Mos maiorum: diferenças entre revisões

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A ''familia'' romana (melhor entendida como "casa" que "familia") era hierárquica, como o era a sociedade romana. Estas hierarquias tradicionais perpetuavam a si mesmas, isto é, apoiavam e se apoiavam no ''mos maiorum''. O ''[[pater familias]]'', ou chefe da casa, tinha uma autoridade absoluta sobre sua ''familia'', que era tanto uma unidade autônoma dentro da sociedade romana como também um modelo para a ordem social, porém, se esperava que exercesse este poder com moderação e que atuasse com responsabilidade em nome de sua ''familia''. O risco e a pressão da censura social ao falhar em relação às expectativas sobre seu papel também era uma forma de ''mos''.
 
A relação social que distinguia a [[Roma Antiga]] era aquela entre o patrono ''(patronus)'' e o cliente ''(cliens)''. Apesar desta obrigações serem mútuas, eram também hierárquicas. A relação não se definia como uma unidade, mas como uma rede ''(clientela)'', dado que um ''patronus'' podia também estar subordinado a alguém com um status mais elevado ou com maior poder, e um ''cliens'' podia ter mais de um patrono, cujos interesses podiam gerar conflitos. Se a ''familia'' era a unidade individual em que se fundamentava a  sociedade, tais redes engrenadas contrariavam essa autonomia e estabeleciam laços que criavam uma sociedade complexa.<ref>{{citar livro|titulo=The Sorrows of the Ancient Romans: The Gladiator and the Monster|ultimo=A. Barton|primeiro=Carlin|editora=Princeton University Press|ano=1993|local=Princeton|paginas=176–177|acessodata=13/05/2016}}</ref> Apesar de um dos principais cenários de atividade dentro das relações clientelísticas serem os tribunais, o patronato não era em si mesmo um contrato legal; as pressões para manter os deveres individuais eram morais, fundamentados na natureza da ''[[fides]]'', "lealdade" (ver abaixo em '''Valores'''), e no ''mos''.<ref>{{citar livro|titulo=Reconstructing the Roman Republic|ultimo=Hölkeskamp|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=33–35|acessodata=}}</ref> O patronato servia como modelo<ref>{{citar livro|titulo=Cicero. De officiis 1.35.|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> quando conquistadores o governadores fora de Roma estabeleciam relações pessoais como patronos envolvendo comunidades inteiras, relações estas que deviam ser perpetuadas como obrigação familiar. Neste sentido, ''mos'' se torna mais uma convenção que uma tradição fixa.<ref>{{citar livro|titulo="Patrocinium and clientela" in The Hellenistic World and the Coming of Rome|ultimo=S. Gruen|primeiro=Erich|editora=University of California Press|ano=1986|local=|paginas=vol. 1, pp. 162–163.|acessodata=}}</ref>
 
Os mores constituem preceitos normativos aceitos por toda a comunidade, por estarem investidos de uma '''auctoritas''' [4]. Esses '''mores''' não são apenas práticas investidas de sacralidade, mas também representam um esboço de "constituição" para toda a comunidade romana obrigada a segui-la.
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O conservadorismo romano encontra uma clara expressão em um edito dos [[Censor romano|censores]] do ano [[92 a.C.]], conservado na obra do historiador [[Suetónio|Suetônio]], do século II: "Todo o novo, que é feito contrariando o uso e os costumes dos nossos antepassados, parece não estar certo".<ref>{{citar livro|titulo=De Claris Rhetoribus, I|ultimo=Suetonius|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Mas como o ''mos maiorum'' era uma questão de costumes, e não de leis escritas, as normas complexas que incorporavam evoluíram ao longo do tempo. A capacidade de preservar um forte sentimento de identidade centralizada junto com a adaptação a novas circunstâncias, permitiram o expansionismo que levou [[Roma Antiga|Roma]], uma [[Cidade-Estado|cidade-estado]], a se tornar uma potência mundial.<ref>{{citar livro|titulo=Ver, por exemplo, a referência de Hölkeskamp à "capacidade de autorregulação" da República" Reconstructing the Roman Republic, p. 18. Erich S. Gruen, The Last Generation of the Roman Republic (University of California Press, 1974), p. 535.|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> A preservação do ''mos maiorum'' dependia de consenso e moderação por parte da elite no poder, cuja competição por poder e status sempre ameaçava a manutenção do mos<ref>{{citar livro|titulo=Hölkeskamp, Reconstructing the Roman Republic, pp. 9, 41–42 et passim.|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref>.
 
As políticas democráticas impulsionadas pela força carismática de que gozavam os elementos populares do povo romano (''pupulus'') minaram de certa forma o princípio conservador do ''mos''.<ref>{{citar livro|titulo=Hölkeskamp, Reconstructing the Roman Republic, p. 42|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Dado que as altas magistraturas e o sacerdócio eram originalmente uma prerrogativa dos patrícios, os esforços de ascensão dos plebeus (a ''[[Plebe|plebs]]'') podiam ser vistos como uma ameaça à tradição (ver Conflito das Ordines). A reforma se efetuou por meio da legislação, e a lei escrita, inicialmente registrada na [[lei das Doze Tábuas]], substituiu as regras consensuais.<ref>{{citar livro|titulo=Gruen, The Last Generation of the Roman Republic, pp. 258, 498, 507–508.|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Quando os plebeus obtiveram uma ascensão a quase todas as altas magistraturas, com exceção de alguns poucos tipos de sacerdócios, os interesses das famílias plebeias que ascenderam à elite começaram a alinhar-se aos dos patrícios, criando o grupo dos ''nobiles'' de Roma, um status de elite social com uma definição difusa durante a República.<ref>{{citar livro|url=|titulo=O período da segunda guerra samnita foi crucial para a formação desta nova elite; ver E.T. Salmon, Samnium and the Samnites (Cambridge University Press, 1967), p. 217, y Erich S. Gruen, "Patrocinium and Clientela," in The Hellenistic World and the Coming of Rome (University of California Press, 1984), p. 163. q=%22mos%20maiorum%22%20inauthor%3Agruen&f=false|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> A ''plebs'' e seu apoio aos políticos populares continuaram constituindo uma ameaça para o ''mos'' e para o consenso das elites durante a República tardia, tal como se refletia na retórica de [[Cícero]].<ref>{{citar livro|titulo=T.P. Wiseman, Clio's Cosmetics (Leicester University Press, 1979), pp. 67–69, 85, et passim.|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref>
 
A ''auctoritas maiorum'' ("autoridade ancestral") podia ser evocada para justificar progressos sociais em nome da tradição. Com o colapso da República depois da morte de [[Júlio César]], [[Augusto]] baseiouprocura seurestaurar programaos radicalvalores tradicionais romanos definidos no respeitoconceito aode ''mos maiorum''.<ref>{{citar livro|titulo=Sobre os estudos das estratégias políticas de Augusto, consultar por exemplo M.K. Thornton y R.L. Thornton, Julio-Claudian Building Programs: A Quantitative Study in Political Management (Bolchazy-Carducci, 1989), p. 106 online; E.J. Kenney, The Age of Augustus (Cambridge University Press, 1982), p. 42; The World of Rome (Cambridge University Press, 1997), p. 132|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref>.
 
Durante a transição para o Império cristão, [[Símaco, o Ebionita|Símaco]] assegurou que a continua estabilidade e prosperidade de Roma dependia da preservação do ''mos maiorum'', enquanto que o poeta paleocristão [[Prudêncio]] (348 - ca 410) rejeitou a busca cega da tradição considerando-a como "a superstição dos velhos avós" ''(superstitio veterum avorum)'' e inferior à nova verdade revelada pelo cristianismo.<ref>{{citar livro|titulo=Clifford Ando, "The Palladium and the Pentateuch: Towards a Sacred Topography of the Later Roman Empire," Phoenix 55 (2001), p. 388.|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> <ref>{{citar periódico|ultimo=Boni, Luis Alberto De. (2014). O ESTATUTO JURÍDICO DAS PERSEGUIÇÕES DOS CRISTÃOS NO IMPÉRIO ROMANO. Trans/Form/Ação, 37, 135-168.|primeiro=|titulo=|jornal=|url=http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31732014000400135&script=sci_arttext|acessadoem=14/05/2016}}</ref>
 
== Valores ==
Valores fundamentais do ''mos maiorum'':
Artigo principal: ''Virtudes romanas''
* '''''Fides.''''' A palavra latina ''[[fides]]'' abarca algumas palavras como boa fé/lealdade, confiança, confiabilidade e credibilidade.<ref>{{citar livro|titulo=Hölkeskamp, Reconstructing the Roman Republic, p. 34|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Constituiu um importante conceito no [[direito romano]], dado que os acordos verbais eram frequentes.<ref>{{citar livro|titulo=“Bona fides,” Berger. pg 374|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> O conceito de ''fides'' foi personificado pela deusa ''Fides'', cujo papel no ''mos maiorum'' é atestado pela antiguidade de seu culto.<ref>{{citar livro|titulo=Adkins. pg 78|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Seu templo é datado por volta de 254 a.C.<ref>{{citar livro|titulo=Ziolkowski, “Temples”|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> e estava localizado na [[Monte Capitolino|Colina Capitolina]] em Roma, próximo ao [[Templo de Júpiter Capitolino|Templo de Júpiter]].
* '''''Pietas.''''' A atitude romana de forte respeito aos deuses, à pátria, aos pais e à família era expressa pela palavra ''pietas'', que exigia que as relações fossem permeadas pela diligência e moralidade.<ref>{{citar livro|titulo=Adkins. p. 180|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Cícero definiu a ''pietas'' como "justiça para com os deuses."<ref>{{citar livro|titulo=De Natura Deorum. 1.116|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Ia além do sacrifício e da execução correta do ritual, incluindo a entrega pessoal e a retidão do indivíduo, e era a virtude cardinal do herói romano [[Eneias]] na ''[[Eneida]]'' de [[Virgílio]]. O uso da forma adjetivada ''Pius'' como cognome refletia sua importância como um traço de identidade. Como a ''[[Fides]]'', a ''[[Piedade (virtude)|Pietas]]'' foi venerada como uma deusa, com um templo consagrado em 191 a.C.<ref>{{citar livro|titulo=Según Tito Livio, Ab urbe condita. xxxx. 34|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> e a ela dedicado dez anos mais tarde.
* '''''Religio''''' e '''''Cultus'''''. Vinculados ao verbo latino ''religare'', “atar”, ''[[religio]]'' é a união entre deuses e mortais, tal como acontece nas práticas religiosas tradicionais<ref>{{citar livro|titulo=Adkins. pg 190|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> para preservar a ''[[pax deorum]]'' (“paz dos deuses”). ''Cultus'' era a observância constante e a realização correta dos rituais.<ref>{{citar livro|titulo=Adkins. pg 55|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> A prática religiosa neste sentido deve se distinguir da ''pietas'' e moralidade a ela inerente. Ver [[Religião na Roma Antiga|Religião na  Roma antiga]] e [[Culto imperial|Culto imperial]] (Roma Antiga).
* '''''Disciplina'''''. O caráter militar da sociedade romana sugere a importância da ''disciplina'' e sua relação com a educação, treinamento, disciplina e autocontrole. Sobre a divindade homônima ver Disciplina (mitologia).
* '''''Gravitas''''' e '''''Constantia'''''. ''[[Gravitas]]'' foi reverenciada como autodomínio.<ref>{{citar livro|titulo=Ward. p. 58|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> ''Constantia'' pode ser traduzida como constância ou perseverança.<ref>{{citar livro|titulo=Ab urbe condita. xxii. 58. Ver também o Comentário sobre Livio de Ogilvie 1-5.|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Frente à  adversidade, exigia-se que um "bom" romano mantivesse um semblante sereno. A mitologia e a história romanas destacaram este valor por meio de relatos de autores como [[Públio Múcio Cévola (cônsul em 133 a.C.)|Mucio Escévola]],<ref>{{citar livro|titulo=Ab urbe condita. ii. 12|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> que numa lenda fundadora da República demonstrou sua responsabilidade e determinação frente ao rei etrusco ''[[Lars Porsena|Lars Porsenna]]'' pondo sua mão direita sobre o fogo.
* '''''Virtus'''''. Derivada da palavra latina ''vir'' (“homem”), ''[[Virtude|virtus]]'' constituía o ideal de um verdadeiro varão romano.<ref>{{citar livro|titulo=Ward. p. 57|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Lucilio analisa a ''virtus'' em algumas de suas obras, dizendo que para um homem a ''[[Virtude|virtus]]'' é saber o que é bom, mau, inútil, vergonho ou desonroso.<ref>{{citar livro|titulo=Ward. p. 57|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref> Sobre a divindade homônima ver ''Virtus'' (mitologia).
* '''''Dignitas''''' e '''''auctoritas'''''. ''Dignitas'' e ''auctoritas'' constituíam o resultado final do quadro de valores do romano ideal e do serviço ao estado por meio de  sacerdócios, cargos militares e magistraturas. ''Dignitas'' era conseguida por mérito, honra e apreço. Assim, um romano que demonstrava sua ''gravitas'', ''constantia'', ''fides'', ''pietas'' e outros valores apropriados a um romano possuía ''dignitas'' entre seus iguais. De forma semelhante, através desta via, um romano podia obter a ''auctoritas'' (“prestigio e respeito”).<ref>{{citar livro|titulo=Ward. p. 58|ultimo=|primeiro=|editora=|ano=|local=|paginas=|acessodata=}}</ref>{{Referências|col=2}}