Jaime (1974)

filme de 1974 dirigido por António Reis e Margarida Cordeiro

Jaime é uma curta-metragem documental antropológica portuguesa de 1974, realizada por António Reis e Margarida Cordeiro (creditada apenas como assistente de realização). O filme retrata a vida de Jaime Fernandes, doente esquizofrénico internado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa. [1]

Jaime
Portugal Portugal
1974 •  cor e pb •  35 min 
Género documentário
Direção António Reis e Margarida Cordeiro (Assistente de realização)
Produção Henrique Espírito Santo
Cinematografia Acácio de Almeida
Edição António Reis e Margarida Cordeiro
Distribuição Animatógrafo (Portugal)
Lançamento 2 de maio de 1974 (Portugal)
Idioma língua portuguesa

Como experiência, é considerado um dos filmes marcantes do Novo Cinema português na área do documentário.[2]

Sinopse editar

Jaime, um trabalhador rural português diagnosticado com esquizofrenia paranoide aos 38 anos. Passou grande parte da sua vida internado no Hospital Miguel Bombarda onde desenha, para fugir à doença mental e para expressar a violência da sua demência. Desenha com sofreguidão, e constantemente, deixando-nos uma obra imensa e que nos é aqui apresentada.[3] Jaime busca, no seu labirinto interior e no exterior que o rodeia, a harmonia que lhe escapou: o sentido das origens, as imagens do seu passado distante, as presenças de um universo ausente, o das terras de Barco, da Beira Baixa, que cedo a cidade lhe roubou. Busca isso nos desenhos que desenha, nas pinturas que pinta. E assim descobre, na força dos traços e no enigma das cores, aquilo a que teve de renunciar: ele próprio, num lugar que deixou de existir. Existir e não existir, real e imaginário são formas de ser que só pela imagem ele consegue fazer viver. Homem sombra no meio das sombras, flamejando: perfis, cores, gritos. A clausura total dentro do espelho.[4][3]

Elenco editar

  • Evangelina Gil Delgado, viúva de Jaime Fernandes.
  • Jaime Fernandes (Imagens de arquivo).

O objeto da curta-metragem é Jaime Fernandes, português nascido em 1900, na freguesia do Barco (Covilhã, Beira Baixa).[5] Trabalhou como camponês, casou com Evangelina Gil Delgado e foi pai, em 1924, de César Gil Fernandes.[6] Com a idade de 38 anos Jaime é diagnosticado com esquizofrenia e internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. Aos 65 anos, começou a pintar, com lápis e esferográfica, ao mesmo tempo que escrevia abundantemente em cadernos vários.[7] Fernandes tinha noção do espaço a ocupar pelo desenho ou pintura. Como estava limitado pelas pequenas dimensões do papel, muitas das suas figuras-homens têm braços caídos ou levantados, enquanto as figuras-animais têm a cauda caída. Durante o curto período de três anos até à sua morte, realizou uma obra pictórica genial, influência do meio social e hospitalar. Jaime Fernandes viria a falecer aos 69 anos, ainda durante o seu internamento.[4]

Dados técnicos editar

Produção editar

Desenvolvimento editar

Quando começou a trabalhar no Hospital Miguel Bombarda enquanto psiquiatra, Margarida Cordeiro viu numa das paredes um desenho de que caracterizou de “arte psicótica” feito por um paciente que ali passara os últimos trinta anos da sua vida e morrera um mês antes. Cordeiro reuniu mais de cem desenhos de Jaime Fernandes. Grande parte da sua criação plástica havia sido perdida. Da que restou, acrescentada aos textos encontrados, ao local do internamento e ao contacto ainda possível com a viúva (então com 71 anos), Margarida Cordeiro propôs a António Reis fazer um filme. O objetivo era retratar toda aquela produção de Jaime Fernandes e explorar o que teria levado até ela.

António Reis estava ligado a um movimento de renovação do cinema português, desde as suas colaborações em Acto da Primavera (1962), de Manoel de Oliveira e Mudar de Vida (1966), de Paulo Rocha. Jaime seria a primeira obra de referência de António Reis enquanto realizador. O cineasta Fernando Lopes providenciou película para a rodagem de Jaime, a partir do material de rodagem de A Promessa, de António Macedo.[7][10]

Margarida Martins Cordeiro sempre se reconheceu como par de António Reis em todo o processo de realização (da concepção, à rodagem e à montagem final), ainda que neste filme tenha assinado apenas como assistente de realização.[11]

Rodagem editar

 
O Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda é um dos cenários proeminentes da curta-metragem.

O árduo trabalho de rodagem decorreu em 1973. Houve aspetos condicionantes à realização do filme, desde logo por não se poder abordar diretamente Jaime nem médicos ou enfermeiros que dessem um testemunho válido. Tentando manter o respeito por Jaime enquanto pessoa, doente e artista, os autores utilizaram o material que ele deixou, os lugares onde ele viveu, o depoimento da esposa e o Rio Zêzere.[12][13] Filmaram e trabalharam sobre os materiais e figuras concretas que existiam no tempo da rodagem do filme. A evocação biográfica e psicológica surge pelo próprio trabalho do artista, atribuindo ao filme características de documentário e ficção sobre esses materiais.

Sobre este processo, Reis comentou que "não conheci o Jaime e no decurso de todas as investigações que fiz ele escapou-me sempre. A única coisa (pouco) que agarrei foi pelo que ele deixou pintado e escrito. De resto, ele próprio escapou-me."[14]

Temas e estilo editar

A curta-metragem detém critérios estéticos que se opõem a pressões políticas ou comerciais do período do Estado Novo, e que concretizam um movimento de renovação dos códigos e inscrições da prática cinematográfica até então desenvolvida em Portugal.[3]

Numa filmagem tímida e amadora, os autores tentam captar a relação decadente entre espaço e mente, numa época em que a falta de condições do Hospital era paralela à atividade sócio-cultural portuguesa. Reis defende o uso de uma câmara deambulante pela sua intenção de captar todos os pormenores, espreitar por todos os buracos de uma forma subjetiva.[15] Apesar de ser essencialmente mudo, o filme apresenta uma forte tendência para a experimentação audio na conjugação com a imagem, procurando envolver o espetador em estados de perturbação que sugerem a riqueza da mente e o descontrolo do pensamento e emoção.[3]

Distribuição editar

O estatuto ideológico da curta-metragem e a representação das condições do hospital psiquiátrico Miguel Bombarda ditaram que a mesma fosse proibida pela censura do regime do Estado Novo.[16] O filme viria a estrear com o fim do regime político, em Lisboa, no Cinema Império, a 2 de maio de 1974.

Festivais editar

O filme fez parte da seleção dos seguintes Festivais internacionais de cinema:

Receção editar

Jaime estabeleceu-se, não só como uma obra seminal da filmografia de António Reis e Margarida Cordeiro, mas uma das peças documentais que encabeçou o movimento vanguardista do Novo Cinema português.[19] A curta-metragem iniciou o prestigio internacional de António Reis e Margarida Cordeiro, conseguiria no fim da década o maior reconhecimento internacional que um cineasta português obtivera, depois de Oliveira. [20] Jaime foi acima de tudo elogiado pelo grande sentido visual e poético e as analogias referenciais das texturas gráficas de Fernandes, ao mesmo tempo que revela os seus contextos de vida desde a sua infância.[21][22] O filme influenciou inúmeros realizadores portugueses, nomeadamente Pedro Costa, que o caracteriza de surpreendente e bastante surrealista.[23]

Premiações editar

Jaime, de António Reis, recebeu o Prémio Bordalo (1974), ou Prémio da Imprensa, na categoria "Cinema", " pela crítica a um ambiente concentracionário destruidor da personalidade humana", a par de Festa, Trabalho e Pão em Grijó, de Manuel Costa e Silva na secção de "Melhores Curtas Metragens". A Casa da Imprensa distinguiu ainda em 1975, nesta categoria, com o "Prémio de Longa Metragem", de O Mal Amado, de Fernando Matos e Silva.[24]

Internacionalmente, foi também galardoado com o Prémio de Curta Metragem no Festival Locarno, o Grande Prémio à Curta Metragem no Festival de Toulon, Prémio de Melhor Argumento no Festival de Curtas Metragens da Grécia e o Prémio de Melhor Filme no Festival Méridiens.[25]

Ver também editar

Referências

  1. Jaime, consultado em 21 de maio de 2020 
  2. «"Hollywood, tens cá disto?": Jaime (1974)». Espalha-Factos. 27 de abril de 2016. Consultado em 21 de maio de 2020 
  3. a b c d «"Jaime", 1974, de António Reis - arteprojectada2». sites.google.com. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  4. a b «Jaime». Doclisboa 2019. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  5. «Jaime». Doclisboa 2019. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  6. www.myheritage.de https://www.myheritage.de/names/jaime_sim%C3%B5es. Consultado em 10 de novembro de 2020  Em falta ou vazio |título= (ajuda)
  7. a b «ANTÓNIO REIS : 159. «JAIME» - Crítica de José Manuel Costa» (em inglês). Consultado em 10 de novembro de 2020 
  8. «film-documentaire.fr - Portail du film documentaire». www.film-documentaire.fr. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  9. Nascimento, Frederico Lopes / Marco Oliveira / Guilherme. «Jaime». CinePT-Cinema Portugues. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  10. «Dennis Lim on António Reis and Margarida Cordeiro». www.artforum.com (em inglês). Consultado em 10 de novembro de 2020 
  11. Branco, Pedro. «PELOS POLÉMICOS CAMINHOS DE TRÁS-OS-MONTES» (PDF). Universidade Católica Portuguesa. Universidade Católica Portuguesa 
  12. Soares, Ana Isabel. «Jaime - entre o documento e a invenção poética» (PDF). Universidade do Algarve. UBI 
  13. «Jaime | Sabzian». www.sabzian.be (em neerlandês). Consultado em 10 de novembro de 2020 
  14. «ANTÓNIO REIS : 044. "JAIME" - depoimento do realizador» (em inglês). Consultado em 10 de novembro de 2020 
  15. «Porto/Post/Doc - Jaime». www.portopostdoc.com. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  16. Marques, Joana Emídio. «António Reis, um poeta maior há 50 anos esquecido». Observador. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  17. «Amordeperdicao.pt». Consultado em 10 de novembro de 2020 
  18. «Porto/Post/Doc - Jaime». www.portopostdoc.com (em inglês). Consultado em 10 de novembro de 2020 
  19. «"Hollywood, tens cá disto?": Jaime (1974)». Espalha-Factos. 27 de abril de 2016. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  20. Castro, Ilda Teresa. «ANTÓNIO REIS E O ESPAÇO DE UM LUGAR» (PDF). AIM. Atas III Encontro Anual AIM 
  21. «JAIME – Encontros Cinematográficos». Consultado em 10 de novembro de 2020 
  22. Mourinha, Jorge. «Os segredos de António Reis e Margarida Cordeiro estão aí para ser descobertos». PÚBLICO. Consultado em 10 de novembro de 2020 
  23. Dérives (9 de agosto de 2014). «"Jaime", un film de António Reis». Dérives autour du cinéma (em francês). Consultado em 10 de novembro de 2020 
  24. «Prémios Bordalo». Em 1974 denominado "Prémio da Imprensa". Sindicato dos Jornalistas. 22 de janeiro de 2002. Consultado em 2 de outubro de 2017 
  25. «ANTÓNIO REIS : 017. "JAIME" - Festivais e Prémios» (em inglês). Consultado em 10 de novembro de 2020 

Ligações externas editar