentido óbvio e literal, senão para indicar a orientação em que o padre é voltado em relação o povo na celebração da missa, independentemente da direção geográfica para a qual ele está realmente olhando, orientação que se opõe à chamada versus populum (de frente para o povo), em que o sacerdote celebrante encara a assembleia de fiéis.

Missa Solene celebrada ad orientem: elevação do cálice para adoração dos fiéis

Os textos da liturgia e os relativos documentos oficiais nunca usam a expressão nesse sentido: ao contario, por ad orientem o Missal Romano tridentino, desde a primeira edição (1570) até a última (1962), a emprega para indicar que o padre está voltado para o povo e ao mesmo tempo para o verdadeiro leste.[1]

Para indicar a orientação chamada ad orientem, a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos prefere utilizar o termo inequívoco versus absidem (de frente para a abside da igreja).[2]

Para falar desta orientação, alguns usam as expressões versus Deum (virado para Deus) e coram Deo (na presença de Deus), mas a Congregação para o culto divino declarou que estas expressões devem aplicar-se a cada celebração, quer versus absidem ou versus populum.[2]

História editar

 
Altar ad orientem versus populum na igreja romana de Santa Cecilia in Trastevere

Só recentemente começou-se a dar à expressão ad orientem o sentido de o padre e os fiéis todos olharem na mesma direção, seja para leste ou oeste, norte ou sul. Os primeiros cristãos rezavam unicamente na direção do oriente geográfico. Tertuliano (c. 160 – ca. 220) diz que alguns acreditavam que os cristãos adoravam o sol por causa do seu costume de rezar para a região do leste.[3] Orígenes (ca. 185 – 253) diz: "De todas as regiões do mundo, a área do leste é a única para a qual nos voltamos ao orar"; e observa que é difícil saber o motivo deste costume.[4] Mais tarde, outros Padres da Igreja davam explicações místicas do costume.

A obra do cristianismo oriental Constituições Apostólicas, criada entre 375 e 380, dava como norma para a construção de igrejas que o presbitério (com a abside e as sacristias) fosse na extremidade leste, assim que os cristãos na igreja pudessem rezar na igreja como costumavam rezar em privado, isto é de frente para o leste. No meio do presbitério estava o altar, atrás do qual ficava o trono do bispo, ladeado pelas sedes dos presbíteros, enquanto no outro lado estavam os leigos. Porém mesmo no Oriente havia igrejas (por exemplo, em Tiro) que tinham na extremidade leste a entrada e o presbitério no oeste. Durante as leituras todos olhavam para os leitores, o bispo e os presbíteros para o oeste, o povo para o leste. Como fazem também os outros documentos que falam do costume de rezar para o leste, as Constituições Apostólicas não indicam se ou não o bispo depois fosse ao outro lado do altar para "o sacrifício".[5][6]

Todas as primeiras igrejas construídas em Roma tinham a entrada no leste, como a tinha o templo judaico em Jerusalém, de modo que, para o sacerdote, celebrar ad orientem e versus populum era a mesma coisa. Só no século 8 ou 9 foi aceite em Roma a disposicão, já adotada no reino dos francos, da entrada occidental e do altar oriental.[7][8] Também a basilica original constantiniano do Santo Sepulcro em Jerusalém teve o altar na parte oeste.[9][10]

Mesmo fora de Roma e mesmo em territórios que tinham sido governados pelos francos, continuaram a ser construídas igrejas que tinham o altar na parte ocidental, por exemplo, em Petershausen perto de Constança, Bamberg, Augsburgo, Obermünster, Ratisbona e Hildesheim, e construíram-se também igrejas não com eixo leste-oeste.[11] Nas suas instruções para a construção e apetrechamento de igrejas Carlos Borromeu, arcebispo de Milão de 1560 até 1584, expressa uma preferência que a abside olhe para o leste exato, mas aceita que, onde essa escolha não é possível, pode construir-se uma igreja até com eixo norte-sul, e observou que además se pode fijar a abside no oeste. "onde segundo o rito da Igreja é costume celebrar-se a Missa no altar-mor por um padre com o rosto para o povo".[12]

Carlos Barromeu falava assim do altar-mor situado no que ele chamou a capela-mor (cappella maior). Nessa época as grandes igrejas tinham muitas capelas e altares juntas às várias paredes, que evidentemente já não tinham relação com o oriente geográfico. Muitas vezes, os altares ficaram inseridos a um retábulo. A partir do seculo XVI começou-se a colocar sobre um altar da igreja um sacrário. Carlos Borromeu dispôs que se transferisse a localização do Santíssimo Sacramento da sacristia para um altar (não o altar-mor) das suas igrejas.[13] A edição do Missal Romano revisto e promulgado pelo Papa Pio V em 1570 (ver Missa Tridentina) ainda não previa a colocação do sacrário num altar: o que ordenou foi que no centro do altar estivesse uma cruz e ao pé dessa um cartão contendo algumas das principais orações da Missa.[14] Porém por reação contra à negação protestante da realidade e permanência da presença real de Cristo na Eucaristia, difundiu-se o posicionamento do sacrário, mesmo no altar-mor, em forma sempre mais grande e ornamentado, a ponto de dominar o altar. Num altar deste tipo era impossível celebrar a Missa versus ad populum.[13] Contudo o papa Pio XII declarou no ano de 1956 que existem maneiras de colocar o sacrário sobre o altar de tal forma a não impedir celebrar a Missa voltado para o povo (face au peuple), e reconheceu assim a legitimidade de tais celebrações.[15]

O Missal Romano promulgado no ano de 1570 pelo papa Pio V, com todas as edições posteriores até a do ano de 1962, prevê explicitamente a celebração da Missa de cara para o povo, e trata o termo ad orientem como sinónimo de versus populum, como se vê no Ritus servandus in celebratione Missae, V, 3.[16][17][18]

Instruções oficiais da Igreja latina editar

 
Altar-mor típico dos séculos XVII-XX inserido na pared, com sacrário e projetado para a posição agora comumente chamada "ad orientem"

Na Igreja Latina a orientação ad orientem (no sentido moderno, não o significado literal) é comumente considerada uma característica peculiar da missa tridentina, em que o sacerdote geralmente fica de frente de costas para o povo, enquanto a versus populum é da Missa do Vaticano II. Na realidade, ambas formas aceitam as duas configurações - ad orientem ou versus populum. O Papa Bento XVI celebrou algumas vezes a missa na Capela Sistina na posição chamada ad orientem, e a última missa de São Pio de Pietrelcina, mesmo sendo tridentina, foi celebrada versus populum.[19]

Nas edições do Missal Romano antes do 1970, também a do 1962, mencionava-se explicitamente a eventualidade de celebrar versus populum e por isso sem necesidad de virar os ombros ao altar ao saudar o povo com Dominus vobiscum etc.[20]

Também as edições mais recentes, que tratam como normal o sacerdote estar de frente para o povo, reconhecem a outra eventualidade ao obrigá-lo de manera explícita de estar voltado para o povo (versus populum ou versus ad populum) apenas em certos breves momentos, nos quais geralmente também as edições anteriores impunha a mesma orientação, por exemplo ao dizer Dominus vobiscum. Estas duas expressões usam-se 9 vezes na Instrução Geral do Missal Romano.[21]

 
Altar para a celebração de frente para o povo na catedral do papa, a Arquibasílica de São João de Latrão

Ao falar da construção do altar, o Missal Romano diz: "O altar seja construído afastado da parede, a fim de ser facilmente circundado e nele se possa celebrar de frente para o povo, o que convém fazer em toda parte onde for possível".[22] O texto original em latim diz: "Altare exstruatur a pariete seiunctum, ut facile circumiri et in eo celebratio versus populum peragi possit, quod expedit ubicumque possibile sit".[23]

Na resposta protocolo no. 2036/00/L do 25 de setembro de 2000 a Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos explicou que "a posição versus populum parece ser a mais conveniente na medida em que torna a comunicação mais fácil"; mas acrescentou que "a cláusula 'onde for possível' leva em consideração vários elementos como, por exemplo, a topografia do local, a disponibilidade de espaço, a existência de um altar anterior de valor artístico, a sensibilidade da comunidade que participa nas celebrações naquela igreja, etc."[2][24][25]

A Congregação insiste que é necessário distinguir a posição física da orientação espiritual e interna de todos. Se o presbítero celebra versus populum, o que é legítimo e muitas vezes recomendado, a ação sacrificial não se dirige prioritariamente à comunidade: a atitude espiritual do sacerdote, que representa toda a Igreja, deve ser dirigida sempre versus Deum per Iesum Christum (a Deus por Jesus Cristo).

Já em 1993 a Congregação explicou que, embora na legislação litúrgica atual seja desejável posicionar o altar voltado para o povo, aquilo não é um valor absoluto. É necessário ter em conta os casos em que o presbitério não admite esa disposição, ou não é possível manter o altar anterior com a sua decoração e conjuntamente evidenciar como principal otro altar voltado para o povo. É mais fiel ao sentido litúrgico, nestes casos, celebrar de costas para o povo no altar existente do que manter dois altares no mesmo presbitério: na atual legislação o princípio da singularidade do altar é teologicamente mais importante.[26]

O Papa Bento XVI, enquanto Cardeal, defendeu em seu livro O Espírito da Liturgia a tradicional orientação ad orientem. Onde uma virada comum direta para o leste não é possível, recomendou um crucifixo colocado centralmente no altar como ponto central de foco tanto para o sacerdote quanto para a comunidade e como interior "leste" da fé: o Senhor é o sol nascente da história.[27] Enquanto Papa, não convirtiu esta ideia em legislão litúrgica para todos. Normalmente celebrou a missa publicamente de frente para o povo, mas em 13 de janeiro de 2008, usou a orientação ad orientem na Capela Sistina, "para não alterar a beleza e a harmonia desta joia arquitetônica, preservando sua estrutura desde o inicio da celebração de acordo com o Missal geralmente introduzido por Paulo VI após o Concílio Vaticano II".[28]

Referências

  1. Ritus celebrandus in celebratione Missae, V, 3; p. LVII na edição 1962
  2. a b c Congregatio pro cultu divina et disciplina sacramentorum, "Responsum Congregationis die 25 septembris 2000
  3. Tertuliano, Apologeticus, 16.9–10; versão em inglês
  4. "quod ex omnibus coeli plagis ad solam orientis partem conversi orationem fundimus, non facile cuiquam puto ratione compertum" (Origenis in Numeros homiliae, Homilia V, 1).
  5. Constitutiones Apostolorum II, 57}: Ὁ οἶκος ἕστω ἐπιμήκης, κατὰ ἀνατολὰς ἐπιτραμμένος, ἐξ ἑκατέρων τῶν μερῶν ἔχων τὰ παστοροφορεῖα πρὸς ἀνατολήν ... κείσθω δὲ μέσος ὁ τοῦ ἐπισκόπου θρόνος, παρ' ἑκατέρου δὲ αὐτοῦ καθεζέσθωσαν τὸ πρεσβυτέριον ... εἰς τὸ ἕτερον μέρος οἱ λαΐκοὶ καθεζέσθωσαν ... μετὰ δὲ ταῦτα γινέσθω ἡ θυσία, ἑστῶτος παντὸς τοῦ λαοῦ ([http://www.newadvent.org/fathers/07152.htm versão em inglês)
  6. William E. Addis, A Catholic Dictionary (Aeterna Press 1961), artigo "Church: place of Christian assembly"
  7. Helen Dietz, "The Biblical Roots of Church Orientation"
  8. The Oxford Dictionary of the Christian Church. (Oxford University Press, 2005, ISBN 978-0-19280290-3), artigos "eastward position" e "orientation"
  9. D. Fairchild Ruggles, On Location: Heritage Cities and Sites (Springer 2011 ISBN 978-1-46141108-6), p. 134
  10. Lawrence Cunningham, John Reich, Lois Fichner-Rathus, Culture and Values: A Survey of the Humanities, Volume 1 |(Cengage Learning 2013 ISBN 978-1-13395244-2), páginas 208–210
  11. Heinrich Otte, Handbuch der kirchlichen Kunst-Archäologie des deutschen Mittelalters (Leipzig 1868). páginas 11-12
  12. Carlo Borromeo, Instructiones fabricae et suppellectilis ecclesiasticae (Fondazione Memofonte onlus. Studio per l'elaborazione informatica delle fonti storico-artistiche), liber I, cap. X. De cappella maiori (pp. 18–19)
  13. a b Mauro Piacenza, "O receptáculo da Eucaristia" em 30 Dias, número 6, 2005
  14. Rubricae generales Missalis, XX - De Praeparatione Altaris, et Ornamentorum eius
  15. Discours du pape Pie XII aux participants au Congrès international de liturgie pastorale, 22.IX.1956
  16. Rubricas del Misal Romano, 1674
  17. Rubricae missalis Romani commentariis illustratae, 1674
  18. Missal Romano 1962
  19. Luís Guilherme Fernandes Pereira, "Coram Deo, versus populum e arranjo beneditino", 14 de maio de 2009
  20. Si altare sit ad orientem, versus populum, celebrans versa facie ad populum, non vertit humeros ad altare, cum dicturus est Dóminus vobiscum, Oráte, fratres, Ite, missa est, vel daturus benedictionem (Ritus servandus in celebratione Missae, V.3).
  21. Instrução Geral do Missal Romano, 124, 138, 146, 154, 157, 165, 181, 185, 243
  22. Instrução Geral sobre o Missal Romano, 299
  23. Institutio Generalis Missalis Romani, 299, na mais recente edição do Missal Romano
  24. Communicationes 32 (2000): 171–173
  25. O mesmo texto mas atribuído erroneamente à revista Notitiae
  26. Notitiae, 322 (Maio de 1993), p. 249
  27. L'Esprit de la liturgie, Cardinal Joseph Ratzinger, Ad Solem, 2006, p. 65, 67. Chapitre « L'autel et l'orientation de la prière », p. 63-71; tradução em inglês.
  28. Isabelle de Gaulmyn, Benoît XVI a célébré une messe « dos au peuple », em La Croix, 15/01/2008
 
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