Histórias da Meia-Noite

Histórias da meia-noite é uma coletânea de contos do escritor brasileiro Machado de Assis. A compilação foi publicada em novembro de 1873, reunindo seis trabalhos publicados entre 1870 e 1873 no Jornal das Famílias.

Histórias da Meia Noite
Autor(es) Machado de Assis
Idioma Português
País  Brasil
Gênero Contos
Arte de capa Acr
Lançamento 1873
Machado de Assis.

Enquanto nos romances da década de 1870 e nas coletâneas de poesias Machado de Assis se pauta pelo espírito romântico predominante na época, nos contos reunidos neste livro o autor se aproxima do espírito mais irônico de suas crônicas, num “estilo temperado de humorismo”[1]. “Há um tom de conversa e estudo, não a narração que busca sentimentalizar o leitor.”[2]

Sobre o livro, escreveu o jornal A Reforma na seção Bibliografia, na segunda página da edição de 18 de novembro de 1873, em matéria não assinada (mas de autoria de Joaquim Serra)[3]: “Não perde o Sr. Machado de Assis a ocasião que se lhe apresenta de censurar o lado ridículo da sociedade que ele tão bem conhece, assim nada lhe escapa; nem o político do campanário e as suas pretensões estultas, nem o sestro literário de um certo círculo, nem a educação em geral dada entre nós às crianças, nem aqueles defeitos das moças a quem se não dá bons conselhos, deixaram de formar ao espirituoso escritor assunto para sensatas reflexões.”

Já o colunista literário do jornal O Novo Mundo de 23 de janeiro de 1874 (pág. 63) reclama que, enquanto o autor “nos dá lindos esboços de mulher”, seus personagens masculinos são pintados “com cores na verdade bem carregadas e rudes”. Por exemplo, em "A Parasita Azul", o Leandro Soares “vende um amor de muitos anos por uma eleição da vila” e o Camilo Seabra “é um mentiroso que para obter a mão da mulher que desejava ‘planeou um grande golpe’, a saber uma premeditada ‘tentativa de suicídio’. Não terá o nosso sexo algumas amostras mais atrativas?”

“Histórias da meia noite” era uma expressão corrente na época que designava histórias fictícias, sem respaldo na realidade (lorotas, por assim dizer).[4]

Contos editar

1) A parasita azul

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de junho a setembro de 1872 com o pseudônimo Job. É um conto de amor que inicia a coletânea. Relata a volta do jovem Camilo a Goiás, depois de estudar medicina em Paris. De volta a Santa Luzia (atual Luziânia), sua cidade natal, disputa o amor da arredia Isabel com Leandro Soares. Este, rejeitado pela formosa donzela, jurou que ninguém mais se casaria com ela, e está disposto a matar um eventual pretendente. Mas Camilo, embora seja um "melhor partido", sofre a mesma rejeição por parte da moça, mesmo depois que descobre que foi ele o menino que, anos atrás, colheu para Isabel uma "linda parasita azul, entre os galhos de uma árvore", que ela guarda, já seca, com carinho. A temperamental moça só concorda em desposá-lo depois que ele lhe dá um susto, simulando uma tentativa de suicídio. Leandro, como "prêmio de consolação", ganha uma indicação para um cargo político. Segundo Milton Hatoum, o conto contrasta Paris, a capital do mundo, com um grotão no interior de Goiás, sendo "um dos primeiros contos que tratam dos disparates da sociedade brasileira, embora seja eivado de imaginação romântica e traços romanescos, como a paixão do protagonista Camilo por uma princesa moscovita e outras peripécias parisienses."[5]

TRECHO: Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.

2) As bodas de Luís Duarte

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de junho e julho de 1873 com o título "As Bodas do Dr. Duarte" e pseudônimo Lara. É um conto que consiste no casamento de Luís Duarte com Carlota Lemos. Descreve uma história ocorrida em apenas um dia, justamente o dia do casamento, no qual há uma cerimônia a que familiares e amigos das duas famílias comparecem. O personagem mais relevante é o Tenente Porfírio, que com sua retórica um tanto quanto exagerada, mas apreciada, é considerado um homem imprescindível para qualquer cerimônia da região. Num período em que Machado produzia romances inseridos no espírito romântico, nesta "sátira aos ritos pequeno-burgueses"[1] dá um primeiro passo na direção ao realismo literário, ao descrever nos mínimos detalhes, quase em tempo real (sem saltos temporais), com forte carga de ironia, a cerimônia de casamento de Carlota com o mancebo Luís Duarte. "Ao longo da narrativa aparecem cenas e personagens que dão sucessão à sociedade de aparências, preocupada, sobretudo, com o efeito de seus atos, deixando de lado a essência dos acontecimentos. Com uma espécie de câmera cinematográfica, sendo assim, o narrador machadiano percorre todas as personagens presentes na cerimônia, tecendo comentários sobre elas ou flagrando algumas de suas ações. A intenção é de apresentá-las de modo irônico e ambíguo, causando humor na leitura."[6]

TRECHO COM FORTE CARGA IRÔNICA DESCREVENDO O DR. VALENÇA: O abdômen é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravíssimo.

TRECHO DO DISCURSO DO TENENTE PORFÍRIO: Senhores, duas flores nasceram em diverso canteiro, ambas pulcras, ambas rescendentes, ambas cheias de vitalidade divina. Nasceram uma para outra; era o cravo e a rosa; a rosa vivia para o cravo, o cravo vivia para a rosa: veio uma brisa e comunicou os perfumes das duas flores, e as flores, conhecendo que se amavam, correram uma para a outra. A brisa apadrinhou essa união.

3) Ernesto de Tal

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de março e abril de 1873, com os pseudônimos J.J. e Job, respectivamente. Ernesto é apaixonado por Rosina, que finge mutualidade no sentimento, caso ela não consiga encontrar um marido mais alto na sociedade. Rosina, quando Ernesto fica duvidoso sobre suas intenções e a confronta, inventa desculpas por qualquer que seja a atitude de que ele (corretamente) suspeita, de forma que ele se sinta culpado pelo mal-estar que "ele" causou. Rosina decide casar-se com um "rapaz de nariz comprido" ainda mantendo Ernesto como plano B, mas este descobre sobre o casamento. Ernesto confronta o rapaz de nariz comprido, e após uma briga se unem contra Rosina: Ambos mandam a mesma carta anunciando a descoberta do plano dela e o término de suas relações. Os dois se tornam amigos. Rosina, pensando ter perdido o rapaz de nariz comprido de vez, apela a Ernesto e o convence a se casar com ela, ameaçando até suicídio caso ele não satisfaça essa paixão. Ernesto e o rapaz de nariz comprido continuam bons amigos, mas o segundo nunca se casa.

A história transcorre em 1850, quando o autor era criança. Os dois rivais principais pelo amor de Rosina não têm seus nomes revelados: Ernesto de Tal ("não estou autorizado para dizer o nome todo") e o "rapaz de nariz comprido". A "Rua Nova do Conde esquina do Campo da Aclamação" onde começa o conto corresponde hoje à Rua Frei Caneca, esquina do Campo de Santana, na época área residencial. A Rua do Areal, até onde Ernesto sobe, é hoje a Rua Moncorvo Filho.

TRECHO: Veja o leitor aquela moça que ali está, sentada num sofá, entre duas damas da mesma idade, conversando baixinho com elas, e requebrando de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina não enganam ninguém exceto os namorados. Os olhos dela são espertinhos e caçadores, e com um certo movimento que ela lhes dá, ficam ainda mais caçadores e espertinhos.

4) Aurora sem dia

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de novembro e dezembro de 1870 assinado como Machado de Assis. É um conto que possui um tom irônico, e descreve a trajetória de Tinoco, funcionário de um fórum que decide virar poeta. Porém, seus poemas são superficiais, começam a se transformar em discursos, e Tinoco resolve seguir carreira política. Em seguida, desiste da política e dedica-se à agricultura. É uma crítica à vaidade de artistas mediocres e à falta de seriedade na política. O conto publicado em 1870 no Jornal das famílias foi significativamente modificado quando de sua publicação em Histórias da meia-noite.[7] O foco narrativo foi alterado, partes foram suprimidas e outras foram adicionadas. De modo geral, o tom moralista da primeira versão foi substituído por uma perspectiva mais irônica.

Dois termos empregados pelo autor tinham na época acepções diferentes de hoje: em "tragara até às fezes a taça do infortúnio", "fezes" tem o sentido de "borra" (substância que se deposita no fundo do recipiente), e em "imagens safadas", este adjetivo tem o sentido de "gasto ou inutilizado pelo uso".[8]

TRECHO: Os jornais andavam cheios de produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar.

5) O relógio de ouro

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de abril e maio de 1873 com o pseudônimo Job. Luís Negreiros encontra em casa um relógio que nunca vira antes. Questiona sua esposa, Clarinha, sobre o relógio, mas não recebe resposta. Ele se irrita e a agride, mas ainda assim nada ela responde. É implícito que Luís em pensamento a acusa de adultério. Seu sogro, Sr. Meireles, está em casa para jantar. Ele lembra Luís de seu aniversário no dia seguinte, e percebe a indiferença da filha. Meireles vai para casa avisando que não voltará mais se seja o que for que estiver acontecendo entre o casal não for resolvido. Luís pede desculpas a Clarinha, entendendo agora que o relógio era um presente. Mas ela intervém e mostra uma carta endereçada ao escritório de Luís, mas redirecionada para casa pois ele saiu antes que pudesse ser entregue. A carta, para "meu nhonhô" e assinada por "tua Iaiá", informa o envio do presente.

TRECHO: Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado como ele, do lugar e da situação.

6) Ponto de vista

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de outubro e novembro de 1873 com o título "Quem Desdenha" e assinado Machado de Assis. Uma série de cartas entre D. Luísa, D. Raquel, e Dr. Alberto. Entre assuntos cotidianos, Raquel conta para Luísa sobre o casamento de Mariquinhas com o pai de Alberto. Raquel se mostra incomodada com a situação, devido à velhice do pai de Alberto. Já o próprio Alberto, embora de boa aparência, é um pobre de espírito. Luísa insinua que a insistência no assunto reflete o interesse amoroso por parte de Raquel, que nega. Com o decorrer das cartas, Raquel revela estar apaixonada e que vai casar-se, mas sem revelar a identidade do noivo para Luísa. Quando Raquel finalmente revela o nome, o conto termina com uma carta em branco de Luísa.

TRECHO: O coração é um mar, sujeito à influência da lua e dos ventos.

Referências

  1. a b Prefácio a Histórias da Meia Noite (1977) das Edições Críticas de Obras de Machado de Assis da Editora Civilização Brasileira em Convênio com o Instituto Nacional do Livro do MEC.
  2. Daniel Piza, Machado de Assis: Um gênio brasileiro, 2a edição, São Paulo, Imprensa Oficial, 2006, p. 154.
  3. Ubiratan Machado, Dicionário de Machado de Assis, 2a edição, São Paulo, Imprensa Oficial, 2021, verbete Histórias da meia-noite.
  4. Por exemplo, na página 3 do Publicador Maranhense de 27 de maio de 1865, portanto antes da publicação do livro do Machado, lemos: “Todo o jornal tem interesse a bem de seus assinantes em ser noticioso, e nós só deixamos de comunicar-lhes fatos que ignoramos, ou que não nos é possível verificar. Noticiário de histórias da meia noite não queremos dar. Vale mais a pena pecar por defeito do que impingir lebres ao público.”
  5. Miltom Hatoum. «Página literária: "A parasita Azul" e um professor cassado». Consultado em 19 de setembro de 2021 
  6. Dayane Mussulini. «O CASAMENTO E A SOCIABILIDADE BURGUESA EM HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE, DE MACHADO DE ASSIS». Consultado em 20 de setembro de 2021 
  7. Ionara Satin. «DO JORNAL PARA O LIVRO: A REESCRITA DE "AURORA SEM DIA" DE MACHADO DE ASSIS» (PDF). Consultado em 21 de setembro de 2021 
  8. Cf.Dicionário Houaiss da língua portuguesa.

Ligações externas editar

 
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