Wal Torres (São Paulo, 30 de março de 1950 — São Paulo, 5 de maio de 2019) foi uma terapeuta de gênero, sexóloga, escritora e ativista transgénero brasileira.[5] Mestre em sexologia pela Universidade Gama Filho, foi autora de dois livros sobre disforia de género e desde 2001 atendia pessoas de todo o mundo com essa condição através de sua clínica virtual, a Gendercare.[6] Em 2002 tornou-se membro titular da World Professional Association for Transgender Health, Inc. (WPATH), a mais respeitada entidade mundial no estudo e no tratamento de questões de identidade de gênero.[3][6][7][8]

Wal Torres, MS
(Martha Freitas)
[1]
Conhecido(a) por
  • Ser pesquisadora da transgeneridade de prestígio internacional[2]
  • Fundar a primeira clínica de gênero virtual do Brasil[nota 1]
  • Ser um dos porta-vozes da medicina trans no Brasil
  • Militar em favor da causa transgênero
  • Escrever livros sobre disforia de gênero
Nascimento 30 de março de 1950
São Paulo, SP
Morte 5 de maio de 2019 (69 anos)
São Paulo, SP
Residência Brasil
Nacionalidade brasileira
Cônjuge Divorciada
Alma mater Universidade de São Paulo (USP)
Universidade Gama Filho (UGV)
Orientador(es)(as) Prof. Dr. Pedro Jurberg
Campo(s) Sexualidade humana[2]
Tese «O Gênero e seus Problemas»
Notas Na atualidade usa profissionalmente Wal Torres, MS.[3] No passado, foi amplamente conhecida e citada bibliograficamente como Martha Freitas ou Waléria C. Torres.[4]

Torres já foi também porta-voz da Organização Internacional Intersexo (OII) para os países de língua portuguesa, a qual aderiu em 2006, desligando-se em 2012.[9]

Carreira editar

Antecedentes editar

Com mais de 40 anos e após duas décadas de uma vida próspera como engenheiro químico no Brasil e no exterior, quando deu aulas em universidades e foi consultor de indústrias petroquímicas e de fertilizantes,[1][2] Wal Torres decidiu fazer sua transição de gênero, época em que já estava divorciada e distante da família.

Clínica virtual pioneira editar

A mudança radical de vida trouxe junto a necessidade de mudança profissional.[2] Foi então que em agosto de 2001 fundou e começou a atender pessoas com disforia de género de todo o mundo através de sua clínica virtual, a Gendercare, na qual desenvolve testes e métodos de avaliação pela Web.[3][5][nota 2] Há anos advogava contra intervenções médicas desnecessárias em bebês intersexuais, preconizando aguardar a livre manifestação do paciente antes de qualquer intervenção, para que assim se evitem futuros casos de disforia de género.[nota 3]

Em entrevista ao jornal A Notícia, de Santa Catarina, sobre se a transgeneridade tem origem física ou psicológica, a terapeuta afirmou:

Física, não resta dúvida. O que define o sexo da pessoa é o lado neuropsíquico, algo que se cristaliza entre o quarto e o sétimo mês de gestação. Não é simplesmente aquilo que a criança tem entre as pernas. Se o cérebro for feminino, não há o que o masculinize. O processo de conformação dos genitais, que acontece no quarto mês de gestação, é completamente independente do processo de formação do cérebro. Graças a Deus, o resultado dos dois coincide em 99,99% da população. Mas naquele zero vírgula qualquer coisa é que acontece a discordância de gênero. E nós sofremos com a ignorância e o preconceito, porque tudo relacionado a sexo vira tabu. Se você tiver um problema na medula, no coração ou no fígado, os médicos fazem tudo para corrigir. Mas se você tiver qualquer coisa ligada a sexo, aí é a desgraça absoluta, porque você já vira criminosa, miserável, bandida. Inclusive o termo transexualismo é muito pejorativo, não quer dizer nada, nem científica nem psicologicamente.[1]

Foi assim que, contrariando os preconceitos enraizados, diagnosticava jovens e avaliava crianças, tendo criado game tests especiais para essas avaliações.[12] A sexóloga acreditava que avaliar e estudar é uma coisa, já interferir com terapias e cirurgias outra. As primeiras (retardamento da puberdade e hormonoterapia cruzada) podem ser desenvolvidas precocemente (começando o retardamento aos dez anos, e, ao fim do diagnóstico, iniciando-se, quando for o caso, a terapia hormonal aos doze ou treze anos de idade). Cirurgias reparadoras definitivas, como a cirurgia de redesignação sexual, só aos dezesseis anos, idade que ela considerava a mais conveniente.

Em 2000, na revista Scientia Sexualis, publicada pela Universidade Gama Filho, a terapeuta afirmou:

A pessoa disfórica, por motivos neuro-organizacionais durante sua gestação, termina por sofrer uma discordância de gênero, ou seja, seus tecidos genitais e sua organização neural basal não têm o mesmo gênero. Resultados neurobiológicos modernos mostram isso de forma contundente (...). Sendo assim, cientificamente não mais se considera a disforia de gênero como tendo sua origem apenas em processos 'psicológicos', e muito menos morais e sociais.[5]

Wal Torres também preconizava a necessidade de treinamento especializado, intensivo e abrangente para qualquer cirurgião estar capacitado a realizar cirurgias de redesignação sexual, tanto em mulheres trans quanto homens trans.[8] Sobre esse aperfeiçoamento ela declarou ao portal Fervo:

Esperamos que o Conselho Federal de Medicina venha a se manifestar a respeito, empenhando-se em proporcionar à população brasileira as condições adequadas para aprendizado e treinamento de cirurgiões de [cirurgias de] redesignação sexual, para que se atualizem no 'estado da arte', e a partir daí venham a aprimorar técnicas, de forma experimental no Brasil, nos hospitais universitários, além de aplicar as técnicas já desenvolvidas no país, tal qual a técnica Jurado de redesignação para MTFs, após um período prolongado de residência na clínica Jalma Jurado em Jundiaí.[8]

A falta de treinamento específico causou no passado vários insucessos e mutilações nesse tipo de cirurgia no Brasil.[13]

Publicações e mídia editar

Em 1998, publicou pela Editora Vozes o livro Meu Sexo Real,[1][14][15] usando o pseudônimo Martha Freitas, como ficou mais conhecida no Brasil, sobretudo na mídia. Com o mesmo cognome, escreveu O Mito Genital, pela Belaspalavras, sua editora virtual. O livro foi posteriormente enviado pelo editor à Feira do Livro de Frankfurt, de 1998, e imediatamente reconhecido como uma publicação de relevância sobre a questão da identidade de gênero pelo Dr. Günter Dörner, do departamento de endocrinologia da Universidade Humboldt, em Berlim.[16]

Em Meu Sexo Real a terapeuta afirma:

A pessoa é autônoma na definição de sua identidade (...). O transexualismo é uma disforia de gênero,[5] um problema biológico e congênito, uma discordância entre dois sistemas: o neural e o genital. Mas o neural prevalece, porque determina o si-mesmo neuro-psíquico da pessoa. Então, se existe uma desordem ela é genital, e precisa ser corrigida, porque a pessoa como si-mesma, acima de tudo, precisa ser respeitada.[15]

Objetivando tornar mais conhecido o drama que sofrem transexuais e transgêneros, participou de várias entrevistas e debates em programas de televisão na TV Globo, na Band e no SBT, assim como em rádios e na mídia impressa. Contudo, ressentida com o sensacionalismo que os meios de comunicação ainda dispensavam ao assunto — com um enfoque pouco científico e muito especulativo —, preferiu recusar novos convites.

A terapeuta continuou, entretanto, representado o Brasil em vários congressos internacionais sobre disforia de gênero,[5] como em 2001, por ocasião do XV Congresso Mundial de Sexologia, em Paris, no qual divulgou suas ideias e seus conhecimentos na área, assim como em 2007, no 20º Simpósio Bienal da WPATH, em Chicago, nos Estados Unidos.[7][9]

Vida pessoal editar

Família e formação editar

Wal Torres sofria de conflitos de identidade desde a primeira infância, quando já acreditava pertencer ao género feminino.[17] Já adulta, e ainda vivendo no papel social masculino, decidiu se formar em Engenharia Química pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, na USP,[1] em 1972. Também se casou duas vezes e teve filhos de ambos os casamentos.

Mais tarde, diante de uma grande crise existencial, submeteu-se a uma busca espiritual que a levou por fim à aceitação de sua identidade de género, aos 45 anos.[2]

Transição de gênero e cirurgia editar

No início de seu processo de transição, Torres buscou apoio com outras pessoas, como ela, trangéneros. Contudo, em virtude de os aconselhamentos serem incipientes e experimentais, e portanto muito arriscados, resolveu buscar a parca ajuda especializada disponível na época à comunidade transexual e transgênera.

Mais tarde, já devidamente tratada pela Dra. Dorina Quaglia (1925–2019),[nota 4] ex-diretora do Instituto de Gônadas e Intersexo do Hospital das Clínicas da USP, e levando uma vida como mulher, decidiu estudar a disforia de género e a transgeneridade, o que a levou a fazer um Mestrado em Sexologia pela Universidade Gama Filho,[6] no Rio de Janeiro, por meio de uma bolsa da Capes, o que lhe rendeu o título de Mestre em Sexologia, em 2002, e um Cum laude como distinção de honra pelo seu desempenho acadêmico.

Em 1997, aos 47 anos, submeteu-se a uma cirurgia de redesignação sexual (CRS) com o Dr. Jalma Jurado, então o mais reputado cirurgião especializado em operações de mudança de sexo no Brasil, tendo feito mais de 500 desse gênero no país.[1][2][18]

Em entrevista à revista Época, em 2002, ela revelou detalhes sobre sua vida pós-transição de gênero:

Nasci com cabeça de mulher, mas reprimi essa realidade quanto pude. Como engenheiro químico de prestígio, dei aulas em universidades e fui consultor de indústrias petroquímicas e de fertilizantes. Tive de enterrar essa carreira porque a masculinidade do ambiente não permitiria que eu virasse a Marthinha de uma hora para outra. Não passaria sequer da portaria das empresas. Fiz um mestrado em sexologia e hoje me dedico a atender pessoas com transtornos de identidade sexual. Quando ligam procurando o 'falecido', digo que ele está no Exterior. Antes da transformação, casei e tive filhos. Não tenho mais contato com eles. Era um amante do tipo que as mulheres gostam. Fiz a cirurgia aos 47 anos e hoje vivo no Rio. Ganhei uma vagina, tenho mais prazer e estou em paz comigo mesma. Mas, confesso, sou bissexual. Posso me apaixonar tanto por homens quanto por mulheres.[2]

Morte editar

Divorciada já há muitos anos, a terapeuta voltou a morar na cidade de São Paulo uns dez anos antes de sua morte, após um grande período vivendo no Rio de Janeiro, onde mantinha a sua clínica virtual.

Drª Torres morreu aos 73 anos em decorrência de uma série de problemas de saúde, entre os quais um que restringiu muito sua capacidade de locomoção.

Notas

  1. A Gendercare foi a primeira clínica virtual de gênero no mundo. Ela foi idealizada quando de sua volta do XV Congresso Mundial de Sexologia de Paris, em 2001.
  2. Nos EUA já existem alguns grupos terapêuticos e clínicas comandados por pessoas que sofreram problemas de gênero, como o Colorado Identity Center, comandado por Kathy Wilson, PhD, a clínica da Drª Anne Lawrence, MD, em Seattle, e a clínica de Sheyla Kirk, MD, na Pensilvânia.[10][11]
  3. A terapeuta preferia o termo «discordantes de gênero».[1]
  4. A Dra. Dorina Epps Quaglia foi professora de endocrinologia da USP e psicanalista, com mais de trinta anos de experiência nos estudos e avaliações de gênero no Brasil, fundadora do Grupo de Estudos de Gônadas e Intersexo do Hospital das Clínicas da USP.

Referências

  1. a b c d e f g OLIVEIRA, Maurício (5 de abril de 1999). «Um corpo, dois sexos». A Notícia. Consultado em 26 de novembro de 2012 
  2. a b c d e f g SEGATTO, Cristiane (21 de novembro de 2002). «Nasce uma mulher». Revista Época, edição nº 236. Consultado em 21 de março de 2014 
  3. a b c Adm. do portal (2007). «Board of Members» (PDF). WPATH. Consultado em 16 de julho de 2014 
  4. HOLMES, Morgan (2009). Critical Intersex, Queer Interventions. [S.l.]: Ashgate Publishing, Ltd. 257 páginas. ISBN 9780754673118 
  5. a b c d e FIGARI, Carlos (2007). @s "outr@s" Cariocas: interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro : séculos XVII ao XX. [S.l.]: Editora UFMG. 588 páginas. ISBN 9788570414984 
  6. a b c SANCHEZ, Fábio (2003). «O terceiro sexo». Revista Superinteressante. Consultado em 21 de março de 2014 
  7. a b Adm. do sítio web (2014). «WPATH – aba «Find a provider»». World Professional Association for Transgender Health (WPATH). Consultado em 21 de março de 2014 
  8. a b c ROCHA, Gabriel (30 de outubro de 2002). «Novas colunistas e artigos». Portal Fervo. Consultado em 21 de março de 2014 
  9. a b Adm. do sítio web (23 de agosto de 2007). «Em resposta a Thomas Whetstone». Sítio web da cientista Lynn Conway. Consultado em 21 de março de 2014 
  10. Adm. do sítio web (2006). «Welcome to the CIC». The Gender Identity Center of Colorado. Consultado em 3 de julho de 2014 
  11. Adm. do sítio web (2005). «Dr. Anne Lawrence on Transsexualism and Sexuality». Anne Lawrence.com. Consultado em 3 de julho de 2014 
  12. TORRES, Waléria; MS (2003–2005). «The Future of Gendercare Game Tests» (PDF). International Journal for Gender Identity Disorder Research. Consultado em 26 de novembro de 2012 
  13. LAVAGNINI, Andréa (19 de dezembro de 2001). «Transexuais querem indenização por erros». Diário Web. Consultado em 21 de março de 2014 
  14. ROCHA, Lívia (30 de abril de 2010). «Transexualismo e aspectos jurídicos» (PDF). Portal «Domínio Público». Consultado em 21 de março de 2014 
  15. a b Departamento de taquigrafia (2008). «Discurso sobre transexualidade e direitos LBGTTs» (PDF). Câmara dos Deputados. Consultado em 21 de março de 2014 
  16. Adm. do sítio web (2003). «Perfil da Dra. Torres». BelasPalavras. Consultado em 21 de março de 2014 
  17. FREITAS, Martha C. (1998). Meu sexo real. [S.l.]: Editora Vozes. 255 páginas. ISBN 9788532620019 
  18. Da redação (2010). «Prazer, eu sou Luciano(a)». Revista TPM. Consultado em 21 de março de 2014. Arquivado do original em 22 de março de 2014 

Ligações externas editar

 
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