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== Cultura em animais ==
[[Ficheiro:Common chimpanzee (Pan troglodytes schweinfurthii) feeding.jpg|esquerda|miniaturadaimagem|Chimpanzé colhendo frutos para alimentação. ]]
Como visto anteriormente, o conceito de cultura sofre constantes mudanças ao longo do tempo conforme discussões entre os especialistas, principalmente das humanidades, são feitas e paradigmas são quebrados. A definição de cultura, portanto, está intimamente atrelada à episteme vigente, assim como no movimento de quebra de preconceitos e centralização, ou exaltação, da cultura para determinados grupos. A definição de cultura em si já é complexa e problemática nos grupos humanos, uma vez que por muito tempo a cultura era utilizada como um jogo de poder. Segundo Marilena Chauí, foi a partir do século XVIII que o sentido da cultura passou a ser intimamente ligado com a formação que os indivíduos recebiam, ou seja, um acúmulo de experiências socialmente validadas, como o acúmulo do saber escolar, o aprendizado histórico-artístico, relação com a música ou literatura erudita, entre outros. Essa definição implicava, necessariamente, que alguns indivíduos possuíam ou detinham certa cultura, ao passo que outros não, tudo isso sujeito às condições sociais impostas para valorizar certa parcela da população dominante sobre os dominados, bárbaros [ref 1]. Felizmente, para a espécie humana, este discurso, apesar de ainda persistente e utilizado por alguns, caiu em desuso e, a partir do século XX, uma visão antropológica de cultura ganhou espaço, passando a ver cultura como o modo de viver de uma comunidade, um grupo, uma sociedade, e é decorrente das relações materiais e simbólicas que as pessoas desenvolvem entre si, em um determinado território.
Entretanto, a discussão e definição sobre cultura está longe de chegar a um fim. Com a discussão sobre a cultura atingindo um discurso mais antropológico, buscando valorizar todos os grupos humanos, enquanto também age como uma característica que define a espécie, surge uma nova problemática que é definir cultura em outros grupos animais. Afinal, como os estudos até então realizados partem de uma perspectiva antropocêntrica e definidora dos grupos humanos, caso o conceito de cultura se aplicasse a outras espécies de animais, o que nos definiria como humanos? Qual seria nossa característica única? Sendo assim a discussão sobre as definições de cultura passaram de uma esfera de definição e soberania de grupos humanos, de popular versus erudito, para humanos versus outros animais.
Esta discussão não é trivial, uma vez que o fenômeno da cultura está intimamente ligado com o conceito abstrato de "inteligência", também muito caro para a espécie humana. Segundo a versão ontogenética do MIH (Inteligência Maquiavélica Hypothesis) [ref 2]., a cultura é o meio pelo qual pode-se tornar um indivíduo inteligente, ou seja, um ser que é criado e se desenvolve em um meio com cultura acumulada pode enriquecer e aprimorar as maneiras com que lida com o mundo ao seu redor. Como exemplo tem-se que, se for comparada uma pessoa que foi educada contemporaneamente com outra que foi educada cerca de 20 milênios atrás, porém com capacidade cerebral equivalente, teremos que o primeiro indivíduo poderia ser considerado mais inteligente devido ao acúmulo do conhecimento e cultura acerca das técnicas existentes atualmente [ref 3]. Sendo assim, as espécies dotadas de cultura possuiriam meios capazes de selecionar características específicas de inteligência, formando associações indissociáveis entre cultura e desenvolvimento de inteligência. Sendo assim, reconhecer a cultura em espécies não-humanas exige reconhecer também a inteligência dessas espécies, admitindo que características antes consideradas como exclusivas do Homo sapiens não são assim tão exclusivas e não os tornam tão especiais. Essa visão será alvo de intensa discussão e resistência por parte de muitos pesquisadores por muito tempo.
 
É possível, na opinião de alguns cientistas, identificar uma "espécie de cultura" em alguns animais superiores, especialmente mamíferos (e dentro destes, especialmente primatas). De acordo com Andrew Whiten, Kathy Schick e Nichobs Tolh, os chimpanzés possuem um rico repertório de ferramentas (clavas, perfuradores etc.).<ref />A técnica de produção de ferramentas, além de sua forma de uso, é ensinada de geração em geração entre os chimpanzés. Algo semelhante ocorre com os primatas Bonobos.<ref>Andrew Whiten; "Primate social learning,traditions and culture"; The Evolution ofPrimate Societies; J Mitani, J Call, P Kappeler,R Palombit, J Silk (ed);</ref>
Atualmente, a cultura pode ser delineada de múltiplas formas distintas a depender da disciplina acadêmica em questão.[ref 4] Por um lado, existem antropólogos que agarram-se na  necessidade de mediação linguística para a existência de uma cultura, reforçando a defesa de que a cultura é uma característica intrinsecamente humana.[ref 5 Por outro lado, as ciências biológicas recorrem à uma abordagem mais inclusiva, que remonta uma ideia já antiga presente em Aristóteles, além dos primeiros evolucionistas como Wallace, Morgan e Baldwin, em que os animais teriam a capacidade de agregar novos componentes comportamentais ao seu repertório e que essas novas tradições aprendidas são uma fonte de comportamento adaptativo.ref 6  Nesta perspectiva a cultura em espécies não-humanas podem ser vistas como aprendizagem social de comportamentos, habilidades e vocalização que podem se apresentar de muitas maneiras, desde uma aproximação social em um local específico no qual os indivíduos aprendem de forma independente, conhecido como aprimoramento local, até uma observação minuciosa e replicação de ações de um parceiro da mesma espécie, conhecida como imitação. Sendo assim, para essa área do conhecimento a discussão não é se existe cultura em animais, mesmo que haja a discussão que apesar da importância da sociabilidade para o desenvolvimento interativo e cognitivo em espécies não humanas e as semelhanças cognitivas entre humanos e as outras espécies com inteligência social, não há registros robustos da produção e reprodução simbólica, componente essencial para a definição de cultura ref 7 , mas definir essa cultura, quais tipos de aprendizagem social a apoiam e como interpretar as variações comportamentais dentro de uma perspectiva de cultura limitada por um olhar antropocêntrico enviesado. (5)
 
A existência da produção de cultura material e transmissão desta cultura socialmente é, dentro de algumas concepções de cultura, suficiente para afirmar que primatas possuem cultura. No entanto, percebem-se diferenças na forma como a cultura existe entre os primatas. É consenso entre os antropólogos que caracterizar culturas entre "superiores" e "inferiores" é uma impropriedade científica, já que não existem critérios objetivos para realizar esta diferenciação. Portanto, a diferença entre a cultura humana e a cultura dos primatas deve ser entendida em outros termos. A grande diferença, do ponto de vista antropológico, entre essas duas manifestações culturais, é que, entre os primatas, não ocorre o chamado "efeito catraca", isto é, os primatas não somam inovações tecnológicas para produzir produtos tecnologicamente mais complexos. O processo de difusão da cultura entre primatas ainda está sendo estudado.<ref>A Whiten; "Social learning in apes";Encyclopedia of Animal Behaviour; M Breed, JMoore (ed); Elsevier Academic Press</ref>
==== O que consideramos cultura em animais? ====
Com a narrativa que está sendo construída até então, pode-se perceber que a definição exata de cultura em animais ainda não é certa, havendo diversas linhas de pensamento e argumentação. Para simplificar, pode-se apresentar e resumir, então, de forma mais objetiva as seguintes vertentes: 1- A cultura em animais seria proveniente de uma ‘biologia de tradições’ no qual padrões comportamentais distintos podem e devem ser compartilhados por dois ou mais indivíduos pertencentes a uma unidade social, sendo que esses padrões persistem ao longo do tempo e novos indivíduos podem adquirir parte desses padrões a partir de auxilio social ref 8 ; 2- O acúmulo de padrões comportamentais e tradições transmitidos por imitação ou ensino, que dependem de processos de aprendizagem e interação social de alto nível, gerando uma maior complexidade de ações ao longo do tempo ref 9 ; 3- Posse de múltiplas tradições que abrangem o domínio de mais de uma técnica, comportamento e costumes sociais [ref10].
 
Além da produção de ferramentas, os chimpanzés apresentam comportamentos diferentes conforme as sociedades estudadas. O famoso grooming, por exemplo, é diferente de sociedade para sociedade. É comprovado, também, que diferentes sociedades de chimpanzés apresentam formas de vocalização únicas às suas populações.<ref>Clark Spencer Larsen.«Acquiring resourcesand transmitting Knwoledge: got culture?» (<nowiki>http://books.google.com.br/books?id=N8-tRAAACAAJ&dq=our+origins&hl=pt-br&ei=nQ__TPCfNYX6lwebzcmdCA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CCIQ6AEwAA</nowiki>)</ref>{{Referências|col=2}}
==== Quais as dificuldades nesses estudos? ====
A problemática no estudo de cultura em animais se encontra principalmente no seu método, o método etnográfico, visto que busca isolar a variação cultural excluindo explicações alternativas para diferenças comportamentais, em vez de considerar uma interação completa entre genética, ecologia e cultura ref 6. O método etnográfico tenta demonstrar a influência de um fator, no caso a cultura, excluindo explicações alternativas, como a genética, ecologia e ou a aprendizagem social, ironicamente caso ela for aplicada de forma rigorosa, ela rejeitaria a maioria dos casos genuínos de cultura ref 6. Correlações entre variáveis ​​comportamentais e ecológicas são esperadas, sendo que a cultura é uma fonte de comportamento adaptativo, permitindo que animais aprendam e explorem os recursos ambientais. Do mesmo modo, a covariância cultural e genética, dado que parte do aprendizado animal é influenciado por pré-disposições e aptidões evolutivas ref 6.
 
Um problema conceitual do método etnográfico é a sua abordagem categórica, portanto o comportamento pode ser genético, ecológico ou cultural, essa ideia evoca o debate natureza-criação associado a visões polarizadas que são rejeitadas pelos desenvolvimentistas comportamentais ref 11. Claramente, os genes, a ecologia e o aprendizado influenciam o comportamento dos vertebrados, portanto, para identificar a variação cultural, não é suficiente apenas descartar a possibilidade de que a variação no comportamento constitua respostas não aprendidas a diferentes pressões de seleção, mas também é necessário considerar a possibilidade de variação genética precipitar diferentes padrões de aprendizagem ref 6. Mesmo que as diferenças entre os locais coincidam com as diferenças genéticas, isso não exclui a cultura. É concebível que espécies diferentes possam ter desenvolvido predisposições para aprender algumas associações mais prontamente do que outras, como o observado em macacos rhesus (Macaca Mulatta), que adquirem medo de cobra através da observação, porém, não são facilmente condicionados a temer outros objetos ref 12. Contudo, a detecção de covariáveis ​​genéticas continua a ser um problema para o método etnográfico que trata como cultural aquela variação de comportamento que permanece após a exclusão de fatores genéticos e ecológicos ref6.
 
==== Transmissão cultural ====
Independentemente de como a cultura é tratada ou definida, um componente indispensável que deve estar presente em todo grupo animal que admite-se ser detentor de cultura é o da transmissão cultural. Esta transmissão de comportamentos entre os diversos indivíduos componentes de um grupo, em geral, ocorre por meio de algum grau de aprendizagem social. Esta aprendizagem depende de adaptações sócio-cognitivas que permitem com que os indivíduos explorem os benefícios de seu mundo social, assim como lidar com aspectos hostis, a partir da interação com seus pares e aprendizado por meio de imitação ou modificação de algum comportamento.ref 13 Esta aprendizagem social, que pode ou não estar relacionada com técnicas de descoberta; curiosidade social; resolução de problemas sociais; inovação; flexibilidade; perícia social; jogo social; leitura de mente; e autoconsciência, permitem com que os indivíduos se tornem mais inteligentes e com comportamentos mais complexos ref 14, tornando a transmissão cultural como um fator que acompanha comportamentos específicos, manutenção e persistência desses comportamentos em determinadas populações.
 
==== Sociabilidade ====
A sociabilidade é um dos fatores indispensáveis para a existência e estabelecimento de uma cultura. Pode-se considerar a sociabilidade como uma resposta de sobrevivência às pressões evolutivas ref 15. Existem, na natureza, diversos graus de sociabilidade, desde padrões pré-sociais ref 16, subsociais, parassociais e eussociais ref 17. Destes, o último padrão é o reconhecido dentro dos animais conhecidos por possuir cultura. Tendo em vista a habilidade de transmissão cultural e o grau de sociabilidade presente nos grupos animais, pressupõem-se que existem formas de comunicação entre os indivíduos, seja de forma visual ou, como é bem estudado, por meio da transmissão de culturas vocais.
 
==== Culturas vocais ====
O termo aprendizado vocal  tem sido usado para descrever a influência da aprendizagem em uma variedade de diferentes aspectos da comunicação vocal, pode afetar a geração de sons, seu uso e sua compreensão. ref 18.
 
As culturas vocais podem ser encontradas em numerosos pássaros e mamíferos ref 19, 20, 21) e fornecem evidências para a transmissão cultural de características comportamentais no reino animal. Contudo, o aprendizado vocal ainda é visto como uma adaptação especial ref 22, 23, 24 e ainda não foi totalmente integrado às discussões da cultura animal. Isso ocorre principalmente porque os primeiros estudos sobre o aprendizado do canto dos pássaros enfatizaram a importância das fases sensíveis e a falta de flexibilidade depois que o canto se desenvolveu. Embora isso aconteça em algumas espécies de aves (por exemplo, tentilhões zebra Taeniopygia guttata), estudos demonstraram uma variedade notável de processos de aprendizagem, incluindo aprender quando usar um som copiado ref 25 e aprender uma nova música ao longo da vida  ref 19.
 
Existem muitos pássaros que parecem não ser nem mais nem menos geneticamente predispostos a aprender um canto do que um chimpanzé a aprender a usar uma ferramenta. Há uma diferença no fato de que o aprendizado vocal não ocorre em todas as espécies de aves, enquanto o aprendizado associativo geral pode ser encontrado em todos os vertebrados. ref 6
 
Estudos do canto da baleia jubarte Megaptera novaeangliae mostraram que todos os machos em uma população compartilham a mesma música a qualquer momento, mas a música muda gradualmente ao longo da temporada de canto ref 26, casos que podem ser usados ​​para investigar o significado e os mecanismos de transmissão cultural.
 
==== Evolução cultural em animais ====
A evolução cultural se refere ao surgimento e formação de capacidades culturais, não apenas diferentes formas de aprendizagem social, mas também outras capacidades, como poderes de inovação comportamental, e suas consequências nas manifestações de tradições.  Por exemplo, a transmissão cultural por meio da aprendizagem social foi identificada em todas as classes de vertebrados. A aprendizagem social encontra-se bem estabelecida em alguns invertebrados também, notavelmente insetos.
A primeira evidência empírica significativa para a cultura animal surgiu em meados do século passado, incluindo a identificação de dialetos do canto dos pássaros ref 27, aprendizagem social do canto dos pássaros ref 28  e a identificação de novos comportamentos de processamento de alimentos por macacos japoneses ref 29.
 
Aproximadamente 2.000 espécies de pássaros são migratórias, migram entre criadouros sazonais e áreas de alimentação. Muitos acompanham seus pais nesses voos migratórios, mas posteriormente estes se tornam altamente comprometidos com os caminhos estabelecidos, não precisando do auxílio dos pais para a realização da migração ref 30, mostrando assim a transmissão cultural dessas rotas de migração. No entanto, em algumas espécies, os juvenis migram separadamente de seus pais, principalmente em cucos, sugerindo que essas aves devem ter outros meios para estabelecer suas rotas migratórias ref 31. Da mesma forma, as baleias jubarte juvenis e as baleias francas viajam inicialmente ao lado de suas mães em migrações de longa distância, adotando essas vias migratórias para o resto de suas vidas, novamente fornecendo evidências circunstanciais de transmissão cultural dessas rotas ref 32, 33.
 
Jovens orangotangos tendo a dieta igual a mãe, com a adoção cruzada entre espécies com tamanhos de tetas diferentes constatou-se que  os jovens correspondiam às preferências alimentares dos pais adotivos ref 34, 35.
 
==== Coevolução gene-cultura ====
A coevolução gene-cultura é um fenômeno bem estabelecido em humanos. O exemplo mais conhecido é a tolerância à lactose caracterizando culturas baseadas em laticínios e não outras, mas casos diferentes são cada vez mais revelados conforme os dados genômicos se acumulam ref 36. A expressão “coevolução gene-cultura” implica que os dois sistemas de herança evoluem em conjunto, o que é muito plausível, dadas as evidências presentes, mas a causalidade bidirecional implícita da expressão carece de muitas evidências diretas, mesmo no caso humano. A maioria dos efeitos inferidos, sejam humanos ou animais, dizem respeito a como a cultura pode moldar a evolução de base genética. Por exemplo, estudos comparativos de primatas revelaram associações entre medidas de complexidade cultural, encefalização e a duração do período juvenil, sugerindo que a seleção favoreceu tais adaptações para facilitar a confiança de uma espécie na aquisição de extensas informações culturais ref 37, 38.
 
=== 1. Cultura em Chimpanzé ===
 
==== Chimpanzés têm cultura? ====
Os chimpanzés são considerados os primatas não-humanos mais estudados até o presente [ref 1]. Diferentes autores propõem que padrões de comportamento socialmente transmitidos podem ser chamados de culturais [ref 2, 3], diferindo as culturas humanas das não humanas pela capacidade de reter comportamentos por gerações (também conhecido como efeito cumulativo) [ref. 4]. Diretamente, cultura de chimpanzé é definida como variações de comportamentos, cuja causa não é estritamente genética, nem ecológica [ref. 5]. Por isso, para os antropólogos, os fenômenos registrados, quantificados e definidos pela maioria dos primatólogos como cultura não correspondem às concepções antropológicas de cultura. Mesmo apenas sob uma perspectiva, como a evolutiva, há diferentes pontos de vista quando se trata de pensar em semelhanças e diferenças entre humanos e chimpanzés.
 
Alguns antropólogos adotaram seis critérios para identificar a cultura: inovação, disseminação, padronização, durabilidade, difusão e tradição [ref. 6].. A estes fatores, McGrew e Tutin (1978) [ref. 7] acrescentaram a não-subsistência (comportamentos não associados à sobrevivência) e a naturalidade (comportamento não estimulado por influência humana). Assim, embora até então nenhuma população de chimpanzés apresente todas essas características simultaneamente, cada critério corresponde a dados sobre o comportamento que merecem ser considerados [ref. 6]. Alguns primatólogos mundialmente reconhecidos por suas pesquisas com chimpanzés [ref. 8;9; 10; 11; 12] têm afirmado que o questionamento sobre a validade do termo ‘cultura’ para definir os padrões variantes de comportamento entre chimpanzés selvagens é baseado exclusivamente em antropocentrismo, então, a afirmação de cultura em chimpanzés vai variar de acordo com a literatura.
 
Além disso, atualmente, o que parece ser muito valorizado em relação ao comportamento de chimpanzés, frente a outras espécies, são dois aspectos centrais: a ‘variação’ e a ‘transmissão’ [ref. 13, 14]. Ainda, chama-se atenção também para os arranjos singulares de cada conjunto de comportamentos que particulariza cada grupo como único [ref. 12], como ocorre entre culturas humanas. Esses aspectos, às vezes, são observados juntas e relacionadas; e em alguns estudos, são tidos como fenômenos distintos em termos de impacto e importância [ref. 4]. Há algumas décadas, foi ressaltado que os chimpanzés aprendem, mas não ensinam porque não elaboram e não transmitem conceitos abstratos [ref. 16]. Entre eles, estão o aprendizado imitativo, a conformidade às normas, às repetições entre outros. Sendo que nesse grupo, cada um desses aspectos parece evoluir devido aos benefícios que eles oferecem aos indivíduos e não ao coletivo[ref. 17].
 
Um estudo sistemático que avaliou cerca de 150 anos de observações identificou 39 variantes culturais que eram habituais ou costumeiras em pelo menos uma comunidade de chimpanzé. Este é um número sem precedentes de variantes para todas as sociedades, exceto as humanas [ref. 17, 18,19]. Múltiplas tradições foram identificadas apenas em chimpanzés e humanos e isso, segundo muitos primatologistas, marca a diferença entre culturas humanas e de chimpanzés e outras tradições animais, como os macacos prego [ref. 21] entre outros [ref. 9; 12]. Na verdade, a maioria dos estudos que identificam as tradições dos animais tendem a relatar apenas uma. Essa análise para chimpanzés também abrangeu amplamente o repertório comportamental da espécie, incorporando técnicas de forrageamento; uso de ferramentas para alimentação, conforto, higiene e comunicação; e comportamentos sociais e sexuais [ref. 21].
 
Dean e colaboradores (2012) [ref. 22] chegaram a conclusões semelhantes ao comparar os conjuntos de habilidades sociocognitivas de crianças humanas, chimpanzés e macacos-prego. Eles verificaram que há distinções fundamentais entre os grupos no que tange a capacidade de ensinar predominantemente por instrução verbal, imitação e pró-sociabilidade ou altruísmo. Assim, enquanto para chimpanzés e macacos-prego interagir com os aparatos usados nos testes de laboratório significa procurar recursos favoráveis a eles mesmos, para os humanos esses dois fatores foram fundamentais para promover uma performance de alto nível que os pesquisadores associam diretamente à capacidade cumulativa da cultura humana que seria o maior diferencial entre as culturas humanas e as culturas de outros animais [ref. 22, 23].
 
Pensando nas variedades de comportamentos de chimpanzés, um dos fenômenos predominantemente enfatizado nas análise das variantes dos comportamentos é a produção e o uso de ferramentas, sendo que já foram relatados cerca de 20 tipos em cada grupo [ref. 4], [ref. 24].
 
==== Ferramentas ====
A descoberta da fabricação e do uso de ferramentas por chimpanzés foi um dos achados mais relevantes do século XX.  Ela também oferece fortes evidências acerca da variabilidade de comportamentos, num formato materializado [ref. 4], que possibilita a exploração paleoantropológica, que, além dos ossos, busca, nas ferramentas, indícios para gerar modelos sobre comportamento [ref. 25,26, 27]. Muitos primatólogos chamam de ‘cultura material’ a produção e o uso de ferramentas por chimpanzés, bem como as variações intergrupais desses padrões [ref. 8, 28, 29, 30]. Foi observado que a dispersão no uso de ferramentas depende das condições de forrageamento, de inteligência e de tolerância social [ref. 31]. Eles classificam pelo menos seis formas distintas de uso de ferramentas por primatas, como: “intimidação de predadores ou rivais”, “ferramentas de uso defensivo”, “caça” (só por hominídeos), “display social”, “limpeza de partes do corpo”, “extração de insetos, de produtos de insetos” ou “quebra de castanhas” [ref. 31].
 
Estudos experimentais recentes com chimpanzés selvagens podem ser relevantes para elucidar essas descobertas, como por exemplo: alguns pesquisadores perfuraram buracos pequenos demais para dedos de chimpanzés em troncos caídos e preenchidos com mel em duas comunidades de chimpanzés em diferentes partes de Uganda. Chimpanzés nas comunidades de Kanyawara costumam usar ferramentas de bastão para extrair vários recursos, mas o uso de ferramentas de bastão está ausente no repertório do segundo grupo de Budongo, que utilizou outros materiais como ferramenta, incluindo folhas mastigadas como esponjas para tirar a água dos buracos naturais [ref. 17; 32]. Assim, estudos de Van Schaik e Pradhan (2003) mostram que o uso de ferramentas por chimpanzés selvagens é uma expressão de cultura, no sentido de tradição, pois está associada à rotina e é, geralmente, amplamente difundida na população [ref. 33].
 
==== Cativeiro x Selvagem ====
Os Chimpanzés são animais dotados de admirável inteligência, angariando um elevado número de pesquisadores interessados na realização de estudos relacionados aos desdobramentos de suas capacidades cognitivas, sendo uma das mais investigadas a existência de cultura. Essas pesquisas realizadas apresentam duas vertentes muito bem definidas pelos diferentes contextos de estudo, havendo uma clara distinção dos estudos realizados com esses animais em campo (animais selvagens) e em cativeiro [Ref 1]. A principal discussão entre autores dessas pesquisas está ao entorno da ideia de que apenas chimpanzés selvagens possuem cultura e chimpanzés de cativeiro são “enculturados (Ref 2).
 
As capacidades cognitivas e sociais dos chimpanzés apresentam uma forte influência das relações de convivência em grupo e do meio ambiental ao qual está imerso.(Ref 3) Assim, havendo uma concordância de que chimpanzés selvagens e chimpanzés nascidos em cativeiro apresentam significativas diferenças, devido essas variáveis estarem diretamente ligadas ao processo de aprendizado desses animais (Ref 4).As pesquisas realizadas com animais de cativeiro defendem que apenas esse ambiente controlado é capaz de manipular as variáveis de forma necessária para a realização de experimentos capazes de detectar a existência de aprendizado e cultura (Ref 5). Em contrapartida os estudos realizados em campo afirmam que apenas o contexto ambiental fornecido pela natureza é capaz de proporcionar registros fidedignos ao real comportamentos dos chimpanzés. (Ref 6)
 
Atualmente, a discordância sobre o estabelecimento de cultura em chimpanzés ainda persiste, uma vez que para estudá-la é necessário compreender comportamentos caracterizados pela variabilidade decorrente do aprendizado ou transmissão entre os indivíduos (Ref 7)(Ref 8). Nota-se que as pesquisas com viés de campo apresentam maior enfoque nas variabilidades comportamentais existentes entre grupos selvagens (Ref 9), que apresentam complexa dinâmica social, com a existência de um conjunto de comportamentos e ações únicos a cada população (Ref 10) (Ref 11) (Ref 12). Já pesquisas realizadas em cativeiro (“laboratório”) apresentam tendência em investigar a cognição e transmissão de comportamento nesses animais (Ref 13).
 
==== Início das pesquisas primatológicas à conservação ====
Pesquisas com primatas não humanos começaram a ter mais atenção a partir do surgimento da ideia de que esses animais poderiam produzir cultura (Ref 14). Durante o século xx as áreas da primatologia e antropologia  tiveram um grande desenvolvimento em pesquisas voltadas para o estabelecimento de cultura em animais não humanos, mais especificamente em chimpanzés selvagens (vivem na natureza) (Ref 3). Nesse período tivemos a contribuição científica de grandes nomes da primatologia como Jane Goodall, Christopher Boesch e Toshisada Nishida (Ref 15), que focaram suas pesquisas em estudos de campo com foco em observações sociais e comportamentais de chimpanzés selvagens para propor a existência de cultura nesses animais. Um dos estudos mais relevantes para a corroboração dessa ideia tinha foco nas  variações existentes na prática de groominge (Imagem x) e groominghandclasp (Imagem y) entre populações distintas de chimpanzés selvagens (Ref 16)
 
Atualmente com o legado das históricas pesquisas primatológicas temos uma grande gama de estudos relacionados ao estabelecimento de cultura em chimpanzés, com dados sobre produção e uso de ferramentas, comportamentos sociais, formas de comunicação e capacidades cognitivas. Porém, mesmo com todas essas pesquisas existentes e apoio de grande parte dos primatólogos, ainda  existem muitos debates em torno da ideia da existência de cultura em chimpanzés  (Ref 17) (Ref 18).
 
Levando-se em consideração a ideia da existência de cultura em chimpanzés e estudos desses animais em campo, surgiu uma preocupação com a preservação dessa espécie na natureza. Pois, sabe-se que na natureza os chimpanzés vivem em grupo e dentro dessas organizações existe um regime coletivo hierárquico de atribuição de funções. Assim, a perda de um único chimpanzé além de acarretar na contribuição para o desaparecimento da espécie, também implicaria na desestruturação de toda a rede social do grupo e consequentemente na perda de cultura (Ref 19) (Ref 20).
 
=== 2. Cultura em macacos ===
 
==== Uso de ferramenta ====
Um dos comportamentos mais impressionantes envolvendo o aprendizado social em macacos é o uso de ferramentas. Os macacos-prego da espécie Sapajus libidinosus utilizam ferramentas para diversas funções, incluindo o processamento de alimentos que são relativamente duros, como sementes e cocos [ref 1, 2, 3, 4 e 5]. No Parque Nacional da Serra da Capivara (Piauí, Brasil) é comum observar os macacos-pregos usando pedras, de larguras variadas (desde cerca 2,5 centímetros até aproximadamente o tamanho de um punho humano), como martelo para quebrar a casca dura das castanhas-de-caju [ref 6]. O animal ergue a pedra a fim de forçá-la contra o alimento, o qual está apoiado sobre uma pedra, raiz ou galho, que atua como bigorna (isto é, que serve como uma superfície de apoio, podendo ser útil também para o alimento não escorregar) [ref 3].É um processo muito complexo, pois envolve a seleção de uma pedra adequada para a tarefa (o tipo, a forma e o peso da pedra), o tipo de bigorna, ter noção da força que deve ser aplicada conforme o tipo e o tamanho da ferramenta e do alimento, o movimento corporal adequado, entre outras coisas. [ref 6 e 7].
 
Esse comportamento, aparentemente, é transmitido por meio de processos de aprendizagem social [ref 8]. Provavelmente, o fato de apresentarem uma tolerância social notavelmente alta, tenha favorecido o aprendizado, no sentido de que os indivíduos mais velhos realizam o comportamento tolerando a presença dos juvenis observadores ao seu redor, embora os juvenis possam ter sido atraídos pelo alimento, e não pela atividade em si [ref 8 e 9].
 
Um estudo realizado no mesmo parque demonstrou que esses macacos-pregos utilizam pedras como ferramentas há pelo menos três mil anos. Isto é considerado o primeiro exemplo de variação de longo prazo no uso de ferramentas fora da linhagem humana [ref 6]. E mais, demonstraram também que houve uma variação no tamanho das pedras utilizadas conforme o tempo, isto é, as pedras mais antigas utilizadas pelos macacos-pregos das gerações anteriores são menores do que as mais recentes. Provavelmente está associado aos diferentes tipos de recursos alimentares explorados,  os quais variam quanto à dureza ou à resistência [ref 10, 11 e 12].
 
=== 3. Cultura em cetáceos ===
 
==== Cetáceos: modelo interessante para o estudo da cultura animal ====
Os cetáceos (subordem Cetacea) correspondem aos popularmente conhecidos como baleias e golfinhos, que são, respectivamente, os misticetos (infraordem Mysticeti) e os odontocetos (infraordem Odontoceti). Os cetáceos podem ser um modelo interessante para se estudar a cultura animal [ref 1]. Características biológicas como a longevidade, a complexidade de seus sistemas sociais e de suas habilidades cognitivas, além do cuidado parental prolongado, podem favorecer no processo de aprendizagem social [ref 2, 3, 4 e 5]. Ademais, o estudo de animais aquáticos possibilita análises comparativas em relação aos animais terrestres, visto que os ambientes são extremamente distintos [ref 1]. Os ecossistemas marinhos são mais propensos a mudanças [ref 6] e essa variabilidade ambiental está associada aos benefícios proporcionados pela transmissão cultural - em contraste com o aprendizado individual ou a determinação genética [ref 7, 8 e 9] -, o que pode favorecer a adaptabilidade da cultura nos cetáceos. Em suma, a estrutura do meio marinho pode ter favorecido a evolução da transmissão cultural nos cetáceos [ref 10].
 
A transmissão cultural, da perspectiva etnográfica, pode ser definida como a transmissão de padrões comportamentais que não pode ser explicada via aprendizagem individual ou via bases genéticas e/ou ambientais [ref 1, 11, 12, 13 e 14]. Apesar das restrições e dificuldades práticas de se estudar cetáceos em seu ambiente natural, como as largas escalas espaciais que ocupam e o fato de permanecerem majoritariamente submersos (fora de vista), atualmente há muitas evidências notavelmente fortes que, juntas, demonstram a existência de comportamentos em cetáceos que, provavelmente, são mantidos e transmitidos culturalmente [ref 1 e 15].
 
==== Comportamentos transmitidos culturalmente em cetáceos ====
A transmissão de comportamentos complexos pode estar relacionada ao processo de aprendizagem social, o qual pode ser vertical (dos parentais à prole, por exemplo da mãe para o seu filhote), horizontal (entre indivíduos da mesma geração, por exemplo entre irmãos) ou oblíqua (dos indivíduos da geração mais velha para a geração mais nova, exceto entre parentais e sua prole, por exemplo da “tia” para “sobrinha”)  [ref 16].
 
A seguir, serão apresentados alguns dos comportamentos transmitidos culturalmente em cetáceos mais notáveis e estudados no meio acadêmico.
 
===== Alimentação =====
 
 
Estratégia do “lobtail”
 
As baleias-jubarte adquiriram uma nova técnica para capturar o seu alimento, conhecida como a técnica do “lobtail” (nadadeira caudal). Aparentemente, o “lobtail” é uma modificação da técnica da “nuvem de bolha”, que já é bastante conhecida. No “lobtail” os indivíduos batem os lóbulos de suas nadadeiras caudais na superfície da água, provocando uma perturbação na água e nos peixes, mergulhando em seguida para capturá-los [ref 17, 18, 19]. Um estudo analisou a porcentagem de indivíduos que utilizaram essa técnica e os resultados mostram que houve um aumento acelerado dessa porcentagem ao longo dos anos, caracterizando um forte indício da influência do aprendizado social [ref 17 e 20].
 
 
Estratégia do “sponging”
 
Os golfinhos-nariz-de-garrafa (Tursiops sp., da infraordem Odontoceti) de Shark Bay, Austrália Ocidental, adotaram um novo método de forragear utilizando esponjas como ferramenta. Nesta técnica, o golfinho quebra parte de uma esponja marinha e a posiciona na ponta de seu rostro (“boca”, no vocabulário popular) com a finalidade de, aparentemente, sondar o substrato e desentocar os peixes [ref 23, 24 e 25].
 
Estudos mostram que os golfinhos-nariz-de-garrafa apresentam habilidades cognitivas e imitativas complexas (tanto imitação vocal quanto motora), além da capacidade de aprendizado social [ref 26, 27, 28, 29, 30, 31]. Ao que tudo indica, o “sponging” é transmitido culturalmente, e parece não envolver componentes ambientais ou genéticos [ref 22]. A transmissão dos comportamentos ocorre principalmente no desenvolvimento inicial dos golfinhos, período crítico para a aquisição das habilidades de forrageamento. No entanto, mesmo os juvenis machos e fêmeas passando tempos similares ao lado de suas mães, registros indicam que, praticamente, apenas as fêmeas apropriaram-se dessa técnica do “sponging” [ref 22]. Isso significa que a manifestação desse comportamento é influenciado pelo sexo dos indivíduos, voltado especificamente às fêmeas [ref 19]. Além disso, indivíduos que utilizam essa técnica e aqueles que não a utilizam convivem no mesmo habitat de forrageio, indicando que não se deve a diferenças ecológicas [ref 19]. O único outro mecanismo de transmissão possível do “sponging” - segundo as informações obtidas até então - é a transmissão cultural dentro de um sistema matrilinear, em que as filhas aprendem com as suas mães [ref 22]. Um fato interessante que fundamenta a transmissão vertical no sistema matrilinear é a evidência de uma relação genética entre todas as fêmeas que utilizam o “sponging”, sugerindo que todas são descendentes da primeira fêmea que deu origem ao “sponging” [ref 22].
 
 
 
 
 
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== Ver também ==