Prova da irracionalidade de π

No século XVIII, Johann Heinrich Lambert provou que o número π (pi) é irracional. Em outras palavras, ele não pode ser expresso como uma fração a/b, em que a é um número inteiro e b é um inteiro não nulo. No século XIX, Charles Hermite encontrou uma prova que não requer nenhum pré-requisito de conhecimento além de cálculo básico. Três simplificações da prova de Hermite são devidas a Maria Cartwright, Ivan Niven e Bourbaki. Outra prova, que é uma simplificação da prova de Lambert, é devida a Miklós Laczkovich.

Em 1882, Ferdinand von Lindemann provou que π não só é irracional, como também é transcendental.[1]

Prova de Lambert editar

 
Digitalização de uma fórmula da página 288 de "Mémoires sur quelques propriétés remarquables des quantités transcendantes, circulares, et logarithmiques" de Lambert, Mémoires de l'Académie royale des sciences de Berlim (1768), 265–322

Em 1761, Lambert provou que π é irracional mostrando primeiro que vale a seguinte expansão em frações continuas:

 

Em seguida, Lambert provou que, se x é diferente de zero e racional, então esta expressão deve ser irracional. Como tan(π/4) = 1, segue-se que π/4 é irracional e, portanto, que π é irracional.[2] Uma simplificação da prova de Lambert é dada abaixo.

Prova de Hermite editar

Esta prova utiliza a caracterização de π como o menor número positivo cuja metade é um zero da função cosseno e na verdade prova que π2 é irracional.[3][4] Como em muitas demonstrações de irracionalidade, a argumentação é feita por redução ao absurdo.

Considere as sequências (An)n ≥ 0 e (Un)n ≥ 0 de funções de R em R, assim definidas:

  1.  
  2.  
  3.  
  4.  

Pode-se provar por indução que

 
e que
 
e, por conseguinte, que
 
Logo,
 
o que é equivalente a
 
Segue disto por indução, e do fato de que A0(x) = sin(x) e que A1(x) = −x cos(x) + sin(x), que An(x) pode ser escrito como Pn(x2)sin(x) + xQn(x2)cos(x), em que Pn e Qn são funções polinomiais com coeficientes inteiros, sendo que o grau de Pn é menor ou igual a ⌊n/2⌋. Em particular, An(π/2) = Pn(π2/4).

Hermite também forneceu uma expressão fechada para a função An, a saber

 
Ele não justificou esta afirmação, mas ela pode ser comprovada facilmente. Primeiramente, esta afirmação é equivalente a
 
Procedendo por indução, considere n = 0.
 
e, para o passo de indução, considere qualquer nZ+. Se
 
então, usando integração por partes e a regra de Leibniz, obtém-se
 
Se π2/4 = p/q, com p e q em N, então, uma vez que os coeficientes de Pn são números inteiros e o seu grau é menor ou igual a ⌊n/2⌋, o número pn/2⌋Pn(π2/4) é algum inteiro N. Em outras palavras,
 
Mas este número é claramente maior do que 0; portanto, NN. Por outro lado,
 
e assim, se n é suficientemente grande, N < 1. Deste modo, obteve-se uma contradição.

Hermite não apresentou a sua prova como um fim em si, mas como uma reflexão posterior em sua busca por uma prova da transcendência de π. Ele discutiu as relações de recorrência para motivar e obter uma representação integral conveniente. Uma vez que esta representação integral é obtida, existem várias formas de apresentar uma prova sucinta e autocontida a partir do integral (como nas apresentações de Cartwright, Bourbaki ou Niven), que podiam ser vistas por Hermite (como ele fez em sua prova da transcendência de e[5]).

Além disso, a prova de Hermite é mais próxima da prova de Lambert do que parece. Na verdade, An(x) é o "resíduo" (ou "resto") da fração contínua de Lambert para tan(x).[6]

Prova de Cartwright editar

Harold Jeffreys escreveu que esta prova foi colocada como um exemplo em um exame na Universidade de Cambridge, em 1945 por Mary Cartwright, mas que ela não havia identificado a sua origem.[7]

Considere as integrais

 
em que n é um número inteiro não negativo.

Duas integrações por partes resultam na relação de recorrência

 
Se
 
então isso se torna
 
Além disso, J0(x) = 2sen(x) e J1(x) = -4x cos(x) + 4sen(x). Assim, para todo nZ+,
 
em que Pn(x) e Qn(x) são polinômios de grau ≤ 2n, e com coeficientes inteiros (que dependem de n).

Tome x = π/2, e suponha, se possível, que π/2 = a/b, sendo a e b números naturais (em outras palavras, suponha que π é racional). Então,

 
O lado direito é um número inteiro. Mas 0 < In(π/2) < 2 uma vez que o intervalo [−1, 1] tem comprimento 2 e a função que está sendo integrada assume apenas valores entre 0 e 1. Por outro lado,
 
Assim, para n suficientemente grande
 
isto é, seria possível encontrar um número inteiro entre 0 e 1. Essa é uma contradição que decorre da hipótese de que π é racional.

Esta prova é semelhante à de Hermite. De fato,

 
No entanto, é claramente mais simples. Consegue-se isso passando a definição indutiva das funções An e tomando como ponto de partida a sua expressão como uma integral.

Prova de Niven editar

Esta prova utiliza a caracterização de π como o menor raiz positivo da função seno.[8]

Suponha que π é racional, ou seja, que π = a /b para certos inteiros a e b ≠ 0 que, sem perda de generalidade, podem ser tomados positivos. Dado qualquer inteiro positivo n, define-se a função polinomial f de R em R por

 
e, para cada xR denote por
 
a soma alternada de f e com suas primeiras n derivadas de ordem par.

Afirmação 1: F(0) + F(π) é um número inteiro.

Prova: Expandindo f como uma soma de monômios, o coeficiente de xk é um número da forma ck /n! em que ck é um número inteiro, que é 0 se k < n. Portanto, f (k)(0) é 0 quando k < n e é igual a (k! /n!) ck se nk ≤ 2n; em ambos os casos, f (k)(0) é um número inteiro e, portanto, F(0) é um número inteiro.

Por outro lado, f(πx) = f(x) e portanto, (–1)kf (k)(πx) = f (k)(x) para cada inteiro não negativo k. Em particular, (–1)kf (k)(π) = f (k)(0). Portanto, f (k)(π) também é um número inteiro e assim F(π) é um inteiro (na verdade, é fácil ver que F(π) = F(0), mas isto não é relevante para a prova). Desde que F(0) e F(π) são números inteiros, a sua soma também é.

Afirmação 2:

 
Prova: Como f (2n + 2) é o polinômio nulo, tem-se
 
As derivadas das funções seno e cosseno são dadas por sen' = cos e cos' = −sen. Portanto, a regra do produto implica
 
Pelo teorema fundamental do cálculo
 
Como sen 0 = sen π = 0 e cos 0 = – cos π = 1 (aqui é usada a caracterização de π mencionada acima, como um zero da função seno), resulta que a afirmação 2 é verdadeira.

Conclusão: Como f(x) > 0 e sin x > 0 para 0 < x < π (porque π é a menor raiz positiva da função seno), as afirmações 1 e 2 mostram que F(0) + F(π) é um inteiro positivo. Como 0 ≤ x(abx) ≤ πa e 0 ≤ sin x ≤ 1 para 0 ≤ xπ, resulta da definição original de f, que

 
que é menor do que 1 para n grande, de modo que F(0) + F(π) < 1 para estes n, pela afirmação 2. Isso é impossível para o número inteiro positivoF(0) + F(π).

A prova acima é uma versão polida, que é mantida tão simples quanto possível em relação aos pré-requisitos, de uma análise da fórmula

 
que é obtida através de 2n + 2 integrações por partes. A afirmação 2 essencialmente estabelece esta fórmula, onde o uso de F esconde as repetidas integrações por partes. A última integral desaparece porque f (2n + 2) é o polinômio nulo. A afirmação 1 mostra que a soma restante é um número inteiro.

A prova de Niven está mais perto da de Cartwright (e, portanto, da de Hermite) do que parece à primeira vista.[6] Na verdade,

 
Portanto, a substituição xz = y transforma esta integral em
 
Em particular,
 
Outra conexão entre as provas reside no fato de que Hermite já menciona[3] que se f é uma função polinomial e
 
então,
 
e a partir disso, segue-se que
 

Prova de Bourbaki editar

Bourbaki descreve sua prova em linhas gerais em um exercício em seu tratado de Cálculo.[9] Para cada número natural b e cada número inteiro não negativo n, defina

 
Como Umn(b) é a integral de uma função definida em [0,π] que zera em 0 e em π e que é maior do que 0 nos demais pontos, Uman(b) > 0. Além disso, para cada número natural b, Uman(b) <1 para n suficientemente grande, porque
 
e portanto
 
Por outro lado, a integração por partes recursivamente permite a dedução de que, se a e b são números naturais tais que π = a/b e f é a função polinomial de [0,π] em R definida por
 
então:
 
Esta última integral é 0 pois f(2n + 1) é a função nula (já que f é uma função polinomial de grau 2n). Como cada função f(k) (com 0 ≤ k ≤ 2n) assume valores inteiros em 0 e em π (ver afirmação 1 da prova de Niven) e como o mesmo acontece com as funções seno e cosseno, isto prova que An(b) é um inteiro. Como ele também é maior do que 0, ele deve ser um número natural. Mas também foi mostrado que An(b) <1 se n é suficientemente grande, chegando deste modo a uma contradição.

Esta prova é bastante próxima a de Niven, sendo a principal diferença entre elas a forma como é demonstrado que os números An(b) são inteiros.

Prova de Laczkovich editar

A prova de Miklós Laczkovich é uma simplificação da prova original de Lambert.[10] Ele considera as funções

 
Estas funções estão claramente definidas para todo x ∈ R. Além disso
 
Afirmação 1: Vale a seguinte relação de recorrência:
 
Prova: Isto pode ser provado comparando os coeficientes das potências de x.

Afirmação 2: Para cada x ∈ R,  

Prova: De fato, a sequência x2n/n! é limitada (pois converge para 0) e se C é uma cota superior e se k > 1, então

 
Afirmação 3: Se x ≠ 0 e se x2 é racional, então
 
Prova: Caso contrário, existiria um número y ≠ 0 e inteiros a e b tais que fk(x) = ay e fk + 1(x) = by. Para ver o porquê, considere y = fk + 1(x), a = 0 e b = 1 se fk(x) = 0; caso contrário, escolha inteiros a e b tais que fk + 1(x)/fk(x) = b/a e defina y = fk(x)/a = fk + 1(x)/b. Em cada caso, y não pode ser 0, pois senão resultaria da afirmação 1 que cada fk + n(x) (n ∈ N) seria igual a 0, o que contradiria a afirmação 2. Agora, tome um número natural c tal que todos os números bc/k, ck/x2 e c/x2 sejam inteiros e considere a sequência
 
Então
 
Por outro lado, resulta da afirmação 1 que
 
que é uma combinação linear de gn + 1 e gn com coeficientes inteiros. Então, cada gn é um múltiplo inteiro de y. Além disso, resulta da afirmação 2 que cada gn é maior do que 0 (e consequentemente que gn ≥ |y|) se n é grande o bastante e que a sequência de todas as gn's converge para 0. Mas uma sequência de números maiores ou iguais a |y| não pode convergir para 0.

Como f1/2(π/4) = cos(π/2) = 0, resulta da afirmação 3 que π2/16 é irracional e que portanto π é irracional.

Por outro lado, como

 
outra consequência da afirmação 3 é que, se x ∈ Q\{0}, então tan x é irracional.

A prova de Laczkovich é, realmente sobre a função hipergeométrica. De fato, fk(x) = 0F1(k; −x2) e Gauss encontrou uma expansão em frações contínuas da função hipergeométrica usando sua equação funcional.[11] Isto permitiu que Laczkovich encontrasse uma nova prova mais simples para o fato de que a função tangente tem a expansão em frações contínuas que Lambert havia descoberto.

O resultado de Laczkovich também pode ser expresso em funções de Bessel do primeiro tipo Jν(x). De fato, Γ(k)Jk − 1(2x) = xk − 1fk(x). Então o resultado de Laczkovich é equivalente a: Se x ≠ 0 e se x2 é racional, então

 

Ver também editar

Referências

  1. Lindemann, Ferdinand von (2004) [1882], «Ueber die Zahl π», in: Berggren, Lennart; Borwein, Jonathan M.; Borwein, Peter B., Pi, a source book, ISBN 0-387-20571-3 3rd ed. , New York: Springer-Verlag, pp. 194–225 
  2. Lambert, Johann Heinrich (2004) [1768], «Mémoire sur quelques propriétés remarquables des quantités transcendantes circulaires et logarithmiques», in: Berggren, Lennart; Borwein, Jonathan M.; Borwein, Peter B., Pi, a source book, ISBN 0-387-20571-3 3rd ed. , New York: Springer-Verlag, pp. 129–140 
  3. a b Hermite, Charles (1873), «Extrait d'une lettre de Monsieur Ch. Hermite à Monsieur Paul Gordan», Journal für die reine und angewandte Mathematik (em french), 76, pp. 303–311 
  4. Hermite, Charles (1873), «Extrait d'une lettre de Mr. Ch. Hermite à Mr. Carl Borchardt», Journal für die reine und angewandte Mathematik (em french), 76, pp. 342–344 
  5. Hermite, Charles (1912) [1873], «Sur la fonction exponentielle», in: Picard, Émile, Œuvres de Charles Hermite (em french), III, Gauthier-Villars, pp. 150–181 
  6. a b Zhou, Li (2011), «Irrationality proofs à la Hermite», Math. Gazette (November), arXiv:0911.1929  
  7. Jeffreys, Harold (1973), Scientific Inference, ISBN 0-521-08446-6 3rd ed. , Cambridge University Press, p. 268 
  8. Niven, Ivan (1947), «A simple proof that π is irrational» (PDF), Bulletin of the American Mathematical Society, 53 (6), p. 509 
  9. Bourbaki, Nicolas (1949), Fonctions d'une variable réelle, chap. I–II–III, Actualités Scientifiques et Industrielles (em french), 1074, Hermann, pp. 137–138 
  10. Laczkovich, Miklós (1997), «On Lambert's proof of the irrationality of π», American Mathematical Monthly, 104 (5), pp. 439–443, JSTOR 2974737 
  11. Gauss, Carl Friedrich (1811–1813), «Disquisitiones generales circa seriem infinitam», Commentationes Societatis Regiae Scientiarum Gottingensis recentiores (em latin), 2