Bildung (alemão: [ˈbɪldʊŋ] ouvir, formação, educação e cultura) refere-se à educação como processo que almeja a completude do indivíduo.[1] A gênese do conceito situa-se entre os anos de 1770 e 1830, na Alemanha, atrelada aos valores iluministas de universalidade, ao idealismo filosófico e pedagógico, à literatura alemã, ao neo-humanismo e ao romantismo.[2] Bildung é a essência de uma teoria da educação inerente ao processo histórico e à formação do povo alemão,[3] no entanto, constitui também uma recepção da paideia grega,[4] segundo Werner Jaeger[5] "a palavra alemã Bildung é a que designa de modo mais intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico". Essa preocupação com a ideia de educação é uma das características mais importantes da filosofia moderna alemã, que internalizou o tema da formação dos indivíduos e da cultura nacional.[6]

Contexto editar

O conceito de Bildung surge no contexto de ascensão da burguesia, queda do feudalismo e dos regimes absolutistas europeus, a partir da Revolução Francesa. Diante disso, nota-se na estruturação do conceito os ideais de direito e liberdade, além da ênfase na capacidade racional do homem e na sua independência perante as leis naturais ou teológicas.[7] Assim, o homem enquadra-se como agente de transformação social, corroborando um ideal de humanidade - universalização -, em detrimento de uma visão particularizada do mundo.[8] Dessa forma, a partir do contexto oitocentista alemão, questiona-se a hierarquia social posta por um vínculo sanguíneo ou celestial e constrói-se a ideia de um indivíduo intelectualmente capaz de se formar integralmente, interna e externamente.[9] "Nessa nova perspectiva, repudia-se, consistentemente, como ideal formativo, o mero conhecimento instrumental ou “utilitário”."[10]

Durante os séculos XVI e XVII, o termo Bildung assume a forma de uma "ideia figurativa", ambígua, inserida por Jacob Böhme, que considera tanto a forma de uma imagem mental quanto de uma imagem objetiva.[7] Dessa teorização derivam duas vertentes de pensamento: a primeira articula-se entre razão e religião, sustentada pela ideia de uma forma interna inerente ao ser e instituída pela providência; a segunda liga-se à explicação dos processos biológicos, através da utilização objetiva e formal do conceito de Bildung, ou seja, funda-se na ideia de um impulso gerador "que explicaria a energia presente em todos os corpos".[11]

No século XVIII, concomitantemente às revoluções francesa e industrial na Inglaterra e na França, a Alemanha passa a adotar uma estratégia reformista como impulso de modernização social.[12] Diante disso, os filósofos iluministas tiveram participação ativa na defesa dos preceitos escolares regidos pelo Estado e não mais pela igreja, em que o currículo das instituições deveria garantir aos discentes o ensino de uma "boa moral", constituída em prol da sociedade.[13] A partir daí, o ensino religioso deixa de ser o modelo de formação central nas escolas de ensino fundamental de diversos reinos alemães não unificados, que adotaram princípios voltados à razão, à cidadania e aos parâmetros administrativos do Estado.[14]

Nesse contexto, a Prússia serviu de exemplo aos demais reinos da região teutônica sendo a primeira a estabelecer um sistema de ensino obrigatório. Em 1717, o rei Frederico Guilherme I promulga a lei de fiscalização da frequência escolar em apoio ao sistema prussiano.[14] Já em 1763, o rei Frederico II, o Grande, legitima tais transformações criando o Landschulreglement (Regulamento Geral paras as escolas do país), abrangendo, além da obrigatoriedade da frequência escolar, questões como o preparo e contratação de professores, elaboração de livros didáticos e inspeção escolar. Em 1794, promulga-se o Código Geral Prussiano (Allgemeines Landrecht), que regiu a fundação de universidades apenas sobre autorização oficial, dando respaldo financeiro e administrativo para que as instituições pudessem resolver problemas voltados ao âmbito acadêmico.[15]

Polissemia editar

O conceito de Bildung assumiu diversos significados ao longo dos séculos[7], podendo-se referir à autodeterminação do homem baseada na razão; à reciprocidade do homem em relação ao mundo exterior, abstendo-se das particularidades em prol de uma perspectiva universal; e à busca pela virtude do conhecimento.[8]

Entre a pluralidade de significados do conceito, o termo geralmente está ligado à ideia de formação, educação e cultura. Educação e cultura possuem palavras com correspondentes específicos na língua alemã, respectivamente, Erziehung e Kultur. Destaca-se que a educação (Erziehung) subentende a educação formal, enquanto Bildung estende seu significado ao processo educativo, ou seja, a ação de educar um indivíduo.[16] Diante disso, certos autores adotam o termo "formação cultural" quando se referem à Bildung, dando ênfase ao processo educativo que compreende diversas áreas do conhecimento científico e social humano. W.H. Bruford fala na "tradição alemã do cultivo de si".[7] Assim, a formação cultural abrange a complexidade da formação integral do homem, estabelecendo conexões com a arte, a ética e a cultura,[10] ou seja, "o ideal de um indivíduo ou de uma sociedade que apenas cresce na medida em que “cultiva” a si mesmo(a)".[17] Diante disso, no início do século XIX o termo foi associado a parâmetros espirituais, políticos e filosóficos do iluminismo, ainda que não sustentado por ele em sua totalidade.[18]

Os conceitos de Bildung e Kultur foram tratados pelos filósofos iluministas diante um contexto de destinação para a espécie humana. A definição dos termos buscava o cumprimento desse destino e por isso estes foram condicionados ao caráter político que envolvia o problema da educação, ou seja, o caráter individual e cultural da formação se voltou para a constituição de princípios em prol da cidadania.[19] Dessa forma, as faculdades individuais do homem e seu processo de formação estariam diretamente ligados à destinação última do ser, que compreenderia o caráter político e social da coletividade.[20] A finalidade última do ser seria a realização de seu desenvolvimento pleno, ou seja, a Bildung. E a sociedade seria o meio no qual tal objetivo se concretizaria. Dessa forma, dissociam-se os conceitos de sociedade e humanidade, em que esta não se postula como a antítese do indivíduo, mas como sua realização final, sua elevação para um patamar existencial superior.[21]

Nesse contexto, destaca-se a figura de Wilhelm von Humboldt, que trabalhou com o ideal de uma reforma educacional na Alemanha que possuísse bases teóricas e uma regulamentação oficial.[22] Para Humboldt, a reforma do papel do Estado na educação seria a premissa básica para a reforma pedagógica.[7] Assim sendo, o apoio estatal sobre o desenvolvimento individual da população promoveria a lealdade do cidadão em relação a si mesmo e ao Estado.[23] Diante disso, em seu período como Conselheiro Privado e Diretor da Secção para o Culto e a Instrução Pública do Ministério do Interior da Prússia, Humboldt iniciou o processo de reformas educacionais que resultaram em parâmetros reconhecidos em toda Europa de seu tempo.[24] Entre os feitos efetivados se identificam as bases de uma escola humanista; a implantação de uma docência com formação especial, universitária e não apenas teológica, além de um processo seletivo mais rigoroso. Aí impulsiona-se também um currículo clássico e padronizado, influenciado pelo neo-humanismo, que oferece maior espaço à língua e literatura gregas, assim como um desenvolvimento mais completo e equilibrado da juventude, dando mais atenção às formas estéticas do que aos ditames filológicos.[25] Este plano educacional efetivou-se com a criação da Universidade de Berlim, em 1810, que consolidou os ideais de liberdade de pesquisa e docência, tanto em plano educacional quanto em relação ao Estado.[26]

A ampliação da atividade espiritual do homem operada por Humboldt sugere, assim, a entrada do campo metafísico como parte do viés estrutural da Bildung. Tal princípio é imprevisível e incompreensível ao intelecto humano, agindo como princípio gerador da autonomia do indivíduo.[27]

O paralelo instituído por pensadores como Kant e Blumenbach, por exemplo, entre o desenvolvimento espiritual e natural do indivíduo, passou, através das iniciativas de Humboldt, a ser identificado na Bildung como processos ativos e concomitantes.[28]

Críticas editar

No século XIX, Nietzsche criticou a degradação do conceito de Bildung em sinônimo de cultura geral e instrumento de distinção da burguesia culta alemã, além da aliança espúria entre Estado e cultura do período bismarckiano.[29] No século XX, Adorno e Horkheimer desconstroem os ideais iluministas em relação à sua perspectiva sobre unidade e universalidade, demonstrando as capacidades coercitivas da razão e desmistificando sua pretensão libertadora.[30] A crítica decorre por causa da idealização exagerada sobre o indivíduo e sua impossibilidade de compreender o mundo em toda sua pluralidade.[2]

Referências

  1. Flickinger, p. 432.
  2. a b Möllmann 2011, p. 6.
  3. Nicolau 2016, p. 386.
  4. Zatti, Vicente; Pagotto-Euzebio, Marcos Sidnei (2022). «Educação como processo de formação humana: uma revisão em filosofia da educação ante a premência da utilidade». Portal de Livros Abertos da USP. p. 85. Consultado em 3 de abril de 2022 
  5. JAEGER, Werner (2003). Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes. p. 13 
  6. Britto 2010, p. 1.
  7. a b c d e Alves 2019.
  8. a b Möllmann 2011.
  9. Nicolau 2016, p. 389.
  10. a b Nicolau 2016, p. 390.
  11. Britto 2010, p. 3-4.
  12. Nicolau 2016, p. 392.
  13. Nicolau 2016, p. 392-393.
  14. a b Nicolau 2016, p. 394.
  15. Nicolau, p. 395.
  16. Nicolau 2016, p. 386-387.
  17. Nicolau 2016, p. 388.
  18. Nicolau 2016, p. 391.
  19. Britto 2010, p. 5-6.
  20. Britto 2010, p. 6.
  21. Britto 2010, p. 10.
  22. Nicolau 2016, p. 388-389.
  23. Nicoulau 2016, p. 400.
  24. Nicolau 2016, p. 397-398.
  25. Nicolau 2016, p. 398-399.
  26. Nicolau 2016, p. 399.
  27. Britto 2010, p. 11.
  28. Britto 2010, p. 8.
  29. Alves 2018.
  30. Flickinger, p. 431.

Bibliografia editar

  • Gadamer, H.G. (1990). Wahrheit und Methode. Tübingen: Mohr 
  • JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • Möllmann, A.D. Stephan (2011). O Legado da Bildung. (Tese). Expediente: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 
  • Nipperdey, Thomas (1998). Deutsche Geschichte 1800-1866. München: Beck. ISBN 9783406093548 
  • ZATTI, Vicente; PAGOTTO-EUZEBIO, Marcos Sidnei. Educação como processo de formação humana: uma revisão em filosofia da educação ante a premência da utilidade. São Paulo: FEUSP, 2022. DOI: https://doi.org/10.11606/9786587047294