Síndrome de abstinência
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Síndrome de abstinência é um conjunto característico de sinais e sintomas que ocorrem após a interrupção (ou, em alguns casos, diminuição) do consumo de uma droga, seja ela um medicamento ou uma droga de abuso.
O quadro clínico de uma dada síndrome de abstinência varia de acordo com a droga consumida. A identificação do tipo da droga usada é importante para o tratamento correto, mas o abuso de mais de um tipo de droga é comum.
Algumas drogas atuam como neurotransmissores externos, substituindo os neurotransmissores orgânicos, que "desligam". Se a droga é cortada abruptamente, os processos químicos que permitem a comunicação entre os neurônios são interrompidos, cortando a comunicação do sistema nervoso com o resto do corpo, o que pode, no limite, levar o indivíduo em abstinência à morte. A heroína, principalmente, tem esse efeito. O álcool, a maconha e a cocaína também atuam como neurotransmissores externos, mas em menor intensidade, de modo que as crises de abstinência costumam ser menos graves.[1]
A instalação de uma síndrome de abstinência tende a ser ser mais rápida no caso de drogas de meia-vida mais curta. Seu curso tipicamente varia de alguns dias a duas semanas, mas descrevem-se sintomas que podem persistir por meses, no caso do álcool, do tabaco ou da cocaína (síndrome de abstinência prolongada).
Os sintomas, que estão ligados aos danos causados ao cérebro, apresentam-se durante o estado de sobriedade e podem ser descritos como dificuldade de concentração, problemas de memória, reação emocional exagerada ou apatia, distúrbios ou alterações do sono, problemas de coordenação motora e sensibilidade ao stress. A síndrome de abstinência prolongada pode desencadear recaídas com frequência, mas seus sintomas, geralmente, podem ser revertidos.
Álcool
editarA síndrome de abstinência do álcool começa poucas horas depois da interrupção do consumo e pode cursar com insônia, tremores, ansiedade, disforia, náusea ou vômitos, inquietação, agitação, aumento da sudorese, aumento da frequência cardíaca e outros sinais de hiperatividade do sistema nervoso autônomo. Quando mais grave, pode evoluir para convulsões e delirium tremens. Sua gravidade costuma ser proporcional à quantidade de álcool ingerido em 24 horas e ao número de episódios prévios.
Opioides
editarA síndrome de abstinência de opioides cursa com dilatação pupilar, lacrimejamento, rinorreia, bocejos, espirros, anorexia, dores abdominais, náusea, vômitos, diarreia e piloereção. Não causa convulsões nem delirium. Mas, no caso da heroína, por exemplo, a interrupção abrupta da droga pode levar o dependente químico à morte por parada cardíaca, insuficiência respiratória ou desidratação. Isso porque a droga funciona como um neurotransmissor externo, substituindo os neurotransmissores orgânicos na comunicação entre o sistema nervoso e o resto do organismo. Os neurotransmissores orgânicos "percebem" que há um neurotransmissor externo atuando, e "desligam". Quando a heroína é cortada abruptamente, os processos químicos que permitem a comunicação entre os neurônios são interrompidos; a comunicação do sistema nervoso com o resto do organismo é cortada. Isso afeta diretamente os músculos, o sistema cardiorrespiratório e o sistema digestivo. No Brasil, a pessoa dependente de heroína que apresente um quadro de abstinência, deve ser encaminhada a um serviço de emergência médica para ser tratada com doses regulares de metadona, único medicamento que pode ser usado no país para o tratamento do dependente químico dessa droga.[1]
Crack
editarO dependente de crack quase não come, nem dorme, o que ocasiona um rápido processo de desnutrição e emagrecimento que é mais intenso que o produzido pela cocaína. Um adulto dependente de crack pode perder até dez quilos em apenas um mês. Além disso, a pessoa se torna negligente nos cuidados do próprio corpo. Neurologicamente, o uso do crack pode levar a dores de cabeça, tonteiras, inflamações dos vasos cerebrais, etc. A alta temperatura da fumaça do crack pode causar lesões na laringe, traqueia e brônquios, o que propicia o aparecimento da pneumonia e da tuberculose. Normalmente há tosse, dor no peito, falta de ar e escarro sanguinolento. Além disso, o crack provoca a liberação de adrenalina, aumento da frequência cardíaca, elevação da pressão arterial, arritmias e, eventualmente, isquemias e infarto agudo do miocárdio. O crack também provoca náuseas, perda do apetite, flatulência, dor abdominal e diarreia. Podem, ainda, ocorrer quadros psiquiátricos graves, como delírios, alucinações, paranoias, etc.[2]
A chamada "fissura" (craving) e sintomas paranoides transitórios são os principais componentes do quadro de abstinência do crack. A "fissura" é frequentemente referida como uma necessidade imprescindível para o corpo, indispensável à vida, e descrita como uma vontade "pior que a fome". A abstinência causa grande sofrimento físico e psíquico; o indivíduo é tomado por grande ansiedade e pensamentos obsessivos sobre as maneiras de obter a droga. O indivíduo não consegue ficar parado: "o corpo dói, a mente dói, o coração gela, a boca do estômago trava". O objetivo da procura obcecada por crack não é somente obter prazer, mas também aliviar seu mal-estar. Os contornos obsessivos da "fissura" pelo crack tiram do indivíduo a sua capacidade de escolha e o seu discernimento, embora ele seja consciente da sua degradação física e moral. Devido às semelhanças sintomáticas entre a dependência e o transtorno obsessivo-compulsivo, ambos dividem etiologia similar.[3]
Embora as mortes durante o processo de desintoxicação sejam frequentes, não há relação comprovada entre a morte de usuários de crack (mistura da pasta-base de cocaína refinada com bicarbonato de sódio e água) e a abstinência da droga, diferentemente do que ocorre no caso de dependentes de álcool e de heroína. Segundo os especialistas, essas mortes seriam causadas pela associação da dependência química com inanição ou outras doenças.[1]
Em 1999, pesquisadores da Unifesp publicaram o resultado de um estudo clínico[4] baseado em relatos espontâneos de usuários de crack submetidos à sua primeira avaliação psiquiátrica, na qual reportaram o uso de maconha para aliviar os sintomas da abstinência. Durante nove meses, os pesquisadores monitoraram 25 pacientes, com idades entre 16 e 28 anos, fortemente dependentes do crack, conforme diagnosticado mediante aplicação da Composite International Diagnostic Interview (CIDI)[5] e conforme os critérios da CID-10 e do DSM-IV. Segundo os pesquisadores, 17 (68%) desses indivíduos pararam de usar o crack e relataram que o uso da cannabis havia aliviado os sintomas da "fissura" (craving) e produzido mudanças subjetivas e comportamentais, ajudando-os a superar a dependência do crack.
A ibogaína também é uma droga promissora no tratamento da dependência do crack, em alguns casos. Mas "tratar dependência é algo complexo, é algo que não se resolve num estalar de dedos", diz o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, líder de uma equipe da Universidade Federal de São Paulo que está pesquisando o uso da substância no tratamento de dependentes químicos. A ibogaína é produzida a partir da raiz da iboga, uma planta arbustiva da família das Apocináceas nativa da África Central e tradicionalmente usada em rituais religiosos. [6]
Cocaína
editarA síndrome de abstinência de estimulantes como a cocaína e as anfetaminas assemelha-se a um episódio depressivo, cursando com cansaço, hipersonia, humor depressivo ou irritável e variação do apetite.
Não há necessariamente um padrão de consumo diário de cocaína. É característico o binge (isto é, o uso intenso, repetido em intervalos muito curtos), alternado com pequenos períodos de redução do consumo ou de abstinência, sem a intenção de abandonar definitivamente o uso da droga. Uma vez cessada a euforia proporcionada pela substância, sobrevém a depressão. Assim, durante a abstinência, períodos de desejo intenso pelo consumo da cocaína (craving ou "fissura"[7]) e outros sintomas de abstinência, tais como fadiga, anedonia e depressão, acabam por levar o indivíduo a voltar ao uso da droga, estabelecendo o círculo vicioso da dependência química. Estudos com pacientes mostram que os níveis dopaminérgicos extracelulares caem e não são normalizados antes de um período de 12 horas, sendo que o grau de supressão da liberação de dopamina é proporcional ao número de horas de uso prévio contínuo da cocaína. Estudos com animais demonstram o envolvimento de outros mecanismos nesse processo, tais como a deficiência na neurotransmissão serotoninérgica. Uma síndrome de abstinência bem definida é observada em muitos usuários crônicos ou mesmo naqueles que utilizam a droga durante poucos dias, em binge.[8]
A abstinência de cocaína ocorre tipicamente em três fases, em que se observa a progressão dos sinais e sintomas que seguem à cessação do uso da droga:[8]
- Crash, isto é, uma drástica depressão de humor e redução de energia que ocorre entre 15 e 30 minutos após cessado o uso da droga e pode durar de oito horas a até quatro dias. O crash está associada à depleção de neurotransmissores na fenda sináptica em decorrência do uso da cocaína. O usuário pode sentir depressão, ansiedade, paranóia e um intenso desejo de consumo da droga, que diminui depois de uma a quatro horas, quando a "fissura" pelo uso da droga é substituído pela "fissura" pelo sono: instala-se então uma hipersonia, com aversão ao uso de mais cocaína. O indivíduo desperta algumas vezes para comer, ingerindo grande quantidade de alimento, e volta a dormir.
- Síndrome disfórica tardia: inicia-se após o crash, isto é, entre 12 e 96 horas após cessado o uso, podendo durar de duas a 12 semanas. Nos primeiros quatro dias, o indivíduo apresenta forte sonolência e intenso desejo pelo consumo da droga. Após esse período inicia-se uma síndrome de abstinência prolongada, disfórica, marcada por anedonia, irritabilidade e apatia, além da "fissura" (craving), de intensidade variável conforme o indivíduo. O usuário pode ficar deprimido, apresentar problemas de memória e manifestar ideação suicida. Nessa fase os riscos de recaída são maiores, dada a dificuldade do indivíduo em suportar os sintomas disfóricos da fissura (ansiedade, depressão, inquietude).
- Fase de extinção: fase em que os sintomas disfóricos diminuem ou cessam por completo. A "fissura" passa a ocorrer de forma intermitente, tendendo a diminuir de intensidade, ao longo de meses ou, até mesmo, anos.
A severidade da síndrome de dependência e de abstinência de cocaína depende da intensidade do consumo anterior e da presença de transtornos psiquiátricos comórbidos. A maior dificuldade é superar a fissura, que pode ser de dois tipos: anedônico e condicionado. O anêdonico tem como fonte a incapacidade de ter prazer e gera o desejo pelo efeito estimulante da droga. O condicionado é desencadeado por estímulos ambientais que fazem o indivíduo recordar-se de momentos em que vivenciou sensações euforizantes. Apesar de todas as dificuldades, a síndrome de abstinência de cocaína não chega a colocar em risco a vida usuário, sendo considerada segura quando conduzida com conhecimento técnico e em ambiente adequado.[8]
Referências
- ↑ a b c Crise de abstinência de heroína pode levar a morte por parada cardíaca, diz psiquiatra. Por Daniela de Paula e Gabriel Oliveira. O Globo, 8 de junho de 2017.
- ↑ Dependência do crack: o que é, causas, sintomas, diagnóstico, tratamento, prevenção, complicações. AbcMed, 22 de abril de 2014.
- ↑ CHAVES, Tharcila V et al. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 45, nº 6, p. 1168-1175, dezembro de 2011.
- ↑ Therapeutic Use of Cannabis by Crack Addicts in Brazil por Eliseu Labigalini, Lucio Ribeiro Rodrigues e Dartiu Xavier da Silveira. Journal of Psychoactive Drugs v. 31, 1999 nº 4 pp 451-455.
- ↑ Composite International Diagnostic Interview (CIDI)
- ↑ Remédio ajuda usuários de crack a se livrarem da dependência química: ibogaína é extraída de uma planta encontrada na África Central. G1, 30 de outubro de 2014.
- ↑ Craving e dependência química: conceito, avaliação e tratamento.Por Renata Brasil Araújo, Margareth da Silva Oliveira, Rosemeri Siqueira Pedroso,, Alessandra Cecília Miguel e Maria da Graça Tanori de Castro. J Bras Psiquiatr. 2008;57(1):57-63.
- ↑ a b c "Síndrome de Dependência e de Abstinência de Cocaína", por Marcos Zaleski. Site da Associação Brasileira de Psiquiatria. ABPBrasil, 2006.