A Coroação da Virgem (Enguerrand Quarton)

pintura de Enguerrand Quarton

A Coroação da Virgem é uma pintura do mestre francês Enguerrand Quarton, realizada em 1453-54, e conservada hoje no Museu Municipal Pierre de Luxembourg de Villeneuve-lès-Avignon, representando a glorificação da Virgem Maria no Paraíso, coroada pela Santíssima Trindade.

A Coroação da Virgem

Enguerrand Quarton (c. 1410 – c. 1466) é um mestre do qual sobrevivem apenas duas obras documentadas, uma delas A Coroação da Virgem, e poucas outras a quem se lhe atribui a autoria. Nascido na Diocese de Laon, foi ativo principalmente em Arles, Aix e Avignon entre 1444 e 1466.[1]

Em 1453 o monsenhor Jean de Montagnac, cônego de Saint-Agricol em Avignon, encomendou a Quarton uma pintura para o Altar da Cidade Santa (ou da Santíssima Trindade) na igreja da Cartuxa de Val de Bénédiction, em Villeneuve-lès-Avignon. O altar estava localizado na capela fúnebre do papa Inocêncio VI, o fundador do mosteiro. O contrato, datado de 14 de abril, sobreviveu, e tem excepcional importância documental, sendo um dos mais extensos e detalhados da Idade Média. O motivo da encomenda é incerto, mas pode ter relação com os intensos debates da época sobre a identidade das pessoas do Pai e do Filho da Santíssima Trindade, uma identidade que é reforçada visualmente na pintura, e tampouco o papel exato de Montagnac na encomenda é bem conhecido; tem sido considerado o patrono, mas pode ter sido apenas um intermediário, em vista das suas estreitas relações com a Cartuxa de Villeneuve.[2][3][4]

À parte a querela trinitária, a obra nasceu no contexto de um outro conflito, num período em que os cartuxos discutiam se deviam permitir o luxo em seus mosteiros e igrejas, o que contrastava com as ordenações de pobreza e austeridade originais, e especialmente a partir da intervenção do mesmo Inocêncio os monges foram autorizados, e ao que parece também um pouco pressionados, a decorar ricamente seus edifícios, desde que a decoração se voltasse para os propósitos doutrinais e educativos. De fato, alguns expoentes cartuxos já vinham defendendo essa ideia há algum tempo, considerando o fascínio e influência que as imagens sacras exerciam sobre o povo, e considerando sua capacidade de servir como instrumento pedagógico, como uma "Bíblia visual", num tempo de maciço analfabetismo. Neste processo, a Cartuxa de Villeneuve, que também era o mausoléu da família do papa, foi privilegiada com uma série de benefícios e rendas, excepcionais mesmo para os generosos padrões da época, e tornou-se em pouco tempo um importante centro religioso, cultural e artístico.[4]

Detalhe de santos, profetas e apóstolos
Detalhe de anjos

Segundo o texto do contrato, o pintor ficava obrigado a entregar a obra até setembro de 1454. Ficava também obrigado a observar uma série de orientações sobre a composição, como por exemplo: a cena deveria ser situada na Cidade Santa, que deveria ter a forma de um Paraíso. No Paraíso deveria aparecer a Santíssima Trindade: o Espírito Santo deveria ter a forma de uma pomba, o Pai e o Filho deveriam ser idênticos, e diante da Trindade deveria vir a Virgem Maria, mas o artista poderia concebê-la como lhe aprouvesse, desde que fosse digna e vestida suntuosamente, e nela o mestre deveria "mostrar toda a sua arte". Também era exigida a presença de uma série de patriarcas, profetas e santos específicos, mas dava-se liberdade de incluir outros ao critério do artista.[2][4] Essa grande liberdade em aspectos importantes tem sido interpretada como uma evidência de que nesta época Quarton desfrutava de um incomum prestígio.[5]

A pintura mede 183 × 220 cm, foi realizada originalmente em têmpera sobre um painel de madeira, e mais tarde foi transferida para uma tela. Mostra influências estéticas diversificadas, que incluem a escultura da Picardia, as tapeçarias de Arras e a pintura flamenga e provençal, com destaque para Van Eyck e Rogier Van der Weyden, em sua atenção à linha e ao desenho rigoroso, e na maneira como estiliza as formas.[6][4] Le Blévec & Girard apontaram também para a influência da escola gótica italiana, especificamente de Matteo Giovannetti e Simone Martini, recebida através da corte papal de Avignon, onde esses artistas deixaram trabalhos.[4]

Pouco se sabe sobre a história da Coroação antes de sua inscrição num inventário dos bens da Cartuxa em 1791. Nesta época o autor era desconhecido, e uma tradição atribuía a composição ao rei Renato de Anjou. Durante a Revolução Francesa a obra foi removida para um hospital religioso, e em 1825 foi instalada no dormitório da madre superiora. Ali foi vista em 1834 por Prosper Mérimée, que sugeriu, sem sucesso, sua substituição por uma obra moderna.[4] Em 1868 o hospital foi convertido no Museu Municipal Pierre de Luxembourg, incorporando a Coroação a um rico acervo de peças que estavam dispersas nos antigos domínios do cardeal Annibale di Ceccano.[7][8]

Depois de várias propostas de atribuição, que passaram por Dürer, Jean Fouquet, a Escola da Úmbria ou Jean van der Meire, a autoria foi estabelecida com o achado do contrato pelo cônego Requin, que o publicou, com erros, em 1889, sendo revisado em 1940 por Hyacinthe Chobaut. Em seu livro sobre Quarton, publicado em 1983, Charles Sterling estabeleceu um padrão crítico influente para a visão contemporânea da obra e o entendimento do seu lugar e o do autor na história da pintura francesa.[4]

Detalhe da base esquerda, mostrando Roma e cenas do Inferno e Purgatório.

Seu programa narrativo é complexo e vasto, com uma densa simbologia alusiva à mística de Salvação da humanidade e ao destacado papel de Maria, aludindo também a Jerusalém, Roma, à vida na Terra, à Crucificação de Jesus, ao Purgatório e ao Inferno. Suas conotações universalistas podem representar um desejo de reconciliação da cristandade depois do Grande Cisma do Ocidente. Em seu conjunto, é uma ilustração dos principais elementos da teologia cristã medieval, refletindo uma interpretação especificamente cartuxa do dogma, através da invocação de símbolos, cenas e santos associados à contemplação, ao conhecimento de Deus sem intermediários, a certas técnicas de ascetismo, à solitude, à austeridade, ao modelo de vida dos Padres do Deserto, à missa de São Gregório, à esperança de união final de todos os crentes sob uma única e imutável Lei, entre outros, todos temas caros à ética, aos objetivos e à disciplina da Ordem dos Cartuxos.[2][4]

Quarton hoje é visto como um dos principais e mais influentes pintores provençais do século XV[9] e como chefe da escola de Avignon,[10] e sua Coroação é considerada uma obra-prima da pintura gótica e um dos mais representativos marcos da escola francesa.[4][11][12] Tem sido muito admirada pela riqueza de sua imaginação, pela técnica apurada, pela espacialidade complexa criada por múltiplos planos de perspectiva, pela graça e elegância das figuras, pelo senso de majestade e beleza do grupo principal e pela monumentalidade da concepção, e foi importante, através da comparação estilística, para atribuir a autoria de Quarton a iluminuras e outros painéis, notadamente a louvada Pietà de Villeneuve-lès-Avignon, conservada no Museu do Louvre.[1][6][3][13] Em 1986 o Museu Pierre de Luxembourg foi transferido para uma ala do antigo palácio do cardeal Ceccano, onde a Coroação figura como a peça principal de toda a coleção.[7][8]

Referências

  1. a b Musée du Louvre. Département des Peintures: Peinture française: La Pietà de Villeneuve-lès-Avignon.
  2. a b c Stechow, Wolfgang. Northern Renaissance Art, 1400-1600: Sources and Documents. Northwestern University Press, 1966, pp. 141-142
  3. a b "Enguerrand Quarton". In: Dictionnaire de la peinture. Larousse, s/d.
  4. a b c d e f g h i Le Blévec, Daniel & Girard, Alain. "Le couronnement de la Vierge d’Enguerrand Quarton. Nouvelle approche". In: Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1991; 135 (1):103-126
  5. Kane, Tina. The Troyes Mémoire: The Making of a Medieval Tapestry. Boydell & Brewer, 2010, pp. 30-31
  6. a b "Enguerrand Charonton". Encyclopædia Britannica online, consulta em 11/10/2017
  7. a b Musées du Gard. Musée Pierre-de-Luxembourg: Dans l'intimité des chefs-d'oeuvre. L'hôtel Pierre-de-Luxembourg. Département du Gard.
  8. a b Gard Provençal. Museum Pierre-de-Luxembourg. Villeneuve-les-Avignon.
  9. British Library. French illuminated manuscripts: late fourteenth to early sixteenth century.
  10. CRDP de l'Académie d’Amiens. "Enguerrand QUARTON, La Vierge de Miséricorde (ou Retable Cadard), huile, bois transposé sur toile, 1452, H. 66cm L.187cm, musée Condé, Chantilly". Domaine De Chantilly, 2012
  11. Barbera, Gioacchino. Antonello Da Messina: Sicily's Renaissance Master. Metropolitan Museum of Art, 2005, p. 13
  12. Cetto, Anna Maria. "Die Marienkrönung des Enguerrand Quarton in Villeneuve-lès-Avignon". In: E-periodica, 1952; 12
  13. Meldrum, Linus. "Inspired through Art: The Coronation of the Virgin by Enguerrand Quarton, 1453". In: The Catechetical Review, 2016; 2 (3)

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