A Redenção de Cam

Pintura racialista do XIX.
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A Redenção de Cam é uma pintura a óleo sobre tela realizada pelo artista espanhol Modesto Brocos (Santiago de Compostela, 9 de fevereiro de 1852Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1936), em 1895. A obra aborda as teorias raciais controversas do fim do século XIX e o fenômeno da busca pelo "embranquecimento" gradual das gerações de uma mesma família por meio da miscigenação.[1] A obra foi pintada enquanto Brocos lecionava na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.[2]

A Redenção de Cam
A Redenção de Cam
Autor Modesto Brocos
Data 1895
Técnica tinta a óleo, tela
Dimensões 199 centímetro x 166 centímetro
Localização Museu Nacional de Belas Artes

Atualmente, a pintura faz parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, presente na exposição “Das Galés as Galerias: representações e protagonismos do negro no acervo do MNBA”, que busca proporcionar um olhar sobre as representações e protagonismos da população negra em 80 obras presentes no acervo do museu.[3]

Descrição e análise da pintura editar

A pintura A Redenção de Cam é fruto de um momento de pós-emancipação,[4] marcado pela adesão do racialismo na esfera pública e da "necessidade" de ações em relação ao destino da população negra e miscigenada na ordem livre e republicana.[5] A obra faz alusão ao primeiro livro da Bíblia Cristã, Gênesis, capítulo 9. No episódio, Cam expõe a nudez e bebedeira de seu pai, Noé, aos irmãos Sem e Jafé e, por isso, é condenado pelo pai a ser escravo juntamente com seu filho Canaã,[4] que é amaldiçoado como "servo dos servos".[6] Noé profetizou que ele, Cam, seria "o último dos escravos de seus irmãos". Cam é apontado na Bíblia como suposto ascendente das raças africanas.[6] Diante disso, nos séculos XVI, XVII e XVIII, os cristãos usaram a passagem bíblica para justificar a escravidão nas economias coloniais.[7]

 
O mapa estilizado "T e O", considerado o mapa impresso mais antigo do ocidente, faz alusão à África sendo dos descendentes de Cam.

A tela mostra uma espécie de caminho para reverter a "maldição" (ser afro-descendente), branqueando os personagens.[1] É perceptível o naturalismo[1] presente na obra, que traz gradações de cores entre as três gerações dos personagens. O bebê é o mais branco, seguido pelo pai, sentado ao lado da mãe, que segura a criança no colo. No canto esquerdo da tela, quem tem a pele mais escura é a avó, com mãos erguidas ao céu em agradecimento.[8] Por nascer branco, seu neto foi livrado da "maldição" de ser negro, já que sua filha, mulata, casou-se com um homem branco.[8]

Sentados estão a mãe da criança, que a carrega em cima dos joelhos, e um homem com as pernas cruzadas, supostamente o marido branco e responsável pelo "branqueamento" do descendente. Podemos notar que essa gradação de cor segue da esquerda para a direita, mostrando a mestiçagem em seu processo completo. Aqui, não se trata apenas de uma eliminação cultural e racial, mas também da necessidade de um progresso que, aos olhos de Brocos, só viria por meio do branqueamento da população e da aproximação com a cultura europeia, eliminando e ignorando as demais etnias e costumes.[9]

Essa negação da cultura africana fica aparente quando reparamos nas vestes das personagens femininas; já que ambas usam roupas ocidentalizadas e não trajes que remetem à origem das mesmas.[1] O corpo da mulher sentada está coberto por roupas, fazendo com que pareça mais europeu do que africano.[1] Aqui, está presente uma ideia de ajustamento das mulheres negras à moral cristã e a um ideal de reprodução branqueador.[1] Além disso, é notório que as duas personagens que não possuem a pele branca, são mulheres: a mãe e a avó, estabelecendo uma oposição de cor em relação ao bebê e o pai.[9] Há um reforço da visão progressista da pele branca quando percebemos que o chão em que o homem pisa é de pedra, mostrando uma evolução em relação ao que as mulheres pisam, que é de terra.[9] Mais uma vez, o europeu de pele branca é representado como superior, e isso fica explícito até na pose em que o homem, de costas, olha o resto da cena.[9]

A posição das mãos e olhares entre os personagens trazem coerência à mensagem que Modesto Brocos quis passar. A obra lhe rendeu a medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes de 1895 e mostra os rumos da arte brasileira no final do século XIX.[6]

Existe a teoria de que a mãe (sentada, ao centro da tela) seria a representação da Virgem Maria e o bebê, o menino Jesus.[4] Isso se deve graças a cor azul do xale em que está envolta, pois faz alusão ao manto usado pela Virgem Maria.[4]

Branqueamento e eugenismo no Brasil editar

No século XIX, difundiu-se no Brasil a ideia de “branqueamento” da sociedade, que pretendia apagar os traços negros da população brasileira.[10] Durante as primeiras décadas do século XX, a industrialização, imigração e urbanização trouxe uma visão mais pessimista e de nacionalismo ao país. As duas guerras mundiais trouxeram a expansão do nacionalismo, aliando a ideia de raça à construção das nacionalidades.[11]

 
Francis Galton, responsável por disseminar o ideal eugenístico.

Na Europa, o ideal eugênico foi disseminado pelo inglês Francis Galton (Birmingham, 16 de fevereiro de 1822 — Haslemere, Surrey, 17 de janeiro de 1911) em 1883. Primo de Charles Darwin, afirmava que a seleção natural também era válida aos seres humanos. Sua crença era de que a capacidade intelectual não é individual, e sim hereditária.[12] Seu projeto analisou a árvore genealógica de aproximadamente 9 mil famílias e tentava justificar a exclusão de diversos grupos: deficientes, negros, asiáticos e todos que não se encaixavam no suposto "padrão europeu".[13] Esse padrão era baseado na tese de que o europeu era o detentor da maior beleza, competência civilizacional e saúde quando comparado às "demais raças", como a negra (africana), a "vermelha" (indígena) e “amarela” (asiática).[14]

Os primeiros traços do eugenismo no Brasil apareceram no final da primeira década do século XIX. Em 1917, o médico e farmacêutico Renato Kehl, foi o responsável por ampliar e disseminar o eugenismo no Brasil.[13] Kehl acreditava que a única forma do país prosperar era com um projeto que focasse no predomínio da raça branca, prezando pelo branqueamento da população negra.[12] Além da segregação pela cor da pele, seu discurso também apoiava a exclusão de deficientes (sejam eles físicos ou mentais) da sociedade.[13] Defendia a esterilização de criminosos, regulamentação de um exame pré-nupcial (para garantir que a noiva era virgem), exames que assegurassem o divórcio caso a mulher tivesse "filhos ilegítimos" ou fosse comprovado defeitos hereditários em sua família, educação eugênica obrigatória nas escolas e teste para medir a capacidade mental em crianças de 8 a 14 anos. Kehl apresentou seus pensamentos em diversos congressos, e teve impacto em grupos de professores, médicos e adeptos do higienismo social. Assim, foi fundada, em 1918, a primeira sociedade eugênica da América latina, a Sociedade Eugênica de São Paulo (SESP). Alguns nomes conhecidos faziam parte do grupo.[13]

Nos anos subsequentes, a eugenia despertou o interesse dessa elite brasileira, que criou o estigma do "homem brasileiro", excluindo todos os que não se encaixavam no que era idealizado por eles. Havia a crença de que o movimento promoveria uma reforma nos valores estéticos, higiênicos e morais da sociedade brasileira. Na época, o ideal trouxe à tona uma sociedade ainda mais patriarcal.[13] Aqui, cabia às mulheres o simples papel de "procriar" e realizar as tarefas domésticas atribuídas por seu marido.[12] A "identidade nacional" transpassava limites e trazia à tona o racismo presente nas camadas mais altas da sociedade brasileira.[16]

Brocos e o apoio ao eugenismo editar

 
Autorretrato de Modesto Brocos, pintor de A Redenção de Cam.

Modesto Brocos nunca negou seu apoio às teorias eugenistas. Em 1930, trinta e cinco anos depois de pintar A Redenção de Cam, o artista lançou o livro Viaje a Marte (em português, "Viagem à Marte"), uma ficção científica. Nela, o pintor aparece como um personagem que narra sua visita em um planeta em que há política de reprodução controlada por meio de agentes do estado - o Exército Agrícola e as Irmãs Humanitárias - todos voluntários e brancos. Mesmo sendo um livro de ficção, Brocos deixa explícito seus ideias eugenistas e racistas[17] quando, em um dos trechos da obra, diz que a humanidade não estava satisfeita, pois ainda deveria haver uma "unificação de raças".[18] Ele completa dizendo que em tempos anteriores, com a raça "amarela", a mestiçagem havia sido mais fácil, mas que com a raça negra, apesar de ter havido o mesmo processo, a cor "apresentou dificuldades de ser miscigenada".[18]

Símbolo eugenista editar

 
João Batista de Lacerda, médico, cientista brasileiro e um dos principais expoentes da "tese do embranquecimento".

A obra é considerada uma das pinturas mais racistas e reacionárias do século XIX, trazendo consigo o simbolismo do pensamento elitista. A pintura aparece num processo pós-abolicionista da nova república, que buscava pelo progresso usando a Europa como modelo. Aos olhos da elite, o branco, representava progresso, enquanto o negro, o atraso, passado. Nesse contexto surge o eugenismo e o branqueamento mencionado anteriormente, que propunha a miscigenação como solução, deixando a população com um perfil cada vez mais europeu. A pintura é simplesmente uma representação visual do assunto presente no discurso dos "intelectuais" da época.[13]

Em 1911, o então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro,[5] João Batista de Lacerda (Campos dos Goitacases, 12 de julho de 1846Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1915), usou A Redenção de Cam como ilustração de seu artigo intitulado Sur les métis au Brésil (em português, "Sobre os Mestiços no Brasil") no I Congresso Universal das Raças, em Paris.[19] O Congresso reuniu intelectuais de todas as partes do mundo para debater a relação das raças com o processo de civilização. A obra de Lacerda, considerado um dos principais expoentes da "tese do embranquecimento", saía em defesa da miscigenação, apresentando a positividade desse processo no Brasil e mostrando a suposta superioridade dos traços brancos em relação aos negros e indígenas.[20] Ao apresentar a pintura de Brocos, descreveu-a da seguinte maneira: “O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”.[13] Em seu discurso, afirmava que em cem anos a população brasileira seria majoritariamente branca; ou seja, em 2011/12 a população negra seria extinta e os mestiços representariam, no máximo, 3% da população.[1]

Entre as décadas de 1920 e 1930, já não era mais possível haver um distanciamento entre brasileiros que se identificavam como europeus exilados e a população local, já que a mistura entre povos indígenas, negros e brancos constituíram uma miscigenação que saía dos padrões impostos pela alta sociedade branca. Assim, a elite tinha quase uma necessidade de criar uma nova identidade brasileira, com o desejo de ser diferente de qualquer modelo. Assim, o ideal eugenista perdeu muito de sua força.[7]

Ver também editar

Referências editar

  1. a b c d e f g h SANTOS, Ana Paula Medeiros Teixeira. «Tranças, Turbantes e Empoderamento de Mulheres Negras: Artefatos de Moda como Tecnologias de Gênero e Raça no Evento Afrochic» (PDF). UFTPR. Consultado em 23 de outubro de 2018 
  2. VASCONCELOS, Flávia Maria. «Sobre pinoquismos como estética e política e a síndrome do vira-lata criativo desde a educação em artes visuais». UNIVASF. Consultado em 3 de novembro de 2018 
  3. MUSEU Nacional de Belas Artes. «Mostra das Galés às galerias, no MNBA, reflete o papel do negro na arte». Museu Nacional de Belas Artes. Consultado em 28 de outubro de 2018. Arquivado do original em 28 de agosto de 2018 
  4. a b c d LOTIERZO, Tatiana; SCHWARCZ, Lilia. «Raça, gênero e projeto branqueador : "a redenção de Cam", de modesto brocos» (PDF). Catálago USP. Consultado em 23 de outubro de 2018 
  5. a b MOREIRA, Carlos Alberto; MARTINS, Edina Maria; SOUZA, Luiz; ALVEZ, Marilene; SILVA, Sabrina (2008). «Os Diretores do Museu Nacional / UFRJ» (PDF). Museu Nacional | UFRJ. Consultado em 26 de novembro de 2018 
  6. a b c ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural. «A Redenção de Cam». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 23 de outubro de 2018 
  7. a b CAVALCANTI, Ana Maria Tavares (25 set. 2010). «Artistas brasileiros entre territórios: A relação com a Europa e o sentimento de exílio a própria pátria no século XIX» (PDF). Anais do 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios”. Consultado em 19 de novembro de 2018 
  8. a b SOUZA, Ellen Pereira. «Estudos sobre a formação de professores de ciências no contexto da lei 10.639/03» (PDF). Universidade Federal de Goiás. Consultado em 3 de novembro de 2018 
  9. a b c d MORAES, Renan Siqueira. «Quadro de Época. Uma Alegoria Sobre a Miscigenação no Conto "Uma Escrava", de Magalhães de Azeredo». Revista Dia-logos, v. 10, n. 02, p.62-69, jul.-dez. 2016. Consultado em 18 de novembro de 2018 
  10. CRUZ, Vera Lucia Dal Santos. «Refletindo sobre Gênero e Etnia no Ensino de História» (PDF). Dia a Dia Educação PR. Consultado em 29 de outubro de 2018 
  11. SOUZA, Vanderlei Sebastião. «As Idéias engênicas no Brail: ciência, raça e projeto nacional no entreguerras». História em Reflexão. Consultado em 29 de outubro de 2018 
  12. a b c d FERREIRA, Tiago. «O que foi o movimento de eugenia no Brasil: tão absurdo que é difícil acreditar». Geledes.org. Consultado em 29 de outubro de 2018 
  13. a b c d e f g h i RONCOLATO, Murilo. «A tela 'A Redenção de Cam'. E a tese do branqueamento no Brasil». Jornal Nexo. Consultado em 3 de novembro de 2018 
  14. FERNANDES, Cláudio. «Tese do branqueamento: A tese do branqueamento teve grande repercussão no Brasil, no início do século XX, entre intelectuais, como João Baptista de Lacerda». Mundo Educação. Consultado em 19 de novembro de 2018 
  15. STEPAN, Nancy Leys (2004). «Eugenia no Brasil, 1917-1940» (PDF). Editora FIOCRUZ. Consultado em 21 de novembro de 2018 
  16. CAPEL, Heloísa; Junior, Geraldo. «Performances híbridas no pensamento utópico de Modesto Brocos y Gomez (1852-1936)». Consultado em 19 de novembro de 2018 
  17. LOTIERZO, Tatiana. «Racismo e pintura no Brasil: notas para uma discussão sobre cor, a partir da tela A redenção de Cam». Consultado em 19 de novembro de 2018 
  18. a b BROCOS, Modesto (1930). Viaje a Marte. Valência: Editorial Letras y Artes. pp. (p. 182 – 183) 
  19. LOTIERZO, Tatiana H.P. (2013). «Contornos do (in)visível: A Redenção de Cam, racismo e estética na pintura brasileira do último Oitocentos». FFLCH - USP. Consultado em 26 de novembro de 2018 
  20. CARVALHO, André; ALMADA, Abdias Nascimento; FISCHER, Machado de Assis; SANTOS, Theodoro Sampaio; TENÓRIO, Carolina Maria; SCHWARCZ, Lima Barreto; MUNANGA, Kabengele (18 dez. 2017). «O Brasil na potência criadora dos negros: O necessário reconhecimento da memória afrodescendente» (PDF). Revista do Instituto Humanitas Unisinos, nº 517. Consultado em 19 de novembro de 2018 

Bibliografia editar

  • BROCOS, Modesto. Viaje a Marte. Valencia: Ed. Arte y Letras, 1930.
  • LACERDA, João Baptista. Sur les métis au Brésil. Londres: Premier Congrès Universel des Races, 1911.
  • STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.