Síndrome do vinagre

A síndrome do vinagre, ou síndrome do ácido acético, é uma condição que afeta filmes fotográficos compostos por acetato de celulose, desencadeando sua deterioração. De modo geral, a exposição das películas fotográficas ao calor, umidade e compostos ácidos resulta na quebra das ligações dos grupos acetila, liberando ácido acético; este, por sua vez, é o principal componente do vinagre, o que confere ao processo esse odor característico.

Síndrome do Vinagre - Deformação da base plástica e perda da emulsão fotográfica

Como resultado, a base plástica que compõem o filme se torna quebradiça e, em alguns casos, pode também encolher, justamente devido à ruptura das cadeias poliméricas. Ademais, há a possibilidade de que ocorra a separação entre a base plástica e a emulsão de gelatina, considerando a diferença dos seus respectivos graus de mobilidade molecular.

Levando em conta as informações presentes nesse tipo de acervo e, com isso, sua importância histórica e social, é necessário que os profissionais que atuam no campo patrimonial conheçam as causas da síndrome do vinagre, a fim de que possam implementar medidas preventivas, identificar possíveis ocorrência precocemente e, quando necessário, realizar os tratamentos mais adequados.

Causas e processo de deterioração

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Os filmes fotográficos são constituídos por uma base plástica, em geral feitos a partir de compostos da celulose, na qual é depositada a emulsão fotográfica, à base de gelatina e cristais de halogeneto de prata [1].

Inicialmente a base plástica era feita com nitrato de celulose (C6H7O3(ONO2)3), obtido a partir da trinitração da celulose - isto é, tratamento da celulose com ácido nítrico (HNO3) e ácido sulfúrico (H2SO4), ocasionando a substituição dos átomos de hidrogênio por grupos funcionais nitro (-NO2). Contudo, por se tratar de um composto instável e altamente inflamável, estes foram gradualmente substituídos pelos filmes à base de diacetato de celulose e, posteriormente, pelo triacetato de celulose [2].

O diacetato de celulose, diferentemente do nitrato de celulose, é obtido a partir  da acetilação da celulose, processo pelo qual há a inserção de grupos funcionais acetila (-COCH3) por meio do uso de agentes acetilantes, como o anidrido acético ((CH₃CO)₂O) e o ácido acético (CH₃COOH). O triacetato de celulose, assim como o diacetato, também é um derivado da celulose, mas se difere pelo seu nível de acetilação - enquanto o diacetato é parcialmente acetilado, o triacetato já é integralmente acetilado[3].

A exposição dos filmes fotográficos ao calor, umidade e compostos ácidos desencadeia a quebra das ligações dos grupos acetila e, consequentemente, a liberação de ácido acético[4][5][6]. A ocorrência da desacetilação, por sua vez, ocasiona a deterioração da base plástica, o que, mais tarde, também irá gerar danos à emulsão fotográfica. Destaca-se que pelo ácido acético ser um dos principais componentes do vinagre, a ocorrência dessa deterioração possui esse cheiro característico e, por isso, passou a ser denominada como Síndrome do Vinagre.

Danos ocasionados

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Síndrome do Vinagre - Cristalização da emulsão fotográfica

A síndrome do vinagre causa danos significativos aos acervos fílmicos por comprometerem a sua integridade física e, consequentemente, causarem a perda das informações ali presentes[7][8]. Conforme já indicado na seção acima, a ocorrência da desacetilação resulta na quebra das cadeias poliméricas do acetato de celulose, o que faz com que a base plástica do filme fotográfico se torne quebradiça e suscetível a rachaduras [1]. Em casos mais avançados, esse processo também pode fazer com que o filme encolha, se deforme ou até mesmo se fragmente. Além disso, a emulsão de gelatina, que contém as imagens e informações sonoras, pode se separar da base plástica, causando a perda de detalhes visuais e auditivos; em casos mais avançados, a emulsão muda de consistência, tornando-se viscosa ou cristalizada [9][10].

 
Síndrome do Vinagre - Deformação da base plástica e cristalização da emulsão fotográfica

A liberação de ácido acético, responsável pelo odor característico, não apenas acelera a deterioração dos filmes afetados, mas também pode danificar outros materiais que estejam armazenados próximos [10]; de modo geral, isso ocorre pela volatilidade do ácido acético, possibilitando então que mesmo itens que não estejam diretamente em contato com o filme deteriorado sejam afetados. Desse modo, uma única película com síndrome do vinagre pode comprometer a preservação de uma coleção inteira, o que torna necessário separar prontamente os itens afetados do restante do acervo.

Prevenção e tratamento

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Considerando o modo como esse tipo de deterioração se desenvolve, entende-se que o processo é autocatalítico[3] e que os danos causados são irreversíveis; desse modo, o monitoramento e a prevenção tornam-se cruciais para a conservação destes acervos [11][10].

Como a exposição ao calor e à umidade são fatores que provocam a ocorrência dessas deteriorações [12], é necessário que esses bens sejam acondicionados em espaços que seja possível realizar o controle das condições ambientais. Da mesma forma, as embalagens a serem utilizadas não devem ser constituídas por compostos ácidos, visto que estes também irão desencadear a ocorrência das reações associadas [13][14][15]. Desse modo, verifica-se que a melhor forma de prevenir o desenvolvimento da síndrome é justamente evitar que os acervos sejam expostos às condições que o propiciem [16][17].

A implementação de um programa de monitoramento regular [9] com o intuito de identificar possíveis indícios da síndrome do vinagre garantem que o diagnóstico seja feito de forma mais rápida e que os acervos afetados sejam separados do restante, o que evita que o processo de deterioração de inicie em outros bens. Essa verificação em geral é feita a partir da identificação dos danos mais característicos, sendo a presença do odor de vinagre um dos primeiros indícios mais facilmente reconhecidos - indicando que o processo de desacetilação já se iniciou. Além disso, a digitalização desses filmes assegura a preservação do conteúdo, mesmo que os materiais físicos venham a se deteriorar posteriormente.

Casos notáveis

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A ocorrência da síndrome do vinagre é observada em grande parte das instituições que possuem acervos fílmicos, visto que em geral estes não são acondicionados de acordo com as condições necessárias. A Cinemateca Brasileira (SP), por exemplo, abriga uma das maiores e mais importantes coleções de filmes da América Latina, com milhares de títulos que documentam a trajetória cinematográfica nacional. Dificuldades financeiras e demais questões instituições acabam tendo influência no modo como esses itens são preservados, expondo-os a possíveis riscos[18] - dentre eles, condições que propiciam a ocorrência da síndrome do vinagre. Por mais que haja a prática de que esses acervos afetados sejam separados dos demais, de forma a protegê-los[19], o fato de ainda não haver uma forma de reverter o processo de deterioração - ou ao menos minimizá-lo - faz com que não haja perspectiva para os filmes já danificados.

Referências

  1. a b COELHO, Fernanda. Manuseio de películas cinematográficas - Procedimentos utilizados na cinemateca brasileira. São Paulo: Cinemateca Brasileira, Imprensa Oficial do Estado, 2006.
  2. HOLLÓS, Adriana Cox. A preservação de filmes no Arquivo Nacional. Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 103-110, 2003.
  3. a b Ahmad, Ida R.; Cane, Deborah; Townsend, Joyce H.; Triana, Cristian; Mazzei, Luca; Curran, Katherine (fevereiro de 2020). «Are we overestimating the permanence of cellulose triacetate cinematographic films? A mathematical model for the vinegar syndrome». Polymer Degradation and Stability. 109050 páginas. ISSN 0141-3910. doi:10.1016/j.polymdegradstab.2019.109050. Consultado em 25 de julho de 2024 
  4. Allen, N.S.; Edge, M.; Appleyard, J.H.; Jewitt, T.S.; Horie, C.V.; Francis, D. (janeiro de 1987). «Degradation of historic cellulose triacetate cinematographic film: The vinegar syndrome». Polymer Degradation and Stability (4): 379–387. ISSN 0141-3910. doi:10.1016/0141-3910(87)90038-3. Consultado em 25 de julho de 2024 
  5. Soleymani, Somayeh (Mona); Russ, Lisa (3 de abril de 2021). «Naphthalene Syndrome and Vinegar Syndrome Affected Films: An International Survey of Audiovisual Conservation Practitioners». Studies in Conservation (em inglês) (3): 154–166. ISSN 0039-3630. doi:10.1080/00393630.2020.1792205. Consultado em 25 de julho de 2024 
  6. «Conservação de Negativos em Triacetato de Celulose - ProQuest». www.proquest.com. Consultado em 25 de julho de 2024 
  7. BIGOURDAN, Jean-Louis. Vinegar Syndrome: An Action Plan. Image Permanence Institute.
  8. BURGI, Sérgio. Introdução à preservação e conservação de acervos fotográficos; técnicas, métodos e materiais. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1988.
  9. a b Insúa, Beatriz Torres (2011). «Inspección de la película cinematográfica. ¿Qué debemos observar?». Foro Académico (em espanhol) (4). Consultado em 25 de julho de 2024 
  10. a b c OLIVEIRA, João Sócrates. Trabalhando com Filmes de Segurança Deteriorados. Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, 2003.
  11. SAUSP. Manual de conservação preventiva de documentos; papel e filme. São Paulo: EDUSP, 2005. (Acadêmica, 63).
  12. SPINELLI Jr., Jayme. A conservação de acervos bibliográficos e documentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997.
  13. REILLY, James M. Guia do Image Permanence Institute (IPI) para armazenamento de filmes de acetato. Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos. Rio de Janeiro: 2001.
  14. PAVÃO, Luis. Conservação de fotografia - o essencial. Cadernos Técnicos de Conservação Fotográfica, n. 3, Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997.
  15. HENDRICKS, Klaus B. Armazenagem e manuseio de materiais fotográficos. Cadernos Técnicos de Conservação Fotográfica, n. 4, p. 1-15, Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997.
  16. ABREU, Ana Lúcia de. Acondicionamento e guarda de acervos fotográficos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2000. (Série Documentos Técnicos, 5)
  17. CÍA, Ángel. Ma F. La conservación de Archivos Fotográficos. Asociación Española de Documentación e Información, 2012.
  18. «Sangue, suor e nitrato: a luta pela preservação no cinema brasileiro». Consultado em 25 de julho de 2024 
  19. box3w (18 de outubro de 2022). «Sede | Cinemateca Brasileira». www.cinemateca.org.br. Consultado em 25 de julho de 2024