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'''Gil Vicente''' (c. [[1465]] — c. [[1536]]) é considerado o primeiro grande [[dramaturgo]] [[Portugal|português]], além de [[poeta]] de renome. Primo de Valentim Gonçalves, e enquanto homem de [[teatro]], parece ter também desempenhado as tarefas de músico, ator e encenador. É considerado o pai do teatro português, ou mesmo do teatro ibérico, já que também escreveu em castelhano - partilhando a paternidade da dramaturgia espanhola com [[Juan del Encina]].
 
Há quem o identifique com o ourives, autor da [[Custódia de Belém]], mestre da balança, e com o mestre de [[Retórica]] do rei [[Manuel I de Portugal|Dom Manuel]].
 
A obra vicentina é tida como reflexo da mudança dos tempos e da passagem da [[Idade Média]] para o [[Renascimento]], fazendo-se o balanço de uma época onde as hierarquias e a ordem social eram regidas por regras inflexíveis, para uma nova sociedade onde se começa a subverter a ordem instituída, ao questioná-la. Foi o principal representante da literatura renascentista [[Portugal|portuguesa]], anterior a [[Luís Vaz de Camões|Camões]], incorporando elementos populares na sua escrita que influenciou, por sua vez, a [[cultura popular]] portuguesa.
 
==Biografia==
[[Ficheiro:Gil Vicente.jpg|thumb|220px|right|Gil Vicente, tal como costuma ser representado, seguindo o arquétipo da estátua de [[Francisco de Assis Rodrigues]] para a fachada do [[Teatro Nacional D. Maria II]].]]
=== Local e data de nascimento ===
Apesar de se considerar que a data mais provável para o seu nascimento tenha sido em [[1466]] — hipótese defendida, entre outros, por [[Queirós Veloso]] — há ainda quem proponha as datas de [[1460]] ([[Braamcamp Freire]]) ou entre [[1470]] e [[1475]] ([[Brito Rebelo]]). Se nos basearmos nas informações veiculadas na própria obra do autor, encontraremos contradições. O ''Velho da Horta'', a ''Floresta de Enganos'' ou o ''Auto da Festa'', indicam [[1452]], [[1470]] e antes de [[1467]], respectivamente. Desde [[1965]], quando decorreram festividades oficiais comemorativas do quincentenário do nascimento do dramaturgo, que se aceita [[1465]] de forma quase unânime.
 
[[Frei Pedro de Poiares]] localizava o seu nascimento em [[Barcelos]], mas as hipóteses de assim ter sido são poucas. [[Augusto César Pires de Lima|Pires de Lima]] propôs [[Guimarães]] para sua terra natal - hipótese essa que estaria de acordo com a identificação do dramaturgo com o [[ourivesaria|ourives]], já que a cidade de Guimarães foi durante muito tempo berço privilegiado de joalheiros. O povo de Guimarães orgulha-se desta hipótese, como se pode verificar, por exemplo, na designação dada a uma das escolas do concelho (em [[Urgeses]]), que homenageia o autor.
 
[[Lisboa]] é também muitas vezes defendida como o local certo. Outros, porém, indicam as [[Beira]]s para local de nascimento - de facto, verificam-se várias referências a esta área geográfica de Portugal, seja na toponímia como pela forma de falar das personagens. [[José Alberto Lopes da Silva]]<ref name="Lopes da Silva, 2002">''O mundo religioso de Gil Vicente'', [[Covilhã]], [[Universidade da Beira Interior]], 2002</ref> assinala que não há na obra vicentina referências a Barcelos nem a Guimarães, mas sim dezenas de elementos relacionados com as Beiras. Há obras inteiras, personagens, caracteres, linguagem. O conhecimento que o autor mostra desta região do país não era fácil de obter se tivesse nascido no norte e vivido a maior parte da sua vida em [[Évora]] e [[Lisboa]].
 
=== Poeta-ourives ===
Cada livro publicado sobre Gil Vicente é, quase sempre, defensor de uma qualquer tese que identifique ou não o autor ao ourives. A favor desta hipótese existe o facto de o dramaturgo usar com propriedade termos técnicos de [[ourivesaria]] na sua obra.
 
Alguns intelectuais portugueses polemizaram sobre o assunto. [[Camilo Castelo Branco]] escreveu, em [[1881]], o documento "''Gil Vicente, Embargos à fantasia do Sr. [[Teófilo Braga]]''" - este último defendia uma só pessoa para o ourives e para o poeta, enquanto que Camilo defendia duas pessoas distintas. Teófilo Braga mudaria de opinião depois de um estudo de [[Sanches de Baena]] que mostrava a genealogia distinta de dois indivíduos de nome Gil Vicente, apesar de Brito Rebelo ter conseguido comprovar a inconsistência histórica destas duas genealogias, utilizando documentos da [[Torre do Tombo]]. Lopes da Silva, na obra citada<ref name="Lopes da Silva, 2002" />, avança uma dezena de argumentos para provar que Gil Vicente era ourives quando escreveu a sua primeira obra, uma imitação do ''Auto del Repelón'', de [[Juan del Encina]] a quem pede emprestada não só a história, mas também as personagens com o seu respectivo idioma, o [[saiaguês]].
 
=== Dados biográficos ===
Sabe-se que casou pela primeira vez com [[Branca Bezerra]], de quem nasceram Gaspar Vicente (que nasceu em cerca de 1488, teria partido para a Índia na [[Armadas da Índia#1506|Armada de 1506]] e foi Moço da Capela Real em 1519, ano em que morreu solteiro e sem geração) e Belchior Vicente (que nasceu em 1504 ou 1505 e faleceu antes de 13 de Março de 1552, foi Moço de Capela depois acrescentado a [[Escudeiro]] da Casa Real e teve o ofício de [[Escrivão]] Segundo da [[Feitoria]] da [[Castelo de São Jorge da Mina|Mina]], casado com Guiomar Tavares e pai de Paula Vicente, batizada a 11 de Abril de 1549, e de Maria Tavares).<ref name="BO">{{citar livro|autor=[[Augusto Martins Ferreira do Amaral]]|título=Barretos e Outros Contendo subsídios para a genealogia descendente de Gil Vicente|editora=Edição do Autor|ano=Lisboa, 1976|páginas=|id=49-50 e ss}}</ref>
 
Depois de enviuvar, casou pela segunda vez com Melícia Rodrigues, de quem teve Paula Vicente (nascida em 1519 ou cerca de 1519 e falecida em 1576, que foi tangedora e Moça de Câmara da [[Infanta D. Maria]], possuidora de duas casas na [[Rua dos Penosinhos]], na [[Freguesia]] de [[Santa Cruz do Castelo]], em Lisboa, e editou e organizou, com seu irmão Luís Vicente, a compilação das suas obras, tendo falecido solteira e sem geração), Luís Vicente (nascido cerca de 1520 e falecido entre 1592 e 1595, que residiu em Lisboa, no [[Poço Velho da Alcáçova]] e, mais tarde, na sua [[Quinta do Mosteiro]], em [[Matacães]], termo de [[Torres Vedras]], hoje integrada na [[Quinta do Juncal]], foi [[Cavaleiro]] [[Fidalgo]] da [[Casa Real]], editou e organizou, com sua irmã Paula Vicente, a compilação das suas obras e casou três vezes, a primeira com Mor de Almeida, com geração, a segunda com Joana de Pina, filha de Diogo de Pina e de Mécia Barreto, com geração, e a terceira com Isabel de Castro, sem geração) e Valéria Borges (nascida cerca de 1530 e falecida depois de 1598, que casou duas vezes, a primeira a 10 de Julho de 1551 com Pero Machado, Moço da Real Câmara, com geração feminina, e a segunda cerca de 1565 com D. António de Almeida, falecido em 1592, filho de D. Luís de Meneses e de Brites de Aguiar, com geração).<ref name="BO"/>
 
Presume-se que tenha estudado na [[Universidade de Salamanca]], em [[Salamanca]], Espanha.
 
[[Ficheiro:Gil Vicente na Corte de D. Manuel I (Roque Gameiro, Quadros da História de Portugal, 1917).png|thumb|left|220px|''O Monólogo do vaqueiro'', como teria sido representado pelo próprio Gil Vicente, de acordo com a visão do pintor [[Roque Gameiro]].]]
O seu primeiro trabalho conhecido, a peça em castelhano ''Auto da Visitação'', também conhecido como [[Monólogo do Vaqueiro]], foi representada nos aposentos da rainha [[Maria de Aragão, rainha de Portugal|D. Maria]], consorte de [[Manuel I de Portugal|Dom Manuel]], para celebrar o nascimento do príncipe (o futuro [[João III de Portugal|D. João III]]) - sendo esta representação considerada como o marco de partida da história do teatro português. Ocorreu isto na noite de [[8 de Junho]] de [[1502]], com a presença, além do rei e da rainha, de [[Leonor de Portugal, rainha de Portugal|Dona Leonor]], viúva de [[João II de Portugal|D. João II]] e [[Beatriz de Portugal (1430)|D. Beatriz]], mãe do rei.
 
Tornou-se, então, responsável pela organização dos eventos palacianos. Dona Leonor pediu ao dramaturgo a repetição da peça pelas ''matinas'' de Natal, mas o autor, considerando que a ocasião pedia outro tratamento, escreveu o ''Auto Pastoril Castelhano''. De facto, o ''Auto da Visitação'' tem elementos claramente inspirados na "[[adoração dos pastores]]", de acordo com os relatos do nascimento de [[Cristo]]. A encenação incluía um ofertório de prendas simples e rústicas, como [[queijo]]s, ao futuro rei, ao qual se pressagiavam grandes feitos. Gil Vicente que, além de ter escrito a peça, também a encenou e representou, usou, contudo, o quadro religioso natalício numa perspectiva profana. Perante o interesse de Dona Leonor, que se tornou a sua grande protectora nos anos seguintes, Gil Vicente teve a noção de que o seu talento lhe permitiria mais do que adaptar simplesmente a peça para ocasiões diversas, ainda que semelhantes.
 
Se foi realmente ourives, terminou a sua obra-prima nesta arte - a Custódia de Belém - feita para o [[Mosteiro dos Jerónimos]], em 1506, produzida com o primeiro ouro vindo de [[Moçambique]]. Três anos depois, este mesmo ourives tornou-se vedor do património de ourivesaria no [[Convento de Cristo]], em [[Tomar]], Nossa Senhora de Belém e no [[Hospital Real de Todos os Santos|Hospital de Todos-os-Santos]], em Lisboa.
 
Consegue-se ainda apurar algumas datas em relação a esta personagem que tanto pode ser una como múltipla: em 1511 é nomeado vassalo de el-Rei e, um ano depois, sabe-se que era representante da bandeira dos ourives na "[[Casa dos Vinte e Quatro]]". Em 1513, o mestre da balança da Casa da Moeda, também de nome de Gil Vicente (se é o mesmo ou não, como já se disse, não se sabe), foi eleito pelos outros mestres para os representar junto à vereação de Lisboa.
 
[[Ficheiro:Gil Vicente autógrafo.jpg|thumb|220px|Autógrafo de Gil Vicente.]]
Será ele que dirigirá os festejos em honra de Dona Leonor, a terceira mulher de Dom Manuel, no ano de 1520, um ano antes de passar a servir [[João III de Portugal|Dom João III]], conseguindo o prestígio do qual se valeria para se permitir a satirizar o [[clero]] e a [[nobreza]] nas suas obras ou mesmo para se dirigir ao monarca criticando as suas opções.
 
É conhecida a presença do dramaturgo em [[Santarém (Portugal)|Santarém]], a 26 de Janeiro, aquando o [[Sismo de Lisboa de 1531]]. O terramoto foi seguido por severos choques e o medo de outro era intenso. Um rumor, aparentemente encorajado pelos freis de Santarém, de que o desastre era punição divina e que as comunidades de judeus e dos [[Marrano|marranos]] eram as responsáveis espalhou-se rapidamente e trouxe maior instabilidade social aos arredores. Gil Vicente procedeu a responsabilizar os monges por um possível massacre, através de uma carta ao rei [[João III de Portugal|D. João III]], onde defende os [[Cristão-novo|cristãos-novos]], possivelmente afastando um [[pogrom]].<ref>{{citar livro|título=Sacred Game: The Role of the Sacred in the Genesis of Modern Literary Fiction|ultimo=Bandera|primeiro=Cesareo|editora=Penn State Press|ano=2010|local=|páginas=44|isbn=9780271042053|acessodata=}}</ref>
 
Morreu em lugar desconhecido, talvez em 1536 porque é a partir desta data que se deixa de encontrar qualquer referência ao seu nome nos documentos da época, além de ter deixado de escrever a partir desta data.
 
== Contexto histórico ==
[[Ficheiro:Obras de Garcia de Resende.jpg|thumb|220px|Obras de [[Garcia de Resende]], onde se inclui a Miscelânea onde se defende para Gil Vicente a paternidade do teatro português.]]
 
=== O Teatro português antes de Gil Vicente ===
O teatro português não nasceu com Gil Vicente. Esse mito, criado por vários autores de renome, como [[Garcia de Resende]], na sua ''[[Miscelânea]]'', ou o seu próprio filho, Luís Vicente, por ocasião da primeira edição da "Compilação" da obra completa do pai, poderá justificar-se pela importância inegável do autor no contexto literário peninsular, mas não é de todo verdadeiro já que existiam manifestações teatrais antes da noite de [[7 de Junho|7]] para [[8 de Junho]] de 1502, data da primeira representação do "Auto do vaqueiro" ou "Auto da visitação", nos aposentos da rainha.
 
Já no reinado de [[Sancho I de Portugal|Sancho I]], os dois actores mais antigos portugueses, Bonamis e Acompaniado, realizaram um espectáculo de "[[arremedilho]]"[http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/arremedilho.htm], tendo sido pagos pelo rei com uma doação de terras. O arcebispo de Braga, [[Dom Frei Telo]], refere-se, num documento de 1281, a representações litúrgicas por ocasião das principais festividades católicas. Em 1451, o casamento da infanta Dona Leonor com o imperador [[Frederico III da Alemanha]] foi acompanhado também de representações teatrais.
 
Segundo as crónicas portuguesas de [[Fernão Lopes]], [[Zurara]], [[Rui de Pina]] ou [[Garcia de Resende]], também nas cortes de [[João I de Portugal|D. João I]], [[Afonso V de Portugal|D. Afonso V]] e [[João II de Portugal|D.João II]], se faziam encenações espectaculares. [[Rui de Pina]] refere-se, por exemplo, a um "momo", em que Dom João II participou pessoalmente, fazendo o papel de "[[Lohengrin|Cavaleiro do Cisne]]", num cenário de ondas agitadas (formadas com panos), numa frota de naus que causou espanto entrando sala adentro acompanhado do som de trombetas, atabales, artilharia e música executada por menestréis, além de uma tripulação atarefada de actores vestidos de forma espectacular.
 
Contudo, pouco resta dos textos dramáticos pré-vicentinos. Além das [[écloga]]s dialogadas de [[Bernardim Ribeiro]], [[Cristóvão Falcão]] e [[Sá de Miranda]], [[André Dias]] publicou em [[1435]] um "Pranto de Santa Maria" considerado um esboço razoável de um drama litúrgico.
 
No ''[[Cancioneiro Geral]]'' de Garcia de Resende existem alguns textos também significativos, como o '''[[Entremez do Anjo]]''' (assim designado por [[Teófilo Braga]]), de D. [[Francisco de Portugal]], Conde de Vimioso, ou as trovas de [[Anrique da Mota]] (ou '''[[Farsa do alfaiate]]''', segundo [[Leite de Vasconcelos]]) dedicados a temas e personagens chocarreiros como "um clérigo sobre uma pipa de vinho que se lhe foi pelo chão", entre outros episódios divertidos.
 
É provável que Gil Vicente tenha assistido algumas destas representações. Viria, contudo, sem qualquer dúvida, a superá-las em mestria e em profundidade, tal como diria [[Marcelino Menéndez Pelayo]] ao considerá-lo a "figura mais importante dos primitivos dramaturgos peninsulares", chegando mesmo a dizer que não havia "quem o excedesse na Europa do seu tempo".
 
É com Sá de Miranda que se assinala a diferença das obras do Classicismo em comparação com o Teatro de Gil Vicente. Segundo [[Clóvis Monteiro (autor)|Clóvis Monteiro]], no prólogo da comédia ''Estrangeiros'' de 1527, uma personagem identificada como a própria Comédia discorre sobre si em comparação aludida ao teatro vicentino. Insistia aquele autor em não se trocar o nome de Comédia para Auto <ref>MONTEIRO,Clóvis - Esboços de história literária - Livraria Acadêmica - Rio de Janeiro - 1961 - Pgs.17/19. O autor acrescenta que enquanto no teatro clássico havia a separação do trágico e do [[burlesco]], em Gil Vicente aparece do meio para o fim de sua obra teatral a tragicomédia (Pag. 21) </ref>.
 
== Obra ==
=== Características principais ===
A sua obra vem no seguimento do teatro ibérico popular e religioso que já se fazia, ainda que de forma menos profunda. Os temas pastoris, presentes na escrita de Juan del Encina vão influenciar fortemente a sua primeira fase de produção teatral e permanecerão esporadicamente na sua obra posterior, de maior diversidade temática e sofisticação de meios. De facto, a sua obra tem uma vasta diversidade de formas: o [[auto]] pastoril, a alegoria religiosa, narrativas bíblicas, farsas episódicas e autos narrativos.
 
[[Ficheiro:Pranto de Maria Parda 1665 Domingos Carneyro.jpg|thumb|left|220px|Pranto de Maria Parda, 1665. Em Lisboa por Domingos Carneyro]]
 
O seu filho, Luís Vicente, na primeira compilação de todas as suas obras, classificou-as em autos e mistérios (de carácter sagrado e devocional) e em [[farsa]]s, [[comédia]]s e [[tragicomédia]]s (de carácter profano). Contudo, qualquer classificação é redutora - de facto, basta pensar na Trilogia das Barcas para se verificar como elementos da farsa (as personagens que vão aparecendo, há pouco saídas deste mundo) se misturam com elementos [[alegoria|alegóricos]] religiosos e místicos (o [[Bem]] e o [[Mal]]).
 
Gil Vicente retratou, com refinada comicidade, a sociedade portuguesa do [[século XVI]], demonstrando uma capacidade acutilante de observação ao traçar o perfil psicológico das personagens. Crítico severo dos costumes, de acordo com a máxima que seria ditada por [[Molière]] ("Ridendo castigat mores" - rindo se castigam os costumes), Gil Vicente é também um dos mais importantes autores [[sátira|satíricos]] da língua portuguesa. Em 44 peças, usa grande quantidade de personagens extraídos do espectro social português da altura. É comum a presença de marinheiros, [[ciganos]], camponeses, [[fada]]s e [[demónio]]s e de referências – sempre com um lirismo nato – a dialetos e linguagens populares. Gil Vicente mantinha a linguagem habitual das personagens <ref>Clovis Monteiro cita como exemplo uma cena da trilogia das Barcas, quando o personagem "Corregedor" fala várias frases em latim: "hoc non potest esse", "videtis qui petatis", "Super jure majestatis", em "Esboços da história literária" - Livraria Acadêmica - 1961 - Rio de Janeiro - Pgs. 23-24 </ref>.
 
Entre suas obras estão "Auto Pastoril Castelhano" (1502) e [[Auto dos Reis Magos]] (1503), escritas para celebração [[natal]]ina. Dentro deste contexto insere-se ainda o ''[[Auto da Sibila Cassandra]]'' (1513), que, embora até muito recentemente tenha sido visto como um prenúncio dos os ideais renascentistas em Portugal, retoma uma narrativa já presente na [[General Estória]] de [[Afonso X]]<ref>{{citar livro|url=https://ifilosofia.up.pt/proj/smelps/seminario_medieval_2007_2008|título=Seminário Medieval 2007-2008|ultimo=Leite|primeiro=Mariana|editora=Estratégias Criativas|ano=2009|editor-sobrenome=do Rosário Ferreira|editor-nome=Maria|local=Porto|páginas=41-60|capitulo=Gil Vicente, Leitor de Afonso X: Sobre o Auto da Sibila Cassandra e a General Estória|acessodata=20-02-2020|editor-sobrenome2=Sofia Laranjinha|editor-nome2=Ana|editor-sobrenome3=Ribeiro Miranda|editor-nome3=José Carlos}}</ref>. Sua obra-prima é a trilogia de sátiras ''[[Auto da Barca do Inferno]]'' (1516), ''[[Auto da Barca do Purgatório]]'' (1518) e ''[[Auto da Barca da Glória]]'' (1519). Em 1523 escreve a ''[[Farsa de Inês Pereira]].''
 
[[Ficheiro:Auto de Mofina Mendes.jpg|thumb|200px|Auto de Mofina Mendes, onde se inclui uma anunciação, de acordo com os temas marianos, gratos ao autor]]
 
São geralmente apontados, como aspectos positivos das suas peças, a imaginação e originalidade evidenciadas; o sentido dramático e o conhecimento dos aspectos relacionados com a problemática do teatro.
 
Alguns autores consideram que a sua espontaneidade, ainda que reflectindo de forma eficaz os sentimentos colectivos e exprimindo a realidade criticável da sociedade a que pertencia, perde em reflexão e em requinte. De facto, a sua forma de exprimir é simples, chã e directa, sem grandes floreados poéticos.
 
Acima de tudo, o autor exprime-se de forma inspirada, [[Dionísio|dionisíaca]], nem sempre obedecendo a princípios estéticos e artísticos de equilíbrio. É também versátil nas suas manifestações: se, por um lado, parece ser uma alma rebelde, temerária, impiedosa no que toca em demonstrar os vícios dos outros, quase da mesma forma que se esperaria de um inconsciente e tolo [[bobo]] da corte, por outro lado, mostra-se dócil, humano e ternurento na sua poesia de cariz religioso e quando se trata de defender aqueles a quem a sociedade maltrata.
 
O seu lirismo religioso, de raiz medieval e que demonstra influências das ''[[Cantigas de Santa Maria]]'' está bem presente, por exemplo, no ''Auto de Mofina Mendes'', na cena da [[Anunciação]], ou numa oração dita por [[Agostinho de Hipona|Santo Agostinho]] no ''Auto da Alma''. Por essa razão é, por vezes, designado por "poeta da Virgem".
 
O seu lirismo patriótico presente em "Exortação da Guerra", ''Auto da fama'' ou ''Cortes de Júpiter'', não se limita a glorificar, em estilo épico e orgulhoso, a nacionalidade: de facto, é crítico e eticamente preocupado, principalmente no que diz respeito aos vícios nascidos da nova realidade económica, decorrente do comércio com o Oriente (''Auto da Índia''). O lirismo amoroso, por outro lado, consegue aliar algum [[erotismo]] e alguma brejeirice com influências mais eruditas ([[Petrarca]], por exemplo).
 
=== Elementos filosóficos na obra vicentina ===
A obra de Gil Vicente transmite uma visão do mundo que se assemelha e se posiciona como uma perspectiva pessoal do [[Platonismo]]: existem dois mundos - o Mundo Primeiro, da serenidade e do amor divino, que leva à paz interior, ao sossego e a uma "resplandecente glória", como dá conta sua carta a D. João III; e o Mundo Segundo, aquele que retrata nas suas farsas: um mundo "todo ele falso", cheio de "canseiras", de desordem sem remédio, "sem firmeza certa". Estes dois mundos refletem-se em temas diversos da sua obra: por um lado, o mundo dos defeitos humanos e das caricaturas, servidos sem grande preocupação de [[verosimilhança]] ou de rigor histórico.
 
[[Ficheiro:Auto de Moralidade de Gil Vicente.jpg|thumb|200px|Primeira página do ''Auto de Moralidade''.]]
Muitos autores criticam em Gil Vicente os [[anacronismo]]s e as falhas na narrativa (aquilo a que chamaríamos hoje de "[[gaffe]]s"), mas, para alguém que considerava o mundo retratado como pleno de falsidades, essas seriam apenas mais algumas, sem importância e sem dano para a mensagem que se pretendia transmitir. Por outro lado, o autor valoriza os elementos [[mito|míticos]] e [[símbolo|simbólicos]] religiosos do [[Natal]]: a figura da Virgem Mãe, do Deus Menino, da noite natalícia, demonstrando aí um zelo lírico e uma vontade de harmonia e de pureza artística que não existe nas suas mais conhecidas obras de crítica social.
 
Sem as características do [[maniqueísmo]] que tantas vezes se constatam nas peças teatrais de quem defende uma tal visão do Mundo, há, realmente, a presença de um forte contraste nos elementos cénicos usados por Gil Vicente: a luz contra a sombra, não numa luta feroz, mas em convivência quase amigável. A noite de natal torna-se também aqui a imagem perfeita que resume a concepção cósmica de Gil Vicente: as grandes trevas emolduram a glória divina da maternidade, do nascimento, do perdão, da serenidade e da boa vontade - mas sem a escuridão, que seria da claridade?
 
== Legado ==
Tão importante foi o trabalho de Gil Vicente que [[Erasmo de Roterdão]], filósofo holandês, estudara o idioma português para assim poder apreciar sua obra no original. Seu estilo deu origem à ''escola de Gil Vicente'', ou ''escola popular'', tendo por modelo as coisas simples do povo.<ref>{{citar livro|autor=José Marques da Cruz |título=História da Literatura |editora=Brasiliense |ano=1939 |páginas=215 |id=}}</ref>
 
Note-se que a obra de Gil Vicente não se resume ao teatro, estendendo-se também à [[poesia]]. Podemos citar vários [[vilancete]]s e [[cantiga]]s, ainda influenciadas pelo estilo palaciano e temas dos trovadores.
 
Vários compositores trabalharam poemas de Gil Vicente na forma de [[lied]] (principalmente algumas traduções para o alemão, feitas por [[Emanuel von Geibel]]), como [[Max Bruch]] ou [[Robert Schumann]], o que demonstra o carácter universal da sua obra.
Os seus filhos, Paula e Luís Vicente, foram os responsáveis pela primeira edição das suas obras completas. Em 1586, sai à estampa uma segunda edição, com muitas passagens censuradas pela [[Inquisição]]. Só no [[século XIX]] se faria a redescoberta do autor, com a terceira edição de [[1834]], em [[Hamburgo]], levada a cabo por Barreto Feio.
 
=== Obras ===
 
Segue-se a lista das obras de Gil Vicente segundo a ordem em que aparecem na ''Compilação'' de [[1562]]<ref>{{Citar livro |sobrenome=Vicente |nome=Gil |título=Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente |subtítulo=a qual se reparte em cinco livros |url=http://purl.pt/11494/5/#/0 |língua=Português |edição=1 |local=Lisboa |editora=Casa de Joam Alvarez |ano=1562}}</ref>:
 
* Livro primeiro - '''Obras de Devoção''':
** ''[[Monólogo do Vaqueiro]]'' {{ebook|24129}} ou ''[[Auto da Visitação]]'' ([[1502]])
** ''Auto Pastoril Castelhano'' (1502)
** ''[[Auto dos Reis Magos]]'' ([[1503]])
** ''[[Auto da Sibila Cassandra]]''
** ''Auto da Fé'' ([[1510]])
** ''Auto dos Quatro Tempos''
** ''[[Auto de Mofina Mendes]]'' (1534) <sup>([[s:pt:Auto de Mofina Mendes|Wikisource]])</sup>
** ''[[Auto Pastoril Português]]'' (1523)
** ''[[Auto da Feira]]'' ([[1527]])
** Auto da Alma ([[1508]]) <sup>([[s:pt:Auto da Alma|Wikisource]])</sup>
** ''[[Auto da Barca do Inferno]]'' ([[1516]]) <sup>([[s:pt:Auto da barca do inferno|Wikisource]])</sup>
** ''[[Auto da Barca do Purgatório]]'' ([[1518]])
** ''[[Auto da Barca da Glória]]'' ([[1519]])
** ''Auto da História de Deus'' (1527)
** ''Diálogo de uns Judeus e Centúrios sobre a Ressurreição de Cristo''
** ''Auto da Cananea'' ([[1534]])
** ''Auto de São Martinho'' ([[1504]])
 
* Livro segundo - '''Comédias''':
** ''Comédia de Rubena'' (1521)
** ''Comédia do Viúvo'' ([[1514]]) <sup>([[s:es:El viudo|Wikisource]])</sup>
** ''Comédia sobre a Divisa da Cidade de Coimbra'' (1527)
** ''[[Floresta de Enganos]]'' ([[1536]])
 
* Livro terceiro - '''Tragicomédias''':
** ''Tragicomédia de Dom Duardos''
** ''Auto de Amadis de Gaula'' ([[1533]])
** ''Auto da Nau de Amores'' ([[1527]])
** ''Frágua de Amor'' ([[1524]])
** ''Exortação da Guerra'' ([[1513]])
** ''Farsa do Templo de Apolo'' ([[1526]])
** ''Cortes de Júpiter'' ([[1521]])
** ''[[Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela]]'' (1527)
** ''Auto do Triunfo do Inverno'' (1529)
** ''Romagem dos Agravados'' (1533)
 
* Livro quarto - '''Farsas''':
** ''[[Quem Tem Farelos?]]'' ([[1505]])
** ''[[Auto da Índia]]'' ([[1509]]) <sup>([[s:pt:Auto da Índia|Wikisource]])</sup>
** ''Auto da Fama'' ([[1516]])
** ''[[O Velho da Horta]]'' ([[1512]]) <sup>([[s:pt:O velho da horta|Wikisource]])</sup>
** ''Auto das Fadas''
** ''[[Farsa de Inês Pereira]]'' ([[1523]]) <sup>([[s:pt:Farsa de Inês Pereira|Wikisource]])</sup>
** ''Farsa do Juiz da Beira'' ([[1525]])
** ''Farsa das Ciganas'' (1521)
** ''Farsa dos Almocreves'' (1527)
** ''Farsa do Clérigo da Beira'' ([[1529]])
** ''[[Auto da Lusitânia]]'', intercalado com o entremez ''Todo-o-Mundo e Ninguém'' ([[1532]]) <sup>([[s:pt:Auto da Lusitânia|Wikisource]])</sup>
 
* Livro quinto - '''Obras miúdas''':
** ''Pranto de Maria Parda'' (1522) {{ebook|21287}}
 
{{referências}}