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A classe daqueles homens que pode retirar-se ao campo e viver comodamente sem aparato e luxo pode, se quiser, não invejar a magnificência dos potentados da corte. As tapeçarias e regalos que lhes subministra a Natureza, nas árvores, nos prados, nos campos, nos armentios, se ele souber pôr freio à cobiça e vãos desejos, mais o satisfazem que todo o tresloucado luxo dos habitantes da imensa capital. Vivem os homens do campo, não se pode negar, na solidão; mas esta é adoçada com um admirável sossego e paz interna não perturbada de murmurações, de contrariedades, de notícias desgostosas, de vícios, desordens e perigos de que abunda uma grossa população. Assim o entendia um dos melhores julgadores que tiveram a Antiguidade e a filosofia, Horácio: assim mesmo o entendem todos aqueles que fazem bom uso do talento que a Natureza lhes dera. O ponto está em ajustarmos bem e termos mão em nossas cabeças, que às vezes com tanta facilidade para todas as partes se volvem. Então não é precisa muita fadiga para conhecer que é ter juízo contentar-se com pouco, privilégio que foi concedido a raros, porque anexamos uma ideia muito grande de ventura à posse de certos bens, os quais não merecem tanto apreço de nossos corações, nem nos devemos amargurar quando deles vivemos privados. Sei que perderia o trabalho se quizera persuadir a não poucos que se contentem com o próprio estado, que não desejem riquezas ainda que com estas se podessem conseguir certos prazeres que se não podem esperar no centro da penúria: mas sempre será verdade que o sábio, ainda que pobre, se souber usar do raciocínio, poderá ter o ânimo tranquilo, e por isto chamar-se a si mesmo não desgraçado, mas venturoso. Eu não vos digo que seja um grande atentado desejar as riquezas; mas sempre insisto que é um grande desvario desejá-las com afinco e inquietação; porque então se torna mais tormentosa e intolerável a pobreza com estes sempre inquietos desejos, que não dão tréguas ao coração do miserável avarento. Não está em nossa mão adquirir riquezas, mas está em nossa mão que estas riquezas que não podemos conseguir nos não roubem o sossego.
 
Em outro desvario damos não poucas vezes: foi para connosco liberal a fortuna, atulhou nossas casas de seus bens, e chegamos com sua posse a nadar num oceano de delícias; mas é tal nossa miséria ou inconstância que as não prezamos ou estimamos por isso mesmo que as possuimospossuímos: seu aturado uso diminui em nosso entendimento sua natural impressão. Pelo contrário, nossos olhos, nossas reflexões, e até nossos desejos, correm após os bens que os outros gozam, e só esses nos parecem felizes, só esses nos parecem mimosos da ventura, ou bem olhados da providência que dirige e que governa o mundo. Pelo contrário, o homem de sizosiso, sem gastar um pensamento após do que outro goza, e ele não pode haver, nem gozar, cuida só no pouco ou no muito que a fortuna lhe há dado; disto goza, e este mesmo pouco lhe parece mais do que se devia a seu merecimento. Os bens alheios são para nós males verdadeiros, quando possuídos pelos outros servem só de nos inquietar. Confrontamo-nos com estes a que chamamos ditosos, e esta confrontação nos faz parecer nosso estado miserável e infeliz. Ajunta-se a toda esta desgraça imaginária a inveja muito real – paixão bem diversa de todas as outras, as quais bem refreadas e governadas podem servir de ministras à virtude. A inveja é de sua natureza sempre maligna, sempre contrária à virtude; é surda e feroz atormentadora de quem lhe dá entrada no coração. E quanto anda derramada pelo mundo esta mortífera peste! Tanto falar dos que nos são superiores e avantajados e buscar com o microscópio todos seus defeitos, por certo não é este o efeito do bom zelo, é o parto da inveja. Sofremos mal que tantos gozem aquelas faculdades, subam àqueles postos, e tenham aquelas dignidades. Sofremos mal que sejam doutos, bem vistos, e honrados de todos, que os acompanhe o bom nome, que sejam dotados de profundo engenho, de alta prudência, de fina penetração, de áurea eloquência, e de outras semelhantes prerrogativas que provêm, ou da Natureza, ou da indústria, ou das humanas vicissitudes. Faz grande mal a nossos olhos o bem que os outros possuem, e o consideramos como roubado ao nosso mérito. Ajunta-se a soberba à inveja, e não queremos que ninguém nos preceda. Todas as paixões são furiosas, mas a inveja é rematadamente louca, porque aborrece o bem alheio sem proveito próprio: com isto não tiramos felicidade a quem a possui, nem nos fazemos senhores dela se a não temos: cansamos debalde os desejos, e depois de tantas fadigas, não fica à inveja mais que o veneno que a consome e rala. Quem pois quer usar da razão, em vez de perder ou cansar os olhos atrás dos mais felizes, deve antes de ter os olhos sobre tantos pobres e mendigos, sobre tantos aflitos, enfermos, desgraçados e opressos, que a milhares s'oferecem sobre a grande cena do mundo, verdadeira pátria das desventuras, e medir e comparar a própria situação com a situação destes desditosos. Pode aqui, e em tal confrontação carpir-se acaso, ou chorar-se a inveja? Muito cega há-de ser quando se não confessar à vista desta confrontação muito bem tratada pela Providência! Ninguém é miserável, senão comparativamente. O remédio para fazer calar o amor próprio, é obrigá-lo a fitar os olhos sobre tantos que são muito mais desgraçados que nós somos. Quem souber curar suas opiniões, avezando-se a se contentar de pouco, alcançará a verdadeira tranquilidade do ânimo, em que consiste a ventura independente de qualquer estado.
nos faz parecer nosso estado miserável e infeliz. Ajunta-se a toda esta desgraça imaginária a inveja muito real – paixão bem diversa de todas as outras, as quais bem refreadas e governadas podem servir de ministras à virtude. A inveja é de sua natureza sempre maligna, sempre contrária à virtude; é surda e feroz atormentadora de quem lhe dá entrada no coração. E quanto anda derramada pelo mundo esta mortífera peste! Tanto falar dos que nos são superiores e aventajados e buscar com o microscópio todos seus defeitos, por certo não é este o efeito do bom zelo, é o parto da inveja. Sofremos mal que tantos gozem aquelas faculdades, subam àqueles postos, e tenham aquelas dignidades. Sofremos mal que sejam doutos, bem vistos, e honrados de todos, que os acompanhe o bom nome, que sejam dotados de profundo engenho, de alta prudência, de fina penetração, de áurea eloquência, e de outras semelhantes prerrogativas que provêm, ou da Natureza, ou da indústria, ou das humanas vicissitudes. Faz grande mal a nossos olhos o bem
que os outros possuem, e o consideramos como roubado ao nosso mérito. Ajunta-se a soberba à inveja, e não queremos que ninguém nos preceda. Todas as paixões são furiosas, mas a inveja é rematadamente louca, porque aborrece o bem alheio sem proveito próprio: com isto não tiramos felicidade a quem a possue, nem nos fazemos senhores dela se a não temos: cançamos debalde os desejos, e depois de tantas fadigas, não fica à inveja mais que o veneno que a consome e rala. Quem pois quer usar da razão, em vez de perder ou cançar os olhos atrás dos mais felizes, deve antes de ter os olhos sobre tantos pobres e mendigos, sobre tantos aflitos, enfermos, desgraçados e opressos, que a milhares s'oferecem sobre a grande cena do mundo, verdadeira pátria das desventuras, e medir e comparar a própria situação com a situação destes desditosos. Pode aqui, e em tal confrontação carpir-se acaso, ou chorar-se a inveja? Muito cega há-de ser quando se não confessar à vista desta confrontação muito bem tratada pela Providência!
Ninguém é miserável, senão comparativamente. O remédio para fazer calar o amor próprio, é obrigá-lo a fitar os olhos sobre tantos que são muito mais desgraçados que nós somos. Quem souber curar suas opiniões, avezando-se a se contentar de pouco, alcançará a verdadeira tranquillidade do ânimo, em que consiste a ventura independente de qualquer estado.
|[[José Agostinho de Macedo]], ''Cartas Filosóficas a Ático'' (1815), Carta I., pp. 3–18}}
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