Altar é um filme de drama experimental português, de 2002, realizado, escrito e produzido por Rita Azevedo Gomes.[1] A longa-metragem é protagonizada por René (versão ficcionalizada interpretada pelo próprio René Gouzenne), um dramaturgo que recorda as sensações do seu primeiro amor. A questão cinematográfica da obra relaciona-se com a literatura, o teatro e a pintura.[2]

Altar
Portugal Portugal
2002 •  cor •  75 min 
Género drama experimental
Direção Rita Azevedo Gomes
Produção Rita Azevedo Gomes
Elenco René Gouzenne
Alice Lovelace
Música Susana Moody
Roberto Murolo
Cinematografia Leonardo Simões
Acácio de Almeida
Direção de arte Edmundo Díaz Sotelo
Figurino Thomas Toutain
Cristina Coa
Edição Patrícia Saramago
Rita Azevedo Gomes
Jorge Lopes
Lançamento Itália 11 de novembro de 2002 (Festival de Turim)
Portugal 3 de outubro de 2003
Idioma francês, inglês, português

Altar foi apresentado na secção European perspectives no Festival de Cinema de Turim, a 11 de novembro de 2002.[3][4] Em Portugal, esteou a 3 de outubro de 2003, quando foi exibido na Twin Towers (Lisboa) e na Casa das Artes (Porto).[5]

Sinopse editar

René é um ator e escritor de cerca de 60 anos que, após a morte de sua esposa Helene, decidiu isolar-se do mundo. Há muitos anos que se mudou para uma ilha e sente-se orgulhoso do facto de raramente ver outras pessoas. Ainda assim, gosta de passar horas em conversas ao telefone com amigos, que se assumem como fantasmas de um passado distante.[6]

O isolamento de René é perturbado por uma profunda inquietação das recordações de juventude do seu primeiro amor, que permanecem tão inescrutável como antes. O homem relembra com afetividade a imagem passada desse amor, Madeleine, sobre a qual constrói uma narração dirigida a um ouvinte silencioso. Desta história desenvolvida pelo protagonista emerge uma enigmática enunciação da figura feminina, bem como várias imagens pictóricas associadas à identidade de Madeleine.[2]

O homem encontra-se dominado pelo impulso de repetir infinitamente este episódio de enamoramento. Quando refere o quão perseguido se sente por estas imagens, ouvem-se os versos "Imagens tão mudas que, aos olhá-las, me pareça que fechei os olhos". Este é um filme sobre os mistérios da memória, sobre o poder de expressão através da palavra falada.[7]

Elenco editar

  • René Gouzenne, como René.
  • Patrícia Saramago, como Madeleine.
Participantes editar
  • Alice Lovelace[8]
  • Susana Moody
  • Thomas Toutain

Produção editar

Altar é uma longa-metragem de Portugal, de 2002, produzida por Rita Azevedo Gomes com o apoio de Bazar do Vídeo, David & Golias, Lx Filmes, Abril em Maio, Ciência Gráfica, Concept e Tóbis Portuguesa.[9]

Desenvolvimento editar

 
Versos do poema Um dia branco, de Sophia de Mello Breyner Andersen, são repetidos ao longo de Altar.

Após a experiência de realizar Frágil como o Mundo, uma produção com mais recursos financeiros, mas também mais controlada artisticamente, Azevedo Gomes pretendia recuperar alguma liberdade criativa.[10] O projeto de Altar nasceu da intenção da realizadora em filmar um texto de 40 páginas que a fascinava, utilizando apenas um ator, num cenário açoreano. Interessava-lhe rodar no Pico pelo contraste de tons do azul do oceano, a rocha negra e a floresta. A realizadora concorreu a um subsídio para concretizar o filme que, não tendo sido atribuído, levou-a a optar por adaptar o projeto de modo a ser realizável com um orçamento diminuto: "Cruzar os braços não faz o meu género, tenho de me manter em pé e de continuar a trabalhar. Se não me querem apoiar, paciência. Limito-me muito ao que posso: se só tenho quatro dias para filmar, tento filmar nesses quatro dias — e às vezes as dificuldades até dão coisas muito boas."[11]

Rita Azevedo Gomes escreveu o argumento do filme, que consiste na apropriação de excertos de obras literárias como passagens de poesia de E. E. Cummings e Sophia de Mello Breyner Andersen (versos do poema Um dia branco são repetidos ao longo de Altar).[12]

Rodagem editar

O filme foi rodado na Serra de Montejunto, numa casa emprestada à realizadora. Esta ficção experimental foi filmada por conta própria Azevedo Gomes.[13] As restrições impostas pelo orçamento contribuíram para os seus visuais austeros, a opção por gravar em digital e representaram um esforço de grupo para todos os envolvidos. Em determinados momentos de produção, a volatilidade das equipas artísticas e técnicas causou constrangimentos adicionais, sendo que a realizadora teve de substituir membros da equipa técnica quando algum dos profissionais de som ou fotografia não tivessem disponibilidade para participar na rodagem.[11]

Música editar

A banda sonora do filme inclui temas do músico italiano Roberto Murolo.[14] A música mais recorrente ao longo da obra é a canção dinamarquesa intitulada Altar, interpretada a capella por Susana Moody no Teatro Nacional de São Carlos, propositadamente para o filme.[11]

Temas e estética editar

Altar é um filme de natureza experimental, que explora as recordações de um amor de juventude, nomeadamente um pequeno gesto físico de Madeleine. Há uma continuidade temática com O Som da Terra a Tremer e Frágil como o Mundo, filmes que narram amores juvenis.[15] Em Altar, Azevedo Gomes pretendia "tentar compreender o que se passa entre as imagens, dentro do seu silêncio".[7] No argumento do filme, Rita Azevedo Gomes apresenta versos de poesias que se vão repetindo, como ecos soltos e esquecidos, assumindo a forma de discursos fragmentados.[16] A realizadora e argumentista repete a sua metodologia em Frágil como o Mundo, apropriando-se de excertos de obras literárias, mas também de pormenores imagéticos. De facto, este é o seu filme em que a pintura interfere mais diretamente na narrativa. Altar é construído como um desdobramento lento dos acontecimentos e implicações que cercam a carícia de Madeleine, em que o relato literário de memórias é acompanhado por passagens de poesia, detalhes de pinturas, bem como uma banda sonora que interliga sons da natureza e peças musicais.[10] O cinéfilo Olaf Möller denota que este conceito de colagem, pelo modo como se fundem elementos esteticamente diferentes num todo coerente, é extremamente importante para o cinema de Azevedo Gomes.[17]

O filme explora os paralelismos paradoxais entre experiências sensoriais ou estéticas, por um lado; e a mistura de dimensões espaço-temporais, por outro. Há um dispositivo que se repete continuamente: a sugestão de ambientes através da descrição dos mesmos. O discurso contínuo do protagonista acerca da carícia do seu primeiro amor, abre para a dimensão temporal que se sobrepõe no momento final à imagem de uma criada a tocar na mão de René enquanto este dorme, tornando real uma imagem que até àquele momento havia sido apenas evocada.[16]

Distribuição editar

Altar foi selecionado para edição de 2002 do Festival de Cinema de Turim, onde estreou na secção European perspectives no Festival de Cinema de Turim, a 11 de novembro.[3] Em Portugal, o filme estreou a 3 de outubro de 2003, quando foi exibido na Twin Towers, em Lisboa, e na Casa das Artes, no Porto.[5]

Retrospetivas editar

Desde a sua estreia em Turim, o filme integrou Festivais internacionais de cinema, no âmbito de sessões de retrospetiva das obras de Rita Azevedo Gomes. De entre esses eventos, destacam-se os seguintes:

Receção editar

Em Portugal, o filme foi visto por 1.023 espetadores, durante o ano de 2003.

No seu ensaio sobre o conjunto da obra de Azevedo Gomes, Cristina Álvarez López e Adrian Martin descrevem Altar enquanto uma longa-metragem "incrivelmente bela, muito alinhada com uma ideia de que Oliveira e Bénard da Costa discutem na 15ª Pedra: que o poder de uma imagem não vem do que mostra, mas do que significa, de um sentido que não é estritamente visível, e somente pode ser encontrado indo direito “dentro” do trabalho."[21] Olaf Möller (Mubi Notebook) defende que Altar é "talvez (apenas talvez) a sua maior obra", referindo-se ao cinema de Azevedo Gomes.[16]

Clara Martín colocou Altar a par com o filme também de Rita Azevedo Gomes, Correspondências, em segundo lugar no seu top de melhores filmes de 2016.[22]

Altar valeu a Rita Azevedo Gomes o prémio de melhor realização no 2º Festival Internacional de Cinema de Angra do Heroísmo.[23][24]

Referências

  1. «Rita Azevedo Gomes | IFFR». iffr.com. Consultado em 5 de março de 2021 
  2. a b Monterrubio Ibáñez, Lourdes. (2020). Correspondências by Rita Azevedo Gomes. The Complex Hybrid Image of Contemporary Epistolary Cinema and Contemporary Essay Film. Visual Studies 35(2) (2020). Visual Studies. 35. 10.1080/1472586X.2020.1771202.
  3. a b «Film card». Torino Film Fest (em inglês). Consultado em 5 de março de 2021 
  4. «Rita Azevedo Gomes | dafilms.com». dafilms.com (em inglês). Consultado em 5 de março de 2021 
  5. a b «Altar». Cineuropa - the best of european cinema (em inglês). Consultado em 5 de março de 2021 
  6. «ALTAR». Black Canvas FCC (em inglês). 17 de setembro de 2019. Consultado em 5 de março de 2021 
  7. a b LEFFEST. «Altar / Filmes // LEFFEST'21 - Lisbon & Sintra Film Festival - 11 a 20 de Novembro 2021». LEFFEST'21 - Lisbon & Sintra Film Festival - 11 a 20 de Novembro 2021. Consultado em 5 de março de 2021 
  8. SAPO, Altar - SAPO Mag, consultado em 5 de março de 2021 
  9. Cunha, Paulo. «'Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo'». Aniki : Revista Portuguesa da Imagem em Movimento (em inglês) (1). ISSN 2183-1750. Consultado em 5 de março de 2021 
  10. a b «Untitled» (PDF). webcache.googleusercontent.com. Consultado em 5 de março de 2021 
  11. a b c «ENTREVISTAS» (PDF). webcache.googleusercontent.com. Consultado em 5 de março de 2021 
  12. «Um dia branco - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen». escritas.org. Consultado em 5 de março de 2021 
  13. Rosko, Zoran (14 de novembro de 2019). «roškofrenija: Rita Azevedo Gomes - A Portuguesa (2018)». roškofrenija. Consultado em 5 de março de 2021 
  14. «ENTREVISTAS» (PDF). webcache.googleusercontent.com. Consultado em 5 de março de 2021 
  15. «Minerva: Rita Azevedo Gomes». cbamadrid.es. Consultado em 5 de março de 2021 
  16. a b c «Letters from an Unknown Woman: Rita Azevedo Gomes». www.filmcritic.com.au. Consultado em 5 de março de 2021 
  17. «Rita Azevedo Gomes: Desire the World! It Shall be Yours». MUBI. Consultado em 5 de março de 2021 
  18. «Argentina: começa hoje o BAFICI com Rita Azevedo Gomes em destaque». C7nema. Consultado em 5 de março de 2021 
  19. «Retrospective Rita Azevedo». Black Canvas FCC (em inglês). Consultado em 5 de março de 2021 
  20. LEFFEST. «Altar / Filmes // LEFFEST'21 - Lisbon & Sintra Film Festival - 11 a 20 de Novembro 2021». LEFFEST'21 - Lisbon & Sintra Film Festival - 11 a 20 de Novembro 2021. Consultado em 5 de março de 2021 
  21. «Untitled» (PDF). webcache.googleusercontent.com. Consultado em 5 de março de 2021 
  22. «LUMIÈRE TOP 2016 CLARA MARTÍN». www.elumiere.net. Consultado em 5 de março de 2021 
  23. «Rita Azevedo Gomes – The Script Road» (em inglês). Consultado em 5 de março de 2021 
  24. «Rita Azevedo Gomes». The Movie Database. Consultado em 5 de março de 2021 

Ligações externas editar