Ai! que saudade da Amélia

Ai! que saudade da Amélia[nota 1] (comumente chamada somente de "Amélia") é o título de uma canção composta por Mário Lago (letra) e Ataulfo Alves (revisão e música) que foi lançada a primeira vez em 1942 e considerada uma obra-prima pelo historiador da música brasileira Jairo Severiano.[1] Adelzon Alves declarou que "com Amélia, Ataulfo e Mário Lago escreveram seus nomes no panteão dos grandes imortais da Academia da Música Popular Brasileira"; a música é considerada um clássico do samba.[2]

"Amélia" criou, no Brasil, o estereótipo de mulher submissa, resignada e trabalhadora como "ideal".
"Her first place", G. D. Leslie

Inspirada na figura da empregada da então cantora Aracy de Almeida, a música consagrou na sociedade um conceito de "amélia" como sendo a mulher submissa e companheira do homem em todas as dificuldades, a tal ponto que foi integrada ao vocabulário no Dicionário Aurélio com o seguinte conceito: "Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”.[3]

Histórico editar

A composição começara na verdade com o irmão da cantora Aracy de Almeida, Aníbal Alves de Almeida, conhecido pelos amigos como "Almeidinha"; segundo contam os contemporâneos, ele sempre comentava quando alguém dizia algo sobre uma mulher: "Qual nada, Amélia é que era mulher de verdade. Lavava, passava, cozinhava…", e que seria uma figura real — Amélia dos Santos Ferreira — uma empregada que teria servido à família do Almeidinha e que provavelmente ainda estava viva quando a canção foi lançada; morava num subúrbio carioca e tinha que trabalhar bastante para sustentar cerca de dez filhos.[1] Mário Lago negou que fosse ela a pessoa a inspirar a letra.[4][nota 2]

Aracy de Almeida, numa entrevista feita ao escritor João Antônio e publicada na sua última obra Dama do Encantado de 1996, narrava uma outra versão: "O Mário fica doido de raiva quando eu digo, mas a idéia de Amélia fui eu quem deu. Um dia, sugeri uma frase, "Amélia é que era mulher de verdade", ao Wilson Batista. Ele disse que andava sem tempo para compor e então o Ataulfo, que estava perto, pediu a frase para o Mário, e o samba foi feito. Tem mais. Dou até o local onde aconteceu: na Leiteria Nevada, ali na Rua Bittencourt da Silva. Na esquina ficava o Café Nice."; João Antônio referiu-se à canção como "samba tido e havido como um dos hinos nacionais de nossa música popular" e que esta divergência da origem já fora "motivo de briga entre a cantora e o autor dos versos, Mário Lago".[5]

Segundo Mário Lago, estavam a conversar no Café Nice ele, Ataulfo, Orlando Silva e Eratóstenes Frazão quando “o Almeidinha começou a cantarolar a história de uma mulher que era solidária ao seu homem, que passava fome ao seu lado e achava bonito não ter o que comer. Eu e Ataulfo pensamos: isso dá um samba”.[1]

Mário então fez a letra que repassou ao parceiro para que este a musicasse; Ataulfo então teria alterado algumas palavras para adequar à composição e adicionou dois versos — o que revoltou Lago, dizendo que não era aquela sua produção e que não a assinaria; resolvido o impasse no final daquele ano, efetuaram a venda do samba para sua gravação ao empresário Vicente Vitale, com pagamento de Mário feito adiantado.[1]

Ocorreu então uma reação contrária dos grandes cantores que foram sondados para gravarem a canção: todos eles se recusaram, alegando que o samba não era carnavalesco ou que as pessoas não iriam aceitar aquela letra; diante disto, o próprio Ataulfo gravou-a, originalmente, acompanhado pelo grupo Academia do Samba e Jacob do Bandolim, lançando-a finalmente em janeiro de 1942.[1]

Ao contrário do que pensaram os cantores, a música foi um grande sucesso no carnaval daquele ano; Darcy Vargas, esposa do presidente Getúlio Vargas, mandara que fosse tocada no baile do Teatro Municipal onde estava o cineasta Orson Welles que se encantou pela composição.[1]

Análise editar

Apesar de Ataulfo Alves declarar que Amélia "simboliza a companheira ideal, que luta ao lado do marido, vivendo de acordo com suas possibilidades, sem exigir o que ele não pode dar”, e não uma figura negativa da mulher,[1] a compreensão dominante entre aqueles que analisam a letra é a de que esta é sexista, passando uma imagem de mulher submissa.[3]

Impacto cultural editar

Em 1978 Elena e Eliane de Grammont compuseram "Amélia de Você" onde a letra, apesar de falar "Cansei de ser Amélia / Santa e boa / Que esquece que perdoa / Seus defeitos", termina por concluir que, incapaz de mudar o companheiro, diz: "Nasci pra ser Amélia de você".[6] Eliane foi esposa do cantor Lindomar Castilho, e veio a ser assassinada por ele três anos depois, em 1981.[7]

Em 2009, a cantora Pitty também lançou uma música que dialoga com a composição de Mário Lago e Ataulfo Alves - "Desconstruindo Amélia", pertencente ao álbum Chiaroscuro (álbum). A canção é uma parceria de Pitty com o guitarrista Martin Mendonça.

De 2018 é a canção "Não Precisa Ser Amélia", de Bia Ferreira, dentro da temática social e do feminismo negro.[8]

Notas e referências editar

Notas

  1. Erroneamente o título é muitas vezes grafado com "saudade" no plural; sendo este um sentimento único, não cabe senti-lo mais de uma vez. Como se pode ver nas diversas gravações primitivas da canção, os autores não cometeram este equívoco. Para a grafia deste título utilizou-se a forma consagrada no Dicionário Aurélio.
  2. Amélia dos Santos Ferreira morreu em 27 de julho de 2001 de pneumonia, com idade de 91 anos, acreditando ter sido ela a inspirar a canção; segundo Mário Lago o fato de ela ter sido a empregada do Almeidinha não alterava a situação da letra, pois ela poderia até se chamar Genoveva que nada mudaria; na data da morte da Amélia "real" Lago contou que ela se apresentou como a Amélia da música ainda na década de 1960 e ganhara a atenção da mídia mas, depois, ela teria desmentido ao próprio artista — sem que esta negativa tivesse repercussão, nos jornais.[4]

Referências

  1. a b c d e f g Euler de França Belém (18 de abril de 2015). «A história da criação da música "Amélia" por Mário Lago e Ataulfo Alves». Jornal Opção, Edição 2075. Consultado em 4 de dezembro de 2016. Cópia arquivada em 4 de dezembro de 2016 
  2. Institucional (4 de abril de 2016). «Ai, que saudade da Amélia, mais um clássico do centenário do samba». EBC. Consultado em 4 de dezembro de 2016. Cópia arquivada em 4 de dezembro de 2016 
  3. a b Amanda Beraldo Faria (2014). «Amélias: Imagens da Mulher de Verdade na Canção de Ataulfo Alves» (PDF). versão html arquivada. Revista Brasileira de Estudos da Canção – ISSN 2238-1198, Natal, n.6 (julho-dezembro). Consultado em 4 de abril de 2016 
  4. a b Agência Estado (27 Julho 2001). «Morre a musa inspiradora de "Amélia"». O Estado de São Paulo. Consultado em 4 de dezembro de 2016. Cópia arquivada em 4 de dezembro de 2016 
  5. João Antônio (1996). Dama do Encantado. [S.l.]: Nova Alexandria. ISBN 9788586075063 
  6. Raíra Gomes Garcia (2014). «DE AMÉLIA A DANDARA: Nomes de mulher nas canções brasileiras (1941 a 2004)» (PDF). UFJF. Consultado em 20 de novembro de 2018. Cópia arquivada em 20 de novembro de 2018. Página arquivada em versão de cache em html do PDF original. 
  7. Janaina Fontes Leite (2017). «O feminino abjeto na obra de Angélica Lidell» (PDF). 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),Florianópolis, ISSN 2179-510X. Consultado em 20 de novembro de 2018 
  8. «Fundação Clóvis Salgado apresenta 4º palco de encontro vozes femininas». domtotal.com. 23 de setembro de 2018. Consultado em 20 de novembro de 2018. Cópia arquivada em 20 de novembro de 2018