Modelos de disparos neuronais

Modelos de disparos neuronais são modelos matemáticos que descrevem os padrões com os quais potenciais de ação são iniciados e propagados nos neurônios. Tais modelos compreendem descrições matemáticas das propriedades das células no sistema nervoso que possuem potenciais elétricos. Grosso modo, trata-se de descrições, em linguagem matemática, da comunicação entre os neurônios. Esses modelos são utilizados nos estudos da dinâmica de redes neurais e fundamentam a neurociência computacional e a neuromatemática. Variados modelos são utilizados em pesquisas de neurociência, com diversas implicações no modo como as redes neurais são descritas e simuladas.[1]

Ilustração da propagação do potencial de ação em um neurônio ao longo de seu axônio.
Ilustração da propagação do potencial de ação em um neurônio.

A quantidade de modelos de disparos neuronais é alta.[2] Essa situação está em parte associada a características de diferentes experimentos neurocientíficos. De modo geral, pode-se distinguir os modelos em algumas famílias, conforme sua abordagem. Abaixo, um panorama é feito de alguns desses modelos.

Modelos elétricos de entrada-saída editar

Hodgkin-Huxley editar

 Ver artigo principal: Modelo Hodgkin-Huxley
 
Potencial de membrana   (em milivolts) do modelo Hodgkin-Huxley com uma corrente injetada variando de −5 a 12 nanoampères.

O modelo de Hodgkin-Huxley,[3] ou modelo baseado em condutância, é um modelo matemático que descreve como potenciais de ação nos neurônios são iniciados e propagados. É um conjunto de equações diferenciais ordinárias não-lineares, e, portanto, é um modelo de tempo contínuo, que se aproxima das características elétricas das células excitáveis, tais como neurônios e miócitos cardíacos. Alan Lloyd Hodgkin e Andrew Huxley descreveram o modelo em 1952 para explicar os mecanismos iônicos subjacentes à iniciação e propagação dos potenciais de ação no axônio gigante de uma lula. É um dos principais modelos e um dos grandes avanços da biofísica no século XX. Rendeu aos seus autores o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1963.

É composto por uma série de quatro equações diferenciais não lineares, com suas variáveis de estado descrevendo o potencial de membrana, a ativação de correntes de íon sódio e de íon potássio e a inativação da corrente de íon sódio. Denota-se a relação tensão-corrente, com várias correntes dependentes de voltagem, que carregam a capacitância da membrana   com

 .

Cada corrente é dada por

 ,

em que   é o inverso da resistência elétrica, ou condutância, que pode ser expandida em termos da sua média constante   e as frações dos canais de ativação e inativação   e  , respectivamente, que determinam quantos íons podem fluir através de canais de membrana disponíveis. Tal expansão é

 

e as frações seguem a cinética de primeira ordem

 

com uma dinâmica similar para  , em que se pode usar tanto   e   ou   e   para definir a fração do canal.

O modelo pode ser expandido para incluir outras correntes iônicas. Geralmente, essas consideram a adição de correntes de íons Ca2+ e Na+ para o interior do neurônio e diversas variedades de correntes de K+ para o fora do neurônio, incluindo uma corrente de "vazamento".

Integra-e-dispara editar

O modelo integra-e-dispara (em inglês, integrate-and-fire ou I&F) é um dos mais utilizados pela neurociência computacional. É um dos primeiros modelos de disparos neuronais criados, tendo sido proposto por Louis Lapicque em 1907.[4] Não é um modelo explícito, isto é, não descreve o mecanismo que gera o potencial de ação de um neurônio. Pode ser descrito como

 ,

sendo   a corrente de entrada e   o potencial da membrana. A fórmula é a derivada no tempo da lei da capacitância,  . Quando uma corrente é aplicada, a voltagem da membrana   aumenta até atingir uma constante  , quanto então o neurônio dispara, como uma função delta de Dirac, e a voltagem retorna ao valor de potencial de repouso. Assim, a frequência de disparo cresce linearmente sem restrições com o aumento da corrente.

Integra-e-dispara adaptativo editar

Para lidar com a uni-dimensionalidade do IF, é possível adicionar uma segunda equação linear descrevendo uma dinâmica de ativação para uma corrente de potássio de limite alto para permitir uma adaptação de frequência de disparos no modelo. Assim, com

 

a cada disparo aumenta-se o valor de ativação de K,   via função delta de Dirac  .   e   denotam, respectivamente, as primeiras derivadas temporais das variáveis   e  .

Integra-e-dispara-ou-rajada editar

Outra melhoria feita a partir do modelo inicial de integra-e-dispara é o modelo integra-e-dispara-ou-rajada ou I&FB:[carece de fontes?]

 ,

considerando-se que caso  , então  .

  e   denotam, respectivamente, as primeiras derivadas temporais das variáveis   e  .  ,  ,  ,   e   são parâmetros para descrever a dinâmica da corrente canal de cálcio T,   a intativação dessa corrente, e   uma função degrau de Heaviside. A segunda variável permite modelar rajadas.

Ressoa-e-dispara editar

Enquanto o modelo integra-e-dispara é uni-dimensional, o modelo ressoa-e-dispara é uma forma análoga em versão bi-dimensional, em que   representa o potencial de membrana, e é descrito por[carece de fontes?]

 ,

considerando-se que caso  , então  .

  denota a primeira derivada temporal de  .  ,  ,   e   são parâmetros, e   é uma função arbitrária que descreve o reinicio do sistema após o disparo.

Integra-e-dispara quadrático editar

O modelo integra-e-dispara quadrático (ou QIF) é uma alternativa aos modelos de integra-e-dispara com vazamento. Em Latham et al.[carece de fontes?] o potencial de membrana é modelado por   e sua dinâmica é descrita como

 ,

considerando-se que caso  , então  .

  denota a primeira deriava temporal de  .   e   são os valores de repouso e de limiar máximo do potencial de membrana. De acordo com Izhikevich, “este deve ser o modelo de escolha quando alguém simula redes de integradores em grande escala”.[5]

Modelos estocásticos editar

Modelos nesta categoria são generalizações dos casos integra-e-dispara com um certo nível de estocasticidade. A estocasticidade pode aparecer na modelagem de neurônios por dois motivos. O primeiro ocorre devido à abertura e ao fechamento de canais iônicos,[6] que resultam em uma pequena variabilidade no valor do potencial de membrana e no instante de tempo dos disparos. O outro motivo decorre do fato que, para um neurônio inserido em uma rede cortical, é difícil controlar de qual outro neurônio um sinal de estímulo chega, dado que a maioria dos impulsos são oriundos de neurônios em alguma outra região do cérebro não observada.[7]

Galves-Löcherbach editar

 Ver artigo principal: Modelo Galves-Löcherbach
 
Visualização 3D do modelo de Galves-Löcherbach com 4.000 neurônios (4 camadas com uma população de neurônios inibitórios e uma população de neurônios excitatórios cada) em 180 intervalos de tempo.

O modelo de Galves-Löcherbach[8] consiste de rede de neurônios idealizados que interagem por eventos discretos esporádicos quase instantâneos (picos ou disparos). A cada instante, cada neurônio dispara independentemente, com uma probabilidade dependente do histórico de disparos dos demais neurônios.

Dessa forma, a probabilidade de um dado neurônio   disparar em um certo tempo  , de acordo com o modelo probabilístico, é dada por

 ,

em que   é um peso sináptico que representa o aumento do potencial de ação do neurônio   devido ao disparo do neurônio  ,   é uma função que modela o vazamento de potencial e   é o momento de disparo mais recente do neurônio   antes do tempo em questão  , descrito por

 .

Modelos didáticos editar

Os modelos dessa categoria são simplificações que descrevem qualitativamente o potencial de membrana como função de uma entrada. Enquanto são mais simples de implementar quando comparado com modelos mais realistas como o de Hodgkin-Huxley, apresentam uma robustez maior do que os modelos simples de integra-e-dispara. Geralmente são baseados em sistemas de equações diferenciais que ajustam medidas reais, suas principais aplicações são didáticas e em simulações com uma grande quantidade de neurônios.

FitzHugh-Nagumo editar

 Ver artigo principal: Modelo FitzHugh-Nagumo
 
Gráfico da evolução temporal de   no modelo de FitzHugh-Nagumo.

O modelo de FitzHugh-Nagumo,[9] originalmente chamado de oscilador Bonhoeffer–van der Pol, é um exemplo de sistema dinâmico excitatório-oscilatório com duas variáveis de estado.  , é a variável relacionada ao potencial de membrana, enquanto   é responsável pela acomodação e resistência do sistema. Sua dinâmica é descrita por

 ,

em que   e   representam, respectivamente, as primeiras derivadas temporais das variáveis   e  .

Hindmarsh-Rose editar

 Ver artigo principal: Modelo Hindmarsh-Rose
 
Gráfico da evolução temporal de   no modelo de Hindmarsh-Rose.

O modelo de Hindmarsh-Rose[10] é um sistema dinâmico baseado em três variáveis de estado capaz de modelar disparos únicos e em rajadas.   refere-se ao potencial de membrana,   é a taxa de transporte dos íons sódio e potássio feito por canais rápidos, enquanto o transporte de outros íons, como o cálcio, que é feito através de canais lentos, é representado por  . O sistema que descreve esse modelo é

 ,

em que  ,   e   representam, respectivamente, as primeiras derivadas temporais das variáveis  ,   e  .

Morris-Lecar editar

 Ver artigo principal: Modelo de Morris–Lecar
 
Gráfico da evolução temporal de   no modelo de Morris-Lecar com diferentes correntes de excitação.

O modelo de Morris-Lecar[11] é um modelo bidimensional desenvolvido para reproduzir oscilações na fibra muscular de uma cirripedia. As variáveis são o potencial de membrana,  , e a variável de recuperação,  , que indica a probabilidade de o canal de íon potássio estar conduzindo corrente. O modelo pode considerado uma simplificação do modelo de Hodgkin-Huxley e é baseado no sistema

 ,

em que

 

e   e   denotam as primeiras derivadas temporais das variáveis   e  .

Rulkov editar

 Ver artigo principal: Mapa de Rulkov
 
Gráfico da evolução temporal de   no modelo de Rulkov em regime de disparo único (a) e de rajadas (b).

O mapa de Rulkov é um modelo de disparo neuronal baseado em um sistema dinâmico discreto. Foi proposto por Nikolai F. Rulkov em 2001.[12]   representa o potencial de membrana do neurônio e  , por mais que não tenha significado biológico explícito, pode ser feita alguma analogia com uma variável de controle simulando um canal iônico. Seu comportamento é descrito pelo sistema

 ,

em que   varia conforme as condições

 .

Izhikevich editar

 
Visualização 3D do modelo de Izhikevich com 4.000 neurônios (4 camadas com uma população de neurônios inibitórios e uma população de neurônios excitatórios cada) em 180 intervalos de tempo.

O matemático Eugene Izhikevich propôs um modelo a partir do qual podem ser reproduzidos diversos padrões de disparo observados no córtex motor de ratos.[13] O sistema que descreve o modelo é baseado na redução, por metodologias de bifurcações[14] de outros modelos mais biofisicamente apropriados, como o de Hodgkin-Huxley, no sistema bidimensional de equações diferenciais ordinárias

 

com a inclusão de um mecanismo de reinício após um disparo conforme se  mV, então  ,

em que   e   denotam as primeiras derivadas temporais das variáveis   e  , que são respectivamente, o potencial de membrana e a variável de recuperação da membrana.

Wilson editar

O modelo de Hugh R. Wilson[15] utiliza um sistema com quatro equações diferenciais relacionadas às correntes iônicas responsáveis pela propagação dos sinais nervosos, assim como no modelo de Hodgkin-Huxley. Contudo, são inclusas correntes posteriormente estudadas do íon Ca2+, e outra ao íon K+ após a hiperpolarização do neurônio.[16][17] A partir das equações é possível simular diversos comportamentos presentes no córtex humano, como disparos regulares e em rajadas.   é o potencial de membrana,   é a variável de recuperação do modelo,   modela a corrente de Ca2+ e   a corrente de K+ após a hiperpolarização. O modelo é descrito pelo sistema

 ,

em que

 

e  ,  ,   e   denotam, respectivamente, as primeiras derivadas temporais das variáveis  ,  ,   e  .

Ver também editar

Referências

  1. Gerstner, W.; Kistler, W. M. (2002). Spiking Neuron Models; Single Neurons, Populations, Plasticity. Cambridge: Cambridge University Press 
  2. Izhikevich, E. M. (13 de setembro de 2004). «Which Model to Use for Cortical Spiking Neurons?». IEEE Transactions on Neural Networks. 15 (5): 1063-1070. ISSN 1941-0093. doi:10.1109/TNN.2004.832719 
  3. Hodgkin, A. L.; Huxley, A. F. (28 de agosto de 1952). «A quantitative description of membrane current and its application to conduction and excitation in nerve». The Journal of Physiology. 117 (4): 500–544. PMID 12991237. doi:10.1113/jphysiol.1952.sp004764 
  4. Abbott, L. F. (1 de novembro de 1999). «Lapique's introduction of the integrate-and-fire model neuron (1907)». Brain Research Bulletin. 50 (5/6): 303–304. PMID 10643408. doi:10.1016/S0361-9230(99)00161-6 
  5. Izhikevich, E. M. (13 de setembro de 2004). «Which Model to Use for Cortical Spiking Neurons?». IEEE Transactions on Neural Networks. 15 (5): 1063-1070. ISSN 1045-9227. PMID 15484883. doi:10.1109/TNN.2004.832719 
  6. Manwani, A.; Koch, C. (novembro de 1999). «Detecting and estimating signals in noisy cable structure, I: neuronal noise sources». Neural Computation. 11 (8): 1797–829. PMID 10578033. doi:10.1162/089976699300015972 
  7. Gerstner, W.; Kistler, W. M.; Naud, R.; Paninski, L. (22 de setembro de 2014). Neuronal dynamics: from single neurons to networks and models of cognition. United Kingdom: Cambridge University Press. ISBN 1107635195 
  8. Galves, A.; Löcherbach, E. (junho de 2013). «Infinite Systems of Interacting Chains with Memory of Variable Length — A Stochastic Model for Biological Neural Nets». Journal of Statistical Physics. 151 (5): 896-921. doi:10.1007/s10955-013-0733-9 
  9. FitzHugh, R. (julho de 1961). «Impulses and physiological states in models of nerve membrane». Biophysical Journal. 1 (6): 445–466. PMID 19431309. doi:10.1016/s0006-3495(61)86902-6 
  10. Rose, R. M.; Hindmarsh, J. L. (22 de agosto de 1989). «The assembly of ionic currents in a thalamic neuron. I The three-dimensional model». Proceedings of the Royal Society of London. Series B. 237 (1288): 267–288. doi:10.1098/rspb.1989.0049 
  11. Morris, C.; Lecar, H. (1981). «Voltage oscillations in the barnacle giant muscle fiber». Biophysical Journal. 35 (1): 193–213. PMID 7260316. doi:10.1016/S0006-3495(81)84782-0 
  12. Rulkov, N. F. (maio de 2002). «Modeling of spiking-bursting neural behavior using two-dimensional map». Physical review. E, Statistical, nonlinear, and soft matter physics. 65 (4): 041922. ISSN 1539-3755. doi:10.1103/PhysRevE.65.041922 
  13. Izhikevich, E. M. (novembro de 2003). «Simple model of spiking neurons». IEEE Transactions on Neural Networks. 14 (6): 1569–1572,. ISSN 1045-9227. doi:10.1109/TNN.2003.820440 
  14. Izhikevich, Eugene M. (22 de janeiro de 2010). Dynamical Systems in Neuroscience: The Geometry of Excitability and Bursting (em inglês). [S.l.]: The MIT Press. ISBN 978-0262514200 
  15. Wilson, H. R. (21 de outubro de 1999). «Simplified dynamics of human and mammalian neocortical neurons». Journal of Theoretical Biology. 200 (4): 375–388. PMID 10525397. doi:10.1006/jtbi.1999.1002 
  16. Gutnick, M. J.; Crill, W. E. (outubro de 1995). «3. The Cortical Neuron as an Electrophysiological Unit». The Cortical Neuron. Nova Iorque: Oxford University Press. pp. 33–51. doi:10.1093/acprof:oso/9780195083309.003.0003 
  17. McCormick, D. A. (janeiro de 2004). «2. Membrane properties and neurotransmitter actions». The Synaptic Organization of the Brain. Nova Iorque: Oxford University Press. pp. 39–78. doi:10.1093/acprof:oso/9780195159561.003.0002