Orlando Furioso (pronúncia italiana: [orˈlando fuˈrjoːzo, -so]) é um poema épico de cavalaria ou um romance de cavalaria escrito por Ludovico Ariosto em oitavas (estrofe de oito versos decassílabos usada pela primeira vez por Boccaccio, em Teseida, de 1340).

Página de rosto de Orlando Furioso, edição Valgrisi, 1558

A primeira edição da obra com 40 cantos é de 1516, enquanto a segunda e terceira edições foram publicadas respectivamente em 1521 e 1536, sendo que a última edição contém 46 cantos. O poema é dedicado ao cardeal Ippolito d'Este (1479–1520) e tem um caráter encomiástico.

Título editar

 
Página da edição de 1565 do Orlando Furioso de Francesco Franceschi.

O poema de Ariosto nasceu como uma continuação do poema Orlando apaixonado, de Matteo Maria Boiardo. Nas oitavas V a IX da obra, o poeta revela brevemente que os antecedentes, já haviam sido narrados por Boiardo. Na verdade, é possível considerar a história como uma história ao infinito, uma vez que a conclusão do Furioso não coloca um ponto final nos acontecimentos narrados.

Apesar de ser uma continuação de Orlando Enamorado, Orlando Furioso apresenta mudanças significativas no caráter do personagem. Já o poema de Boiardo continha uma novidade, em relação a toda a tradição literária precedente, por mostrar o paladino, fervoroso defensor da fé católica, como um apaixonado. Em Ariosto, o apaixonado se transforma num louco, tomado pelo furor. Além da retomada do poema precedente, é provável que o título também seja uma retomada da tragédia latina Hercules furens, do filósofo estóico Sêneca.[1]

Oralidade e escritura editar

Pode-se afirmar que o Orlando Furioso é a última grande obra da literatura ocidental na qual a relação direta entre o ouvinte è constitutiva na construção da narrativa. Essa relação estreita é atestada pelos recorrentes diálogos, sobretudo quando o poeta se dirige ao cardeal Ippolito d’Este a quem a obra é dedicada.[1]

Na construção do poema, a passagem entre uma história a outra é ligada explicitamente pelo desejo de não cansar e aborrecer o leitor com a mesma justificativa. Nesse sentido, é notável a associação que Ariosto estabelece entre seu trabalho poético e o trabalho de um músico, que alterna sons agudos e graves, além de mudar continuamente de ritmo.[1]

Com relação à coloquialidade, outra característica é a atribuição de nomes aos personagens menores. Tais personagens entram em cena, no entanto o nome próprio só é dito quando a ação já foi concluída. Essa técnica se assemelha à experiência comum no discurso amigável e informal em que a descrição do fato é realizada antes da nominação dos sujeitos.[1]

Canto I editar

Nas primeiras quatro oitavas do poema, Ariosto define a matéria sobre a qual cantará “Damas e paladis, armas e amores / As cortesias e façanhas canto”,[2] além de estabelecer um recorte geográfico e apresentar em poucos versos os acontecimentos anteriores. Se diz: “tempo em que o mar Mouros vingadores / passaram, para França molestar tanto” e ainda: “rei de África, Agramante, porquanto/ousou vingar a morte de Troiano / em rei Carlos, imperador romano”. Na segunda estrofe, afirma que contará sobre coisas nunca ditas em prosa ou rima a respeito de Orlando “por amor ficou furioso e demente / tendo antes de sensato fama opima”.

Lê-se:

1

Le donne, i cavallier, l’arme, gli amori,

le cortesie, l’audaci imprese io canto,

che furo al tempo che passaro i Mori

d’Africa il mare, e in Francia nocquer tanto, seguendo l’ire e i giovenil furori

d’Agramante lor re, che si diè vanto

di vendicar la morte di Troiano

sopra re Carlo imperator romano.

1

Damas e paladis, armas e amores,

As cortesias e façanhas canto

Do tempo em que o mar d’Africa os rigores

Dos mouros trouxe, e França esteve em pranto,

Ira os movia e juvenis furores

De Agramante seu rei, disposto a tanto

Que ousou vingar a morte de Troiano

Em Carlos, rei e imperador romano

2

Dirò d’Orlando in un medesmo tratto

cosa non detta in prosa mai né in rima:

che per amor venne in furore e matto,

d’uom che sí saggio era stimato prima;

se da colei che tal quasi m’ha fatto,

che ’l poco ingegno ad or ad or mi lima,

me ne sará però tanto concesso,

che mi basti a finir quanto ho promesso.

2

De Orlando, ao mesmo tempo, direi eu

O que nunca se disse, em prosa ou rima,

Que o amor o pôs em fúrias de sandeu

E lhe tirou de homem cordato a estima;

Isto, se a que igual fim quase me deu

E o pouco engenho me corrói qual lima,

Assentir em poupar-me em tal medida,

Que eu possa dar a obra prometida.

Textos editar

Personagens principais editar

Cristãos editar

Carlos Magno: imperador do Sacro Império Romano e lidera os francos na guerra contra os sarracenos. Também é tio de Orlando.[3][4]

Orlando: conde da Brava e sobrinho de Carlos Magno. O traço emblemático que possui é o signo de Almonte, constituído por quartos brancos e vermelhos. É reconhecido como um dos paladinos mais fortes do exército cristão. Enlouquece após ver Angélica (por quem é apaixonado) com Medoro.[3][4]

Rinaldo: irmão de Bradamante e primo de Orlando. Destemido guerreiro do exército cristão. É apaixonado por Angélica.[4]

Astolfo: é o amigo mais valoroso de Orlando, um valente cavaleiro e filho de Carlos da Inglaterra. No início do poema, é transformado em um mirto pela maga Alcina. É ele o responsável por recuperar o juízo de Orlando na Lua.[4]

Bradamante: importante guerreira do exército cristão. Irmã de Rinaldo e prima de Orlando. É apaixonada por Ruggiero, que faz parte do exército inimigo. Bradamante se casa com Ruggiero e os dois se tornam os precursores da família Este.[3]

Sarracenos editar

Agramante: rei da África. Procura se vingar de Carlos Magno, responsável pela morte do rei Troiano. Lidera o exército sarraceno no bloqueio a Paris.[4]

Ruggiero: é o precursor da família Este juntamente a Bradamante. É um guerreiro leal e virtuoso, qualidades que são sublinhadas no poema. Ruggiero é apaixonado por Bradamante, guerreira cristã, e por isso se converte ao cristianismo.[3][4]

Medoro: jovem no exército sarraceno. É apaixonado por Angélica.[4]

Angélica: princesa do Catar. Por ela se apaixonam muitos personagens da história, entre os quais Orlando e Rinaldo. Ao fim do poema, se casa com Medoro. É especialista em ervas e magia.[3][4]

Marfisa: guerreira destemida do exército sarraceno. Inimiga de Bradamante. Irmã gêmea de Ruggiero.[4]

Trama e estrutura editar

 
Ruggiero Resgatando Angelica por Jean Auguste Dominique Ingres.

A obra é constituída de 46 cantos em oitavas se estabelece nas obras cavaleirescas. No total são 4822 oitavas e 38.576 versos. Os cantos apresentam estruturas diferentes, podendo ter mais ou menos versos. No entanto, é recorrente o preâmbulo no início de cada um dos cantos, geralmente de natureza moral, além disso Ariosto raramente conclui a narração de um acontecimento no interior de um mesmo canto. O poeta se interrompe e volta a outros acontecimentos, prometendo que continuará a narração mais adiante. Essa técnica narrativa segmentada consente ao escritor de seguir e entrecruzar com desenvoltura as diversas tramas e fios narrativos.

Com relação aos fios narrativos e tramas presentes no Orlando furioso, pode-se dizer que a trama é complicada e não é facilmente descrita. O argumento do poema tem como pano de fundo as guerras entre Carlos Magno e os Mouros (muçulmanos) que invadiram a França liderados por Agramante. Outro dos fios narrativos presente é o amor, não somente de Orlando, mas de muitos outros cavaleiros (cristãos e muçulmanos) conquistados pela beleza de Angélica (princesa do Qatar). A tentativa de Angélica de escapar dos seus pretendentes é o motivo que a leva a sua fuga constante até que ela cai nos braços de Medoro, fato que causa tanto desespero e tanta dor a Orlando que o faz enlouquecer.[2]

O terceiro fio narrativo é o amor entre Ruggiero, no início da história um cavaleiro pagão, e Bradamante, irmã do paladino Rinaldo, uma bela e valente guerreira. Da união entre Ruggiero e Bradamante, que são descendentes de Astíanax,[5] tem origem a estirpe da família Este.[2] É importante lembrar que a obra foi dedicada ao cardeal Ippolito d'Este e apresenta um motivo encomiástico.

O quarto fio narrativo são as aventuras de Astolfo, cavaleiro inglês, que foi transformado em uma árvore pela maga Alcina. Após a sua liberação, em sela a um cavalo alado, o hipogrifo, vai até o Inferno e sobe até a Lua para buscar o juízo perdido de Orlando. Por fim, outro fio narrativo é a história de Reinaldo que se baseia no cliché no “cavaleiro errante” da tradição cavaleiresca. Reinaldo é dividido entre o amor que nutre por Angélica e a fidelidade ao Imperador e à religião católica.[2]

Mulheres guerreiras editar

A figura da mulher guerreira já estava presente na tradição cavaleiresca italiana anterior (como Clorinda em Jerusalém liberada de Torquato Tasso) e também na tradição clássica, nas figuras como Pentesiléia (rainha das amazonas) e Camila (na Eneida).

Em Orlando furioso, as mulheres guerreiras são duas: Bradamante e Marfisa. A primeira aparece já no cantare[6] (tipologia de poema composto na Itália entre os séculos XIV e XV) Historia di Bradamionte sorella di Rinaldo di Monte Albano e é retomada por Boiardo em Orlando apaixonado. Na literatura contemporânea, Bradamante é também personagem do livro O cavaleiro inexistente de Italo Calvino. E Marfisa, guerreira sarracena, aparece pela primeira vez no poema de Boiardo.[2]

Entre as duas guerreiras encontram-se diversas ligações: Marfisa descobre que é irmã gêmea de Ruggiero, a quem segue na conversão ao cristianismo; e Ruggiero se apaixona por Bradamante que é irmã do paladino Rinaldo. Além disso, a figura dessas mulheres não é privada de ambiguidade. No ofício das armas, não temem o confronto com os cavaleiros homens, mas ao mesmo tempo conservam ideias como a beleza e a feminilidade.[2]

Moralidade e grandes temáticas editar

Por ter como objetivo o divertimento, muitas vezes o poema é acusado de uma presunta futilidade, no entanto as aventuras apresentadas têm como base uma sólida trama moral que emerge principalmente nos preâmbulos.

Os preâmbulos comentam o que ocorreu nos capítulos precedentes ou antecipam o que está para acontecer no canto que introduzem. Além disso, alguns são explicitamente encomiásticos e exprimem pedras angulares de uma vida civil e orientada moralmente. Em geral, Ariosto expõe 3 aspectos principais sobre a sua visão de mundo: a falácia e a instabilidade do juízo humano, a importância do Amor e a Fortuna (entendida como destino, força que move os acontecimentos).

O autor retoma o tema do Amor e o conflito, já presente na cultura antiga, entre desejo e razão. Ariosto sublinha como o Amor é uma força que arranca dos indivíduos a lógica do comportamento. Com relação ao terceiro aspecto, sublinha-se como a vida e o destino dos homens depende da Fortuna.

A loucura de Orlando editar

Se o Amor é o motor da máquina universal e se o Amor é também loucura, pode-se deduzir que uma força desequilibrada controla o mundo e a história de Orlando é exemplar.

A reflexão sobre a irracionalidade levantada por Ariosto culmina na viagem de Astolfo, montado no hipogrifo, até a Lua para recuperar o juízo perdido de Orlando. Astolfo é um personagem singular que no início do poema (canto VI) é inegavelmente fascinado pela maga Alcina e por ela é transformado em um mirto. Não é casual que a ele seja atribuída a tarefa de ir até a Lua e procurar o juízo de outro paladino igualmente perdido de amor.[2]

Chegando a Lua com a ajuda de um santo, João evangelista, Astolfo encontra em uma ampola lunar o juízo de Orlando. A Lua é apresentada como um espelho terrestre: tudo o que acontece na Terra também acontece na Lua (somente a loucura continua toda na Terra).[2]

Entre as causas da loucura, Ariosto coloca: o amor, a honra, a procura por riquezas no além mar, as esperanças depositadas nos senhores, as obras dos pintores; de fato o juízo de muitos se encontra na Lua. Para não deixar dúvida sobre o fenômeno, o poeta afirma que cada um que na Terra deseja algo deve ceder uma pequena parte do seu juízo que será fechado em uma ampola lunar.

Obras inspiradas em Orlando Furioso editar

No barroco, o poema foi a base de muitas óperas, entre as quais Orlando Furioso de Antonio Vivaldi e Alcina, Ariodante e Orlando de Händel são as mais proeminentes. As obras de John Milton e Cervantes também se referem ao épico.

Referências

  1. a b c d ROSA, Asor (2009). Storia europea della letteratura italiana. Turim: Einaudi 
  2. a b c d e f g h i ARIOSTO, Ludovico (2004). Orlando Furioso: Cantos e episódios.Tradução: Pedro Garcez Ghirardi. São Paulo: Ateliê Editorial. p. 51 
  3. a b c d e «I personaggi principali dell'Orlando Furioso». Viva la Scuola (em italiano). Consultado em 2 de setembro de 2021 
  4. a b c d e f g h i «Orlando Furioso: descrizione personaggi». Skuola.net - Portale per Studenti: Materiali, Appunti e Notizie (em italiano). Consultado em 2 de setembro de 2021 
  5. Ariosto, Ludovico (2007). Orlando Furioso. Lisboa: Cavalo de ferro 
  6. Treccani. «Cantare». Treccani. Consultado em 16 de outubro de 2020 

Ligações externas editar

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