Nota: Para outros significados, veja Terra Preta (desambiguação).

Terra preta, também conhecida como terra preta de índio[1] (TPI) é um tipo de solo escuro, fértil e antropogênico de origem pré-colombiana encontrado na região Amazônica.[2]

Terra preta artificial, com pedaços de carvão indicados pela setas brancas.

Várias teorias explicam a origem das terras pretas na Amazônia: que seria o resultado de cinzas vulcânicas dos Andes ou que seria o resultado da sedimentação em lagos durante os períodos geológicos terciários. Pesquisas mais recentes apontam para uma origem antrópica, ou seja, resultante da ação humana. Elas teriam sido produzidas com a combinação de carvão vegetal, cerâmica e matéria orgânica de origem vegetal e animal.[3][4]

Origem editar

As semelhanças entre a textura e a mineralogia da terra preta com os solos circundantes e a presença de cerâmicas datadas do período pré-colombiano nos horizontes superiores sugerem que esses solos têm origem humana derivada dos solos pobres[5] em nutrientes que cobrem a maior parte da bacia amazônica. Guiado por sua aparente fertilidade, credita-se ao explorador e naturalista Henry Walter Bates a fabricação do mito de que os solos da Amazônia possuem grande potencial para a exploração agrícola e a visão de que o considerado desuso da terra na região se deve aos hábitos "não civilizados" da população nativa. Posteriormente, essa ideia foi derrubada pelo próprio fracasso da expansão agrícola na região, mas os estudos seguintes e mais detalhados mostram a diversidade de solos da amazônia e sua intrínseca relação com os locais, dentre os quais está a terra preta.[6]

Inicialmente, propunha-se que a terra preta se desenvolveu a partir de depósitos antigos de cinzas vulcânicas ou de material orgânico acumulado em antigos lagos ou lagoas, e teria sido sua alta fertilidade natural que primeiro atraiu e fixou os grupos humanos.[7] Atualmente, a maioria dos pesquisadores acredita que as terras pretas são, de fato, depósitos criados a partir da deposição de dejetos e a fabricação de cerâmicas[8] no decorrer das áreas de habitação, em função da alta concentração de carvão pirogênico (biochar) e observações frequentes de depósitos pré-colombianos.[9]

Acredita-se que a principal contribuição humana para a formação da terra preta tenha sido a incorporação de subprodutos orgânicos, o que indiretamente causou alterações na composição química e estimulou a atividade da biota e o aprofundamento do solo.[7] Sob experimentação, no entanto, o biochar sozinho (ou combinado a fertilizantes) se provou inadequado para replicar as características básicas da terra preta, tal como sua fertilidade mineral prolongada.[9]

Ainda assim, a hipótese da deposição humana como principal contribuinte à constituição química da terra preta é debatida: estudos recentes[9] mostram que densas populações sedentárias teriam de ter manipulado o solo, ou identificado e ocupado preferencialmente áreas mais férteis, antes do período datado como do surgimento da agricultura e do uso intensivo de terras na Amazônia central. Nessa hipótese, os nutrientes de origem humana seriam provenientes de sobras de comida, fezes e restos de peixe que, de maneira não intencional, foram depositados e formaram esses solos antropogênicos. Porém, é mais plausível que inserções humanas representam uma fração menor da constituição química das terras pretas do que se estipulava, e que teriam sido introduzidas apenas mais recentemente.

Uma hipótese mais recente[9] para a formação de terra preta indica que alterações na dinâmica de rios, influenciadas por alagamentos e chuvas intensas e seguidas por um longo período de seca, podem ter modificado a cobertura vegetal da região e causado divergências nos padrões de acúmulo de carbono e nutrientes entre áreas alagadas e não alagadas. Essas divergências seriam responsáveis, pelo menos em parte, pela presença de terra preta próximo a solos menos férteis e explicam como os principais ingredientes à formação da terra preta (partículas de biochar e elementos minerais, ausentes nos solos circundantes) se depositaram antes da ação humana. Sob essa ótica, as sociedades pré-colombianas não foram responsáveis pela gênese da terra preta, mas identificaram e ocuparam essas áreas de alta fertilidade e posteriormente contribuíram para sua constituição.

Localização editar

Em toda a bacia amazônica, foram encontradas manchas de Terra Preta, principalmente em torno da região da Ilha de Marajós.[10] Mais recentemente, o mesmo tipo de solo também foi identificado em áreas do Equador, Peru e Guiana Francesa. Essas manchas têm em média 20 hectares (ha), mas algumas foram encontradas com até 350 ha de extensão,[11] sendo possível estimar que a sua área total de cobertura represente entre 6.000 e 60.000 km².[12]

Assim, pelo que se sabe, manchas de terra preta são mais frequentes e de maior extensão ao longo dos cursos médio e inferior dos principais rios,[13] sendo em geral distribuídas geograficamente sem correspondência particular com qualquer solo "natural" ou condição ambiental específica.[14]

Características editar

Embora seu horizonte subterrâneo seja profundo como os demais solos naturais de Amazônia, o horizonte superior da Terra Preta possui traços de carvão e forma estratos com até 2 metros de profundidade, contrastando, dessa forma, com os outros horizontes encontrados na região, cuja profundidade geralmente não ultrapassa de 20 centímetros de espessura.[15]

A Terra Preta de Índio se difere de outros solos amazônicos quanto à quantidade de matéria orgânica, acidez,[16] cor das superfície,[17] fertilidade, elementos presentes[18] e a capacidade de troca de cátions (CTC),[2] esta última sendo uma medida de quantos cátions estão retidos e ligados de forma reversível a substâncias no solo.[19] A TPI apresenta camadas ricas em carbono pirogênico (biochar), artefatos cerâmicos e ossos.[18]

Devido ao clima tropical úmido da região, há intemperismo intenso e lixiviação, o que leva outros solos amazônicos a serem usualmente pobres em nutrientes. Contudo, a Terra Preta de Índio apresenta não só maior fertilidade, como também maior resiliência ao uso intensivo na agricultura.[20]

A alta CTC se deve em parte à natureza da matéria orgânica presente na TPI. Grande parte desta (5-32%) é composta de carbono pirogênico, isto é, uma forma de carvão composta principalmente de aneis aromáticos e grupos carboxila (-COOH).[2] No pH da TPI (4–6),[20] parte desses grupos carboxila estão desprotonados (na forma -COO-, apresentando carga negativa, tendo liberado um H+), e formam interações com os íons metálicos, retendo esses.[19] Esta forma de carbono é altamente recalcitrante (resistente ao ataque microbiológico), o que é importante para o sequestro de carbono.[20] O carbono pirogênico não é a única forma de matéria orgânica, havendo a distinção entre matéria orgânica particulada, e formas mais degradadas, chamadas de matéria húmica.[2] Tal material orgânico é dificilmente caracterizado, sendo composto de moléculas orgânicas diversas ligadas umas às outras por interações hidrofóbicas e ligações de hidrogênio.[16] A matéria orgânica presente também tem efeito tamponante, isto é, oferece resistência a mudanças bruscas de pH.[19]

O material ósseo presente nesses solos é uma possível fonte de ambos Ca2+ e P, nutrientes necessários em grandes quantidades pelas plantas. Estes se apresentam na forma de fosfatos de cálcio, contudo o Ca2+ também se encontra associado a partículas de carvão, e o P a óxidos de Al e Fe.[18]

A presença de argilas está possivelmente relacionada com a alta concentração de íons de K+ nesses solos. Queimadas constantes de resíduos superficiais do solo podem causar derretimento de material orgânico e partículas minerais, o que pode ter colaborado para a retenção de metais alcalinos como Li, K, Rb e Cs nesses solos.[18]

Aplicações editar

Em comparação com os outros tipos de solos amazônicos, a TPI se distingue da maioria por possuir uma maior concentração de nutrientes como cálcio, potássio, fósforo, nitrogênio e também de matéria orgânica no solo. Além disso, o fato de esse tipo de solo conter altas quantidades de carbono negro confere uma alta estabilidade que lhe permite permanecer no ambiente por séculos.[5]

Vista a manutenção da fertilidade por um espaço grande de tempo, desde o início da formação das terras que datam do período pré-colombiano, a TPI pode ser uma peça chave para o entendimento e expansão de técnicas de agricultura sustentáveis no território amazônico. A estabilidade da terra preta se diferencia porque nesse tipo de solo não é necessário utilizar-se da queimada ou de fertilizantes, estes últimos em geral caros para pequenos produtores e comunidades de subsistência. Em contraposição, os solos adjacentes à TPI sofrem com lixiviação e pouca capacidade de retenção de nutrientes.[21]

Agricultura sustentável editar

Na prática, além da capacidade de um manejo agrícola sustentável, a terra preta e sua alta fertilidade podem proporcionar um maior crescimento e potencial de produção de plantações, que em comparação com os outros solos não férteis da região fica em torno do dobro.[22] É um acréscimo interessante que, na região amazônica, ocorrem períodos de cheia dos rios que resultam na perda de área útil para plantação agrícola. Nesse sentido, para algumas comunidades locais, a TPI é uma solução para o problema, visto que pode ser encontrada em uma área mais elevada.[23]

Sequestro de carbono editar

A terra preta de índio, pela alta estabilidade de sua matéria orgânica no solo, apresenta a possibilidade de sequestro de carbono, além de uma produção de CO2 menor em comparação com os solos adjacentes.[24] Isso faz da TPI um excelente modelo de sequestro de carbono a longo prazo.

Ver também editar

Referências

  1. «Terra Preta, o legado indígena que poderia transformar a Amazônia». Fundação Rosa Luxemburgo. 9 de outubro de 2015. Consultado em 30 de outubro de 2016 
  2. a b c d Lehmann, J.; Kaempf, N.; Woods, W.I.; Sombroek, W.; Kern, D.C.; Cunha (2003). «5». Classification of Amazonian Dark Earths and other Ancient Anthropic Soils. Amazonian Dark Earths: origin, properties, and management (em inglês). Dordrecht [u.a]: Kluwer Acadamic. pp. 77–102; 227–241; 271–286. ISBN 978-1-4020-1839-8 
  3. Mckey, Doyle; Mckey, Doyle (2019). «Pre-Columbian human occupation of Amazonia and its influence on current landscapes and biodiversity». Anais da Academia Brasileira de Ciências (em inglês). 91. ISSN 0001-3765. doi:10.1590/0001-3765201920190087 
  4. Macedo, Rodrigo Santana; Teixeira, Wenceslau Geraldes; Lima, Hedinaldo Narciso; Souza, Adriana Costa Gil de; Silva, Francisco Weliton Rocha; Encinas, Omar Cubas; Neves, Eduardo Góes (2019). «Terra Preta de Índio em várzeas eutróficas do rio Solimões, Brasil: um exemplo da não intencionalidade na formação de solos antrópicos na Amazônia Central». Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas (em inglês). 14 (1): 207–227. ISSN 1981-8122. doi:10.1590/1981-81222019000100013 
  5. a b Glaser, Bruno. «The 'Terra Preta' phenomenon: A model for sustainable agriculture in the humid tropics». Die Naturwissenschaften: 37-41 
  6. WINKLERPRINS, Antoinette M.G.A. «A history of perceiving the soil in the Amazon Basin.». Symposium no. 31, Paper no. 322, Presentation: oral 322-1. 
  7. a b Woods, William. «The Anthropogenic Origin and Persistence of Amazonian Dark Earths». Conference of Latin Americanist Geographers. Yearbook: 7-14 
  8. Costa, Marcondes. «The ceramic artifacts in archaeological black earth (terra preta) from lower Amazon region». ACTA Amazonic 
  9. a b c d Silva, Lucas. «A new hypothesis for the origin of Amazonian Dark Earths». Nature Communications: 127 
  10. Bechtold, Gerhard. «Mapa de sitios de terra preta». Gerhard Bechtold. Consultado em 1 de novembro de 2021 
  11. «Agricultura orgánica y recursosabióticos». Food and Agriculture Organization of the United Nations. FAO. Consultado em 1 de novembro de 2021 
  12. WOODS & DENEVAN. «Discovery and Awareness of Anthropogenic Amazonian Dark Earths (Terra Preta)» (PDF). Consultado em 20 de agosto de 2008 
  13. DALLA CORTE, Gabriela (2004). «Relaciones sociales e identidades en América. Edicions Universitat Barcelona». Consultado em 1 de novembro de 2021 
  14. ERICKSON, Clark (2003). Historical Ecology and Future Explorations. [S.l.]: Springer 
  15. LEHAMNN, Johannes. «Terra Preta de Indio». Cornell University. Consultado em 1 de novembro de 2021 
  16. a b Bento, Lucas. «Humic extracts of hydrochar and Amazonian Dark Earth: Molecular characteristics and effects on maize seed germination». Science of The Total Environment 
  17. Macedo, Rodrigo. «Pedogenetic processes in anthrosols with pretic horizon (Amazonian Dark Earth) in Central Amazon, Brazil». PLOS ONE 
  18. a b c d Barbosa, Julierme Zimmer; Motta, Antônio Carlos Vargas; Corrêa, Rodrigo Studart; Melo, Vander de Freitas; Muniz, Aleksander Westphal; Martins, Gilvan Coimbra; Silva, Lucas de Carvalho Ramos; Teixeira, Wenceslau Geraldes; Young, Scott D. (1 de março de 2020). «Elemental signatures of an Amazonian Dark Earth as result of its formation process». Geoderma (em inglês). 114085 páginas. ISSN 0016-7061. doi:10.1016/j.geoderma.2019.114085. Consultado em 14 de dezembro de 2021 
  19. a b c Ronquim, Carlos. «Conceitos de fertilidade do solo e manejo adequado para as regiões tropicais». Embrapa 
  20. a b c Araujo, Joyce. «Selective extraction of humic acids from an anthropogenic Amazonian dark earth and from a chemically oxidized charcoal». Biology and Fertility of Soils 
  21. Glaser, Bruno. «State of the scientific knowledge on properties and genesis of Anthropogenic Dark Earths in Central Amazonia (terra preta de Indio». Geochimica et Cosmochimica Acta: 39-51 
  22. Glaser, Bruno. «Prehistorically modified soils of central Amazonia: A model for sustainable agriculture in the twenty-first century». Philosophical transactions of the Royal Society of London. Series B, Biological sciences: 187-96 
  23. Prestes, Monica (maio de 2019). «Terra Preta de Índio: o legado de agricultura sustentável da Amazônia». Diálogo Chino. Consultado em 1 de novembro de 2021 
  24. Sombroek, W. «Amounts, dynamics and sequestering of carbon in tropical and subtropical soils». Ambio