Cultura: diferenças entre revisões

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Esta discussão não é trivial, uma vez que o fenômeno da cultura está intimamente ligado com o conceito abstrato de "inteligência", também muito caro para a espécie humana. Segundo a versão ontogenética do MIH (Inteligência Maquiavélica Hypothesis) [ref 2]., a cultura é o meio pelo qual pode-se tornar um indivíduo inteligente, ou seja, um ser que é criado e se desenvolve em um meio com cultura acumulada pode enriquecer e aprimorar as maneiras com que lida com o mundo ao seu redor. Como exemplo tem-se que, se for comparada uma pessoa que foi educada contemporaneamente com outra que foi educada cerca de 20 milênios atrás, porém com capacidade cerebral equivalente, teremos que o primeiro indivíduo poderia ser considerado mais inteligente devido ao acúmulo do conhecimento e cultura acerca das técnicas existentes atualmente [ref 3]. Sendo assim, as espécies dotadas de cultura possuiriam meios capazes de selecionar características específicas de inteligência, formando associações indissociáveis entre cultura e desenvolvimento de inteligência. Sendo assim, reconhecer a cultura em espécies não-humanas exige reconhecer também a inteligência dessas espécies, admitindo que características antes consideradas como exclusivas do Homo sapiens não são assim tão exclusivas e não os tornam tão especiais. Essa visão será alvo de intensa discussão e resistência por parte de muitos pesquisadores por muito tempo.
 
Atualmente, a cultura pode ser delineada de múltiplas formas distintas a depender da disciplina acadêmica em questão.[ref 4] Por um lado, existem antropólogos que agarram-se na  necessidade de mediação linguística para a existência de uma cultura, reforçando a defesa de que a cultura é uma característica intrinsecamente humana.[ref 5 Por outro lado, as ciências biológicas recorrem à uma abordagem mais inclusiva, que remonta uma ideia já antiga presente em Aristóteles, além dos primeiros evolucionistas como Wallace, Morgan e Baldwin, em que os animais teriam a capacidade de agregar novos componentes comportamentais ao seu repertório e que essas novas tradições aprendidas são uma fonte de comportamento adaptativo.ref 6  Nesta perspectiva a cultura em espécies não-humanas podem ser vistas como aprendizagem social de comportamentos, habilidades e vocalização que podem se apresentar de muitas maneiras, desde uma aproximação social em um local específico no qual os indivíduos aprendem de forma independente, conhecido como aprimoramento local, até uma observação minuciosa e replicação de ações de um parceiro da mesma espécie, conhecida como imitação. Sendo assim, para essa área do conhecimento a discussão não é se existe cultura em animais, mesmo que haja a discussão que apesar da importância da sociabilidade para o desenvolvimento interativo e cognitivo em espécies não humanas e as semelhanças cognitivas entre humanos e as outras espécies com inteligência social, não há registros robustos da produção e reprodução simbólica, componente essencial para a definição de cultura ref 7 , mas definir essa cultura, quais tipos de aprendizagem social a apoiam e como interpretar as variações comportamentais dentro de uma perspectiva de cultura limitada por um olhar antropocêntrico enviesado. (5)
 
==== O que consideramos cultura em animais? ====
Com a narrativa que está sendo construída até então, pode-se perceber que a definição exata de cultura em animais ainda não é certa, havendo diversas linhas de pensamento e argumentação. Para simplificar, pode-se apresentar e resumir, então, de forma mais objetiva as seguintes vertentes: 1- A cultura em animais seria proveniente de uma ‘biologia de tradições’ no qual padrões comportamentais distintos podem e devem ser compartilhados por dois ou mais indivíduos pertencentes a uma unidade social, sendo que esses padrões persistem ao longo do tempo e novos indivíduos podem adquirir parte desses padrões a partir de auxilio social ref 8 ; 2- O acúmulo de padrões comportamentais e tradições transmitidos por imitação ou ensino, que dependem de processos de aprendizagem e interação social de alto nível, gerando uma maior complexidade de ações ao longo do tempo ref 9 ; 3- Posse de múltiplas tradições que abrangem o domínio de mais de uma técnica, comportamento e costumes sociais [ref10].
 
==== Quais as dificuldades nesses estudos? ====
A problemática no estudo de cultura em animais se encontra principalmente no seu método, o método etnográfico, visto que busca isolar a variação cultural excluindo explicações alternativas para diferenças comportamentais, em vez de considerar uma interação completa entre genética, ecologia e cultura ref 6. O método etnográfico tenta demonstrar a influência de um fator, no caso a cultura, excluindo explicações alternativas, como a genética, ecologia e ou a aprendizagem social, ironicamente caso ela for aplicada de forma rigorosa, ela rejeitaria a maioria dos casos genuínos de cultura ref 6. Correlações entre variáveis ​​comportamentais e ecológicas são esperadas, sendo que a cultura é uma fonte de comportamento adaptativo, permitindo que animais aprendam e explorem os recursos ambientais. Do mesmo modo, a covariância cultural e genética, dado que parte do aprendizado animal é influenciado por pré-disposições e aptidões evolutivas ref 6.
 
Um problema conceitual do método etnográfico é a sua abordagem categórica, portanto o comportamento pode ser genético, ecológico ou cultural, essa ideia evoca o debate natureza-criação associado a visões polarizadas que são rejeitadas pelos desenvolvimentistas comportamentais ref 11. Claramente, os genes, a ecologia e o aprendizado influenciam o comportamento dos vertebrados, portanto, para identificar a variação cultural, não é suficiente apenas descartar a possibilidade de que a variação no comportamento constitua respostas não aprendidas a diferentes pressões de seleção, mas também é necessário considerar a possibilidade de variação genética precipitar diferentes padrões de aprendizagem ref 6. Mesmo que as diferenças entre os locais coincidam com as diferenças genéticas, isso não exclui a cultura. É concebível que espécies diferentes possam ter desenvolvido predisposições para aprender algumas associações mais prontamente do que outras, como o observado em macacos rhesus (Macaca Mulatta), que adquirem medo de cobra através da observação, porém, não são facilmente condicionados a temer outros objetos ref 12. Contudo, a detecção de covariáveis ​​genéticas continua a ser um problema para o método etnográfico que trata como cultural aquela variação de comportamento que permanece após a exclusão de fatores genéticos e ecológicos ref6.
 
=== Transmissão cultural ===
Independentemente de como a cultura é tratada ou definida, um componente indispensável que deve estar presente em todo grupo animal que admite-se ser detentor de cultura é o da transmissão cultural. Esta transmissão de comportamentos entre os diversos indivíduos componentes de um grupo, em geral, ocorre por meio de algum grau de aprendizagem social. Esta aprendizagem depende de adaptações sócio-cognitivas que permitem com que os indivíduos explorem os benefícios de seu mundo social, assim como lidar com aspectos hostis, a partir da interação com seus pares e aprendizado por meio de imitação ou modificação de algum comportamento.ref 13 Esta aprendizagem social, que pode ou não estar relacionada com técnicas de descoberta; curiosidade social; resolução de problemas sociais; inovação; flexibilidade; perícia social; jogo social; leitura de mente; e autoconsciência, permitem com que os indivíduos se tornem mais inteligentes e com comportamentos mais complexos ref 14, tornando a transmissão cultural como um fator que acompanha comportamentos específicos, manutenção e persistência desses comportamentos em determinadas populações.
 
=== Sociabilidade ===
A sociabilidade é um dos fatores indispensáveis para a existência e estabelecimento de uma cultura. Pode-se considerar a sociabilidade como uma resposta de sobrevivência às pressões evolutivas ref 15. Existem, na natureza, diversos graus de sociabilidade, desde padrões pré-sociais ref 16, subsociais, parassociais e eussociais ref 17. Destes, o último padrão é o reconhecido dentro dos animais conhecidos por possuir cultura. Tendo em vista a habilidade de transmissão cultural e o grau de sociabilidade presente nos grupos animais, pressupõem-se que existem formas de comunicação entre os indivíduos, seja de forma visual ou, como é bem estudado, por meio da transmissão de culturas vocais.
 
=== Culturas vocais ===
O termo aprendizado vocal  tem sido usado para descrever a influência da aprendizagem em uma variedade de diferentes aspectos da comunicação vocal, pode afetar a geração de sons, seu uso e sua compreensão. ref 18.
 
As culturas vocais podem ser encontradas em numerosos pássaros e mamíferos ref 19, 20, 21) e fornecem evidências para a transmissão cultural de características comportamentais no reino animal. Contudo, o aprendizado vocal ainda é visto como uma adaptação especial ref 22, 23, 24 e ainda não foi totalmente integrado às discussões da cultura animal. Isso ocorre principalmente porque os primeiros estudos sobre o aprendizado do canto dos pássaros enfatizaram a importância das fases sensíveis e a falta de flexibilidade depois que o canto se desenvolveu. Embora isso aconteça em algumas espécies de aves (por exemplo, tentilhões zebra Taeniopygia guttata), estudos demonstraram uma variedade notável de processos de aprendizagem, incluindo aprender quando usar um som copiado ref 25 e aprender uma nova música ao longo da vida  ref 19.
 
Existem muitos pássaros que parecem não ser nem mais nem menos geneticamente predispostos a aprender um canto do que um chimpanzé a aprender a usar uma ferramenta. Há uma diferença no fato de que o aprendizado vocal não ocorre em todas as espécies de aves, enquanto o aprendizado associativo geral pode ser encontrado em todos os vertebrados. ref 6
 
Estudos do canto da baleia jubarte Megaptera novaeangliae mostraram que todos os machos em uma população compartilham a mesma música a qualquer momento, mas a música muda gradualmente ao longo da temporada de canto ref 26, casos que podem ser usados ​​para investigar o significado e os mecanismos de transmissão cultural.
 
=== Evolução cultural em animais: ===
A evolução cultural se refere ao surgimento e formação de capacidades culturais, não apenas diferentes formas de aprendizagem social, mas também outras capacidades, como poderes de inovação comportamental, e suas consequências nas manifestações de tradições.  Por exemplo, a transmissão cultural por meio da aprendizagem social foi identificada em todas as classes de vertebrados. A aprendizagem social encontra-se bem estabelecida em alguns invertebrados também, notavelmente insetos.
A primeira evidência empírica significativa para a cultura animal surgiu em meados do século passado, incluindo a identificação de dialetos do canto dos pássaros ref 27, aprendizagem social do canto dos pássaros ref 28  e a identificação de novos comportamentos de processamento de alimentos por macacos japoneses ref 29.
 
Aproximadamente 2.000 espécies de pássaros são migratórias, migram entre criadouros sazonais e áreas de alimentação. Muitos acompanham seus pais nesses voos migratórios, mas posteriormente estes se tornam altamente comprometidos com os caminhos estabelecidos, não precisando do auxílio dos pais para a realização da migração ref 30, mostrando assim a transmissão cultural dessas rotas de migração. No entanto, em algumas espécies, os juvenis migram separadamente de seus pais, principalmente em cucos, sugerindo que essas aves devem ter outros meios para estabelecer suas rotas migratórias ref 31. Da mesma forma, as baleias jubarte juvenis e as baleias francas viajam inicialmente ao lado de suas mães em migrações de longa distância, adotando essas vias migratórias para o resto de suas vidas, novamente fornecendo evidências circunstanciais de transmissão cultural dessas rotas ref 32, 33.
 
Jovens orangotangos tendo a dieta igual a mãe, com a adoção cruzada entre espécies com tamanhos de tetas diferentes constatou-se que  os jovens correspondiam às preferências alimentares dos pais adotivos ref 34, 35.
 
=== Coevolução gene-cultura: ===
A coevolução gene-cultura é um fenômeno bem estabelecido em humanos. O exemplo mais conhecido é a tolerância à lactose caracterizando culturas baseadas em laticínios e não outras, mas casos diferentes são cada vez mais revelados conforme os dados genômicos se acumulam ref 36. A expressão “coevolução gene-cultura” implica que os dois sistemas de herança evoluem em conjunto, o que é muito plausível, dadas as evidências presentes, mas a causalidade bidirecional implícita da expressão carece de muitas evidências diretas, mesmo no caso humano. A maioria dos efeitos inferidos, sejam humanos ou animais, dizem respeito a como a cultura pode moldar a evolução de base genética. Por exemplo, estudos comparativos de primatas revelaram associações entre medidas de complexidade cultural, encefalização e a duração do período juvenil, sugerindo que a seleção favoreceu tais adaptações para facilitar a confiança de uma espécie na aquisição de extensas informações culturais ref 37, 38.