Usuário(a):Tetraktys/Da tradução e da pesquisa própria e outras ninharias


Um aspecto problemático da Wikipédia que parece-me vir sendo muito negligenciado é o das traduções. A gigantesca Wikipédia em inglês disponibiliza hoje (2017) quase 5,5 milhões de artigos, e ela tem sido uma fonte constante e virtualmente inesgotável de novos artigos para a versão portuguesa do projeto, que na mesma data possuía pouco mais de 970 mil artigos. A enorme população que usa o inglês regularmente, cerca de 400 milhões de almas, explica fácil a extraordinária expansão de nossa irmã, enquanto nós temos cerca de 200 milhões de falantes, e a maior parte deles no Brasil, cuja população tem em média uma educação pobre, o que é um elemento a mais a nos prejudicar. Não estou aqui preocupado com uma competição entre as Wikipédias, seria de nossa parte ridículo tentar uma comparação. Estou preocupado com a qualidade do que fazemos, não me importa se a quantidade é muito menor. Tampouco vou entrar aqui no mérito da pesquisa primária estrangeira, pois ele é imenso e inegável. Uma grande parcela do conhecimento atual foi produzido no primeiro mundo anglófono. Este ponto é pacífico.

Um cativeiro confortável dá muito soooono......

Os problemas começam quando se começa a analisar um outro impacto dessa verdadeira invasão cultural, que é o de vermos o mundo, em proporção significativa, através de olhos estrangeiros. Também não adianta discutir muito esse ponto, pois ele é um fato consumado, estamos na era do Império Norte-Americano depois de termos vivido sob o Império Inglês, e isso modelou decisivamente nossa formação. Apesar do massacre cultural que a invasão impôs e continua impondo sobre nós, não deixa de ser muito válido olhar as coisas com os olhos de outrem, para que possamos alargar nossos horizontes e aproximar os povos. Assim, ficamos na situação de ao mesmo tempo maldizer e agradecer a invasão e o escravizamento.

Poderíamos, por outro lado, proteger um tantinho mais nossa cultura, nossa (parcial) autonomia, nossa identidade e nossa visão de mundo abandonando a prática da tradução integral dos artigos em inglês, mas aproveitando parte de suas fontes e talvez também a organização geral já pronta do conteúdo, se ela for útil para os nossos propósitos. Neste sentido, acho que deveríamos incentivar mais a pesquisa própria e a construção de estruturas diferentes dos textos originais, e desencorajar a imitação servil. É importante frisar que o uso das mesmas fontes pode produzir artigos muito diferentes. Seria bom para formar uma nova geração de editores que não fossem meros copistas, e que também fossem mais críticos na avaliação do conteúdo dos artigos estrangeiros, por mais bem feitos que pareçam.

Trago como exemplo dois casos paradigmáticos, de importantes artigos sobre a história brasileira: Pedro I e Pedro II, ambos traduzidos todos do inglês, mas com algumas diferenças na quantidade de citações. No primeiro, embora as fontes sejam majoritariamente brasileiras, na data da consulta um único autor estrangeiro respondia por 68 das 210 citações. No original em inglês, embora também tenham sido usadas muitas fontes nacionais, dois autores anglófonos respondiam por mais de 160 das 239 citações. No segundo, os estrangeiros contribuíram com cerca de 130 citações em um total de 288. Não apenas isso: apesar de estarem os nossos autores em maior proporção no total de autores, a quantidade de texto que os estrangeiros referenciaram foi muito maior. Na seção "Revolução Liberal do Porto", em Pedro I, por exemplo, os estrangeiros cobriram mais de 60% do conteúdo. Na seção "Crises sem fim", cerca de 70%. Na seção "Abdicação", mais de 80%. Na seção "Legado", que sintetiza sua importância, 70%, e significativamente, a um estrangeiro foi dada a distinta incumbência de prover a chave de ouro do artigo, em longo trecho citado entre aspas. Não vou me deter na análise do conteúdo, pois não sou um historiador do Brasil e estão todos referenciados com autores reconhecidos, mas não parece um espaço demasiado para a interpretação estrangeira, seja ela qual for? Confirmando um ditado clássico, nossa história tem sido escrita pelos nossos conquistadores. Acho que aqui um juízo crítico “nacionalista” seria bem-vindo, pois em nosso país não faltam eminentíssimos historiadores, embora opiniões de fora, se existirem e forem sólidas, sejam essenciais para oferecer uma perspectiva mais nuançada e ampla de qualquer tema nacional. Não sei o que está acontecendo com os artigos sobre Portugal e suas outras antigas colônias, mas presumo que o fenômeno se repita com maior ou menor intensidade.

Também poderíamos ser mais exigentes em relação à tradução em si, pois o que mais tenho visto são traduções pobres e enganosas, provavelmente feitas na pressa ou por pessoas com pouca experiência, ou que usaram tradutores automáticos, como bem lembrou um colega editor. Diz um velho ditado que todo tradutor é um traidor, pois ele transmuta o texto original a fim de fazê-lo compreensível para o novo público e transmite uma informação que é de certa forma falsa. O problema é especialmente pungente na tradução artística, que trabalha sobre textos literários, onde a preservação do estilo é fundamental, basta ver a quantidade de traduções de Homero, que divergem tanto entre si que parecem obras diferentes. Na tradução de artigos meramente informativos como os nossos esse aspecto é muito minimizado, pois aqui não se faz literatura, e sim reportagem, e mesmo que um estilo elegante e claro seja sempre recomendado e favoreça a leitura e mesmo a assimilação do conteúdo, estamos interessados centralmente na substância e não na forma. Porém, mesmo assim estamos oferecendo ao público material não apenas de má qualidade, mas positivamente prejudicial, pois nessas traduções o mais comum é encontrar interpretações equivocadas de expressões idiomáticas, desvirtuando completamente o sentido da mensagem que se quer transmitir.

Não se pode fugir dessa traição completamente, todo tradutor sabe que é tão impossível como indesejável preservar uma fidelidade absoluta ao texto original, porque quem vai ler a tradução pertence a uma outra cultura, com referenciais muitas vezes diametralmente opostos, mas se poderia tentar evitar que ela se transforme em uma calamidade, como está acontecendo. Na tradução de artigos informativos, como a preocupação com a fidelidade estilística é pequena, deveríamos usar essa maior liberdade de escrita para articular os nossos textos conforme os usos da cultura lusófona, se necessário alterando radicalmente a forma da redação primitiva, mas preservando seu conteúdo essencial.

Mas no geral as traduções na Wikipédia têm se caracterizado por um lamentável literalismo, pegando cada palavra individualmente e traduzindo-a sem muita preocupação com a coerência do trecho, com o contexto, com as sutilezas ou variantes de significado, e o resultado final não raro nos faz tropeçar a cada meia dúzia de frases, ou ficamos tentando entender o que aquele trecho realmente significa, encontrando uma sequência de palavras que não fazem muito sentido juntas, mas que individualmente até podem estar bem traduzidas. Mas traduzir bem não é dissecar e esquartejar as frases e apresentar os pedaços separadamente, é tomá-las por inteiro articulando significados consequentes, inteligíveis e sobretudo corretos.

Isso implica também nos preocuparmos se os editores anglófonos interpretaram bem suas fontes, o que só pode ser assegurado indo a elas e verificando trecho por trecho se o que foi sintetizado no artigo corresponde ao que as fontes dizem. Só que ninguém faz isso. Mais um motivo para abandonarmos a prática das traduções integrais e irmos direto às fontes para elaborar um texto original. Isso também não quer dizer que não possamos nos valer dos artigos prontos, sem a menor dúvida há uma infinidade de artigos de boa ou ótima qualidade em inglês, que já foram consolidados e refinados no conteúdo e têm uma estrutura bem organizada, e que podem ser tomados como modelo geral, mas não precisamos nos curvar até o chão e imitar tudo.

Que vergonha...

Traduções e más traduções abundam na Wikipédia em português, e o problema tem se verificado avassaladoramente até mesmo em artigos destacados, que em tese são o melhor que oferecemos. Em 19 de setembro de 2017 havia 25 artigos em processo de avaliação. Deles, aterradores 21 artigos eram traduções do inglês!!! Socorro!!! Onde estão os editores originais da Wikipédia??? Infelizmente nos tornamos um viveiro de papagaios de repetição. É impressionante que até mesmo as imagens em regra são exatamente as mesmas e são colocadas na mesma posição! Se a Wikipédia fosse uma editora centralizada, seria compreensível e esperado empregar um time de tradutores para distribuir o mesmo conteúdo em toda parte, mas não somos isso, cada Wiki atua em total independência em relação às outras, embora sigam regras similares, mas essa independência está sendo jogada voluntariamente pela janela, e acabamos transmitindo às novas gerações o legado da escravidão cultural, mas — oh! — adornado por estrelinhas de ouro e prata.

Sempre é esperado encontrar uma dúzia de erros, ninguém é infalível, e se estou com tempo livre em geral me disponho a corrigi-los sem pedir que o proponente faça isso, mas quando os cascalhos se disseminam por todo o texto e se vota contra com base em uma análise geral, tornou-se hábito desconfiar da palavra do votante e exigir que todos os pontos deficientes sejam apontados. Na prática, isso equivale a traduzir de novo todo o material, fazendo um trabalho que caberia ao proponente e não ao votante. O que tenho visto é que esses artigos são sistematicamente eleitos, com raras exceções. Às vezes as críticas são simplesmente ignoradas pelo proponente, pois um voto contrário sozinho não é o bastante para frustar a eleição, e admira que muitas vezes votantes que chegam depois de eu ou alguém fazer críticas consistentes, fechem os dois olhos a elas e votem a favor, às vezes até acrescentando elogios. Assim não dá. Até o ano passado uma de minhas principais atividades na Wikipédia era participar nas páginas de destacamento, mas de lá para cá passei a me sentir muito desanimado por esses problemas e acabei me afastando bastante das votações. Não participei da avaliação da maioria desses 25 artigos, como disse ando afastado, mas em um deles tive de votar contra a eleição por causa da má tradução.

Em artigos históricos ou científicos as traduções parecem em geral ser melhores, mas sobre filmes, música popular, jogos eletrônicos, por exemplo, as más tem sido a maioria, até onde os acompanhei. Suponho que isso possa ser em parte explicado porque aqui cada um trabalha na área que lhe interessa, é provável que seus editores possuam uma cultura basicamente popular, é provável que sejam abertos ao uso de neologismos e mais indiferentes ou desavisados sobre as distorções do linguajar culto, que é o recomendado aqui dentro.

Em minha opinião, depender tão excessivamente da tradução e traduzir mal são falhas graves em nosso projeto, e deveríamos envidar esforços concentrados em corrigi-las, mas sei que esse desejo não passa de outra utopia. Com a quantidade de editores que preferem copiar em vez de pesquisar por si mesmos (seja por falta de tempo ou de inclinação, por ideologia ou por qualquer motivo), a tendência não parece reversível. E com os poucos experientes em inglês para revisar a massa ingente de artigos já traduzidos, a tarefa se torna monstruosa e sem dúvida inexequível em relação ao passado, mas talvez, se esse problema for percebido em larga escala como um verdadeiro problema, talvez o nosso futuro possa acontecer em moldes mais independentes. Contudo, a grande quantidade de editores de baixa qualificação a editar e a ter poder de voto nas propostas de destaque deixa muitas dúvidas no ar...

Na verdade não sei se minha opinião corresponde bem ao universo geral da nossa Wiki, conheço uma parcela mínima do total dos artigos e posso estar estatisticamente muito errado, mas trabalho aqui desde 2007, já li milhares de artigos, e corrigi a tradução de algumas centenas. Depois da primeira publicação deste ensaio, alguns editores levantaram protestos a respeito de meu "desprezo" pelas traduções. Não é desprezo, mas eu tive de reconhecer que talvez eu tenha sido duro demais, e isso me fez reformular este texto, embora sem alterar-lhe substancialmente a mensagem. De fato, o que seríamos sem as traduções? Nem me refiro somente à Wikipédia, mas a todo o campo do saber lusófono. Sem elas seríamos ainda bárbaros, alienígenas em nossa própria Terra, fechados em um mundinho só nosso, pequeno e mesquinho. Não pode ser assim, é evidente. Mas todos aqueles que sabem inglês e têm acesso aos originais, poderiam pensar apenas em não copiar, mas sim contar o que viram lá fora com nossas palavras, do nosso jeito. Creio que meus argumentos mostram aspectos que devem ser pelo menos pensados melhor. Outros editores também deixaram registradas suas preocupações sobre os problemas da tradução na Wikipédia, de maneira que o assunto não é pacífico nem consensual.

A Gata Borralheira escravizada pelas filhas da madrasta.

Algo que parece também muito essencial aqui, especialmente para os novatos, é que é preciso ter uma boa compreensão geral do assunto para empreender uma boa tradução, ainda mais de artigos longos e complexos, mesmo os de temas populares. Eu tenho dúvidas, pelos textos que encontro, se essa compreensão existe de maneira suficiente. Acho que se ela existisse, poderia detectar incongruências na tradução pela simples lógica do contexto. Quase invariavelmente me parece que a coisa foi feita não na má vontade, mas num excesso de boa vontade, no desejo frenético de contribuir de maneira relevante. E acho que se o editor não domina bem o assunto para poder traduzi-lo com segurança e desenvoltura, a pressa não vai ser o meio de resolver esse problema, ela raramente produz obras de alta qualidade. Isso todos sabem. Assim, acho que podíamos sossegar um pouco o facho e reconhecer que somos pequenos, e que até onde a vista alcança seremos sempre pequenos. Então, sentemo-nos e gozemos, não somos a Gata Borralheira, não temos um sinhozinho nos açoitando, não há uma meta definida, não há motivo algum para termos pressa. E parafraseando uma notória ex-presidenta do Brasil, quando chegarmos na meta (que não existe), para não ficarmos sem fazer nada, dobramos a meta!

A pressa é um aspecto sempre presente na Wikipédia. A situação de termos robôs para criarmos artigos automaticamente para mim é uma obscenidade intelectual, principalmente porque isso foi implantado basicamente para fazer aumentar o número total de artigos, porque a relevância desses artigos é mínima, e eles são todos mínimos. Os robôs que criam artigos só coletam dados essenciais, quase como uma tabela, e produzem uma enxurrada de artigos pouco relevantes sobre obscuras comunas francesas que ninguém conhece ou quer conhecer, ou sobre meteoritos do longínquo espaço sideral, totalmente desimportantes, ou sobre espécies selvagens que somente cinco biólogos no mundo conhecem. Ok, talvez seis ou sete conheçam. Isso é uma inflação e uma distorção deliberada em nossa imagem pública. Para finalizar, a recente disponibilização de uma modalidade de tradutor automático dentro da própria Wikipédia, por favor, para mim abriu definitivamente as porteiras para a gandaia: Que venga el toro!!! Essa liberalidade não parece depor a favor de uma enciclopédia. Estamos manifestando aqui o que muitos analistas já observam com preocupação: a tendência de automatização da transmissão do conhecimento, com todo o seu rol de problemas associados, e que faz parte de uma automatização generalizada da nossa vida. Os resultados aqui dentro já são visíveis e eu os considero muito questionáveis.

Então, acho que estamos fazendo várias coisas muito negativas: estamos formando uma geração de editores preguiçosos que preferem copiar do que pesquisar por si mesmos; estamos cedendo à pressa, à negligência, à irresponsabilidade e à ambição; estamos nos tornando uma imitação barata da Wikipédia em inglês; estamos criando um padrão de redação anglicizado, que se difunde à larga haja vista a vasta popularidade da Wikipédia, e estamos confundindo nosso público com distorções de significado, fazendo-o tomar alhos por bugalhos sem saber que está sendo enganado — se o editor não for fluente em inglês, nem ele mesmo o saberá!, e assim se mostra mais uma vez a importância da qualificação do editor para editar bem, a despeito da propaganda oficial de que "aqui todos podem editar".

Enfim, cada cabeça com sua sentença. O mapa nunca reproduz o território fielmente, só oferece aproximações. O mapa que fiz informalmente ao longo de anos de experiência sem dúvida há de ser imperfeito quanto ao global, mas nas áreas que acompanho é extenso e não posso simplesmente descartá-lo, e por isso deixo pelo menos um alerta para todos, e um apelo para que se prestigie mais a originalidade. Para os novatos, deixo um conselho, um que repito sempre que posso: Caro editor, entendo sua boa intenção, mas se você não é de fato fluente na língua estrangeira, se ainda está no curso básico, será mais prudente deixar as traduções de lado e trabalhar só com fontes nacionais, o que não é demérito nenhum, é preciso enfatizar. Eu já fui como você e fiz muita porcaria antes de me qualificar. Não é tão difícil, nem é tão demorado, você só precisa de um pouco de paciência, mas acima de tudo precisa ponderar bem o fato de que um trabalho mal feito pode ter consequências negativas em larga escala quando você trabalha em um projeto com tamanha visibilidade e com tamanho poder de influenciar a opinião pública como o nosso. Seja responsável. Fica a dica!


Tetraktys, 20 de setembro de 2017