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I-ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SANTA CATARINA

Segundo o professor Doutor Eduardo Adilson Camilo Pereira (UniCV), na sua Obra Política e Cultura: As Revoltas dos Engenhos (1822), de Achada Falcão (1841) e de Ribeirão Manuel (1910),inicialmente, em torno do morgadio dos Engenhos e, posteriormente, em torno dos morgadios de Pico Vermelho, Faveta e Achada Falcão verificava-se a maior concentração da população do interior da ilha de Santiago. José Conrado Carlos de Chelmicki foi o primeiro estudioso a questionar as reais motivações que levaram as elites políticas locais a proporem a transferência da sede do governo da ilha de Santiago para as demais ilhas. Segundo este, a formação de povoações propiciava não só o aumento da produção, como também a divulgação dos valores da agricultura “provincial”. Destaca ainda que o carácter litorâneo das primeiras povoações, centradas na vila da Praia e na Ribeira Grande, atrasou muito os planos do governo colonial para a criação de povoações agrícolas no interior. A vila da Praia era a única vila existente na ilha de Santiago, sendo, por isso, imprescindível a criação de uma nova vila num local onde o clima era mais agradável. O local mais adequado seria a achada de Santa Catarina (actual cidade de Assomada), onde o clima, segundo este, era mais saudável. (...) O sitio mais conveniente é a achada de Santa Catharina. N´uma planice reputada por mui saudavel, abundante d’agua e rica em vegetação, no centro da ilha, não tardaria de se formar em breve uma povoação, uma Villa agradável. Grandes porções de terreno ainda incultas daríamos a agricultura e por este meio conseguiríamos o nosso fim (...) (Chelmicki, 1841: 199-200).

Para este naturalista português, a falada insalubridade climática da Ribeira Grande, sem fundamento, pintada com cores negras em Portugal, causava grande prejuízo a administração da colônia, tendo em vista que os portugueses partiam de Portugal com uma idéia pré-estabelecida acerca da cidade, vista como uma sepultura dos europeus. A tão proclamada insalubridade da Ribeira Grande prejudicou a administração da cidade. As informações que circulavam na Corte sobre o seu clima provocou muitos receios naqueles que para lá eram mandadas. O projecto de transferência da sede do governo para o planalto de Santa Catarina foi incentivado pelo então prefeito, Manoel António Martins (1831-1833), interessado na separação das ilhas em relação ao império colonial português. Porém, o referido projecto foi duramente contestado pelo deputado Teófilo Dias, o qual destacou a necessidade defendida pela elite política local quanto a criação de “uma povoação no seu centro, e em sitio sádio e que hade ser a necessaria e prompta consequencia de se fixar lá a sede do Governo durante os mezes doentios na Villa da Praia”, representadas pelas localidades dos Picos e Orgãos. Questionou a prioridade na criação de uma povoação no centro da ilha de Santiago. Além da grande distância que o separa da vila da Praia, as grandes despesas com o transporte dos serviços, a inacessibilidade ao interior da ilha no periodo chuvoso (junho a outubro), que sempre dificultou o transporte dos “artigos de primeira necessidade” para a vila da Praia, seria uma “desgraça” decretar a sede do governo nos Picos, pois o governo não poderia demandar sobre assuntos que exigiam decisões rápidas. Também destacou que para tal seriam precisos mobilizar avultados recursos financeiros, além do total isolamento da referida localidade em relação à vila da Praia. Quanto às vias de acesso, notou que “considerem bem (…) o transito de mais de dez leguas, por caminhos completamente escabrados, sujeitos ao ardentissimo sol quando marchassem de dia-á perigoza cacimba quando andassem de noite”. Em parte, para este governador, tornava-se “absurdo” fixar a residência do governo no interior da ilha de Santiago, tendo em vista os avultados recursos financeiros necessários para a construção e manutenção de uma estrada que a ligasse à vila da Praia. Em contrapartida, defendeu o investimento deste capital financeiro na edificação de “habitações para o Governo, Bispo e Repartições publicas” numa outra ilha do arquipélago, no caso em Mindelo. Pode-se constatar que a fundação da nova cidade esteva diretamente ligada a crença de que os habitantes do interior de Santiago não eram capazes de auto-governar-se.

II- SANTA CATARINA E AS SUAS REVOLTAS

Pelos depoimentos prestados por Manoel Francisco Coxo, pode-se constatar que, em dezembro de 1822, o rendeiro André Semedo fora à casa do acusado convocá-lo para ir a Cham Coelho, uma das localidades da ribeira dos Engenhos, para poderem chegar a um acordo sobre a melhor forma de requererem contra os roubos e extorsões que o Domingos Ramos Monteiro fazia aos seus rendeiros, ao não devolver as jóias penhoradas, colher os frutos da terra, em especial o milho, tomar os animais, tais como vacas e porcos, pela força e expulsar os rendeiros devedores. No caminho de sua casa para Cham Coelho questionaram diversos rendeiros sobre o facto, fazendo-lhes “consultas”, e assim tomaram a decisão de fazer uma carta ao morgado. A revolta pode ser entendida enquanto subversão da ordem sociopolítica vigente no interior da ilha de Santiago, na qual os morgados detinham não só os monopólios da terra como também roubavam e extorquiam os bens dos seus rendeiros. O pânico entre os rendeiros devia-se também às informações divulgadas pelos líderes locais, segundo as quais o morgado mandou publicitar que todos os seus rendeiros passariam a pagar as rendas num valor bem superior ao que vinham pagando e que expulsaria todos os rendeiros com rendas em atraso, fixando o dia 1º de janeiro de 1822 como a data limite para que todos os rendeiros liquidassem as suas dívidas. A grande dimensão cultural e política dessa mobilização estava também relacionada ao amplo número de rendeiros que o morgado planejava expulsar de suas terras, o que violava o contrato oral de arrendamento da terra. O medo aumentou mais ainda quando o morgado mandou desmanchar a casa de um rendeiro e colher os seus mantimentos, prometendo fazer o mesmo com os restantes. Foi assim que em 12 de Fevereiro de 1824, Luiz Royer, administrador da fazenda de Faveta, na freguesia dos Picos, queixou-se ao então governador geral de Cabo Verde, João da Matta Chapuzet, que o seu rendeiro de nome Manoel Gonçalves tinha estado a fazer “maquinações” com outros rendeiros para que se revoltassem contra ele e então não pagariam as rendas estipuladas. Quando o administrador foi à casa do referido rendeiro para receber as rendas em atraso, este não só não consentiu sua entrada nas terras como buscou o seu manduco para espancar o cobrador. Por sua parte, o administrador agarrou a mulher do referido rendeiro para se proteger da tentativa de agressão do referido rendeiro. Os autos da devassa sobre a constituição do partido pró-Brasil, de 16 de Maio de 1823, transcreveram uma Carta atribuída de Manoel Francisco Coxo a Manoel Ramos Semedo, onde não só reiterou o plano de não receber o governador vindo de Lisboa, como também que os responsáveis pela revolta nos Engenhos eram influentes políticos residentes na vila da Praia. A carta ainda aponta a existência do projeto revolucionário na ribeira dos Engenhos, destacando as alianças políticas com as elites do interior da ilha de Santiago. A revolta dos Engenhos, além de uma mera contestação fundiária contra as arbitrariedades dos morgados, deve ser também compreendida como produto de mobilizações políticas. O próprio documento destaca a importância de se declarar a “revolução política”, em função da qual a revolta deverá ser compreendida. Na ilha de Santiago, temendo que a capital seguisse o mesmo exemplo, tendo em vista que os habitantes encontravam-se numa “terrivel anarquia”, o governador geral reuniu-se com as principais autoridades locais, temendo pela “unidade desta Capitania”. Vários devotos da Freguesia dos Picos, interior da ilha de Santiago, para mobilizar os rendeiros descontentes, consideravam os sucessivos governadores mandados para a província até o momento como sendo “rattos que vinha os roubando o povo”. Os governadores também foram vistos como “monstros” enviados de Lisboa para roubar o povo. Segundo os autos da devassa, as estratégias empregadas pelo partido para mobilizar os rendeiros do interior da ilha de Santiago em torno da “revolução” consistiam em cinco fases: depôr e substituir a junta governativa; declarar-se a favor do Brasil; não receber o governador e impedir a força o desembarque da infantaria vinda de Lisboa; e enviar uma “deputação” ao Rio de Janeiro para pedir “socorros e proteção”. Na Igreja de São Salvador do Mundo, Joze Pereira de Carvalho convocou os “povos” para assinarem qual dos governos era de sua preferência, se o de Lisboa ou o do Brasil. As elites locais buscaram apoio dos rendeiros do interior da ilha de Santiago para fazerem uma “revolução” a favor do Brasil, recusando a receber o governo que viesse de Portugal, mobilizaram também tanto para depôr a junta governativa, elegendo uma nova em seu lugar quanto para impedir o desembarque de tropas vindas de Portugal. Quanto a revolta de Achada Falcão (1841) foi motivada não só pela reivindicação por contratos escritos de arrendamento da terra, quanto para pressionar o governo geral a garantir o livre acesso às terras cultivadas. A subversão política revestia-se de instrumento para fazer face às injustiças sociais, decorrentes das estratégias empregues pelos morgados para tornar os rendeiros cada vez mais endividados, com destaque para concessão de crédito e aumento exorbitante das rendas. Além disso, merece realce o descontentamento das elites políticas devido ao menosprezo da Coroa portuguesa às autoridades locais, face à crise decorrente das fomes. Não por acaso, incitaram os rendeiros a se rebelarem contra a existência de grande concentração de terras por parte dos morgados. As pressões políticas decorrentes da expulsão do arquipélago dos adversários políticos eram justificadas, por serem contrários às liberdades políticas consagradas na Carta constitucional. A extrema exploração dos rendeiros foi articulada às confrontações políticas, por meio das quais se salienta o fato da compra das colheitas ser feita em gêneros, como tecidos e mantimentos. O arquipélago era administrado para responder conspirações e agitações políticas que o partido Liberal pró-Brasil fazia em relação às determinações da Coroa portuguesa, o que impossibilitava qualquer reforma política. A revolta pode também ser analisada em função das denúncias, segundo as quais os deputados às Cortes haviam renunciado ao compromisso com as reformas políticas propostas. Cabe ainda ressaltar que a reestruturação de cargos no governo geral visava extinguir as discórdias partidárias. Receava-se uma possível revolta dos rendeiros do interior da ilha de Santiago contra a dominação colonial local, revolta essa vinda por meio do assalto à vila da Praia, o que levou os liberais moderados a propor a transferência da sede do governo para a ilha de São Vicente. Por último, a revolta de Ribeirão Manuel, em 1910, motivada pelos sucessivos roubos de colheitas e aguardente, dos quais os rendeiros eram alvo, no decorrer da moagem da cana-de-açúcar. Também eram obrigados a concederem seis dias de trabalho gratuito ao morgado, bem como pagar rendas exorbitantes. Os rendeiros, para honrar as rendas das terras, vendiam o gado aos morgados pelo preço fixado por estes. Também tinham de vender suas colheitas por um preço muito baixo. Tais medidas agravavam a dependência do rendeiro em relação ao seu morgado, assim como sua indignação dando ensejo a assaltos de vários morgadios. Note-se o fato de que, pelo morgado ter recusado a dividir as sementes de purgueira com os seus rendeiros, desencadeou-se uma rede de roubos. O mesmo ocorreu com o milho. Por sua vez, com o apoio dos rendeiros dos Engenhos, passaram aos ataques à polícia rural, a quem cabia recolher o imposto de trabalho. Em resposta, a polícia rural, a mando dos morgados, invadiu as casas dos rendeiros, prendendo as suas mulheres. Cabe ainda salientar que os líderes da revolta eram mulheres na sua maioria.

III-A IDENTIDADE CULTURAL DE SANTA CATARINA

A tabanca e o batuco são as principais manifestações culturais de Santa Catarina, utilizados no ritual da revolta de escravos e de rendeiros contra a opressão colonial portuguesa (1822-1910). Fundadas não só no cultivo da terra, pelo processo de “djunta mon” e parceria , como também em actividades culturais como o batuco e a tabanca, propiciavam também a reunião dos rendeiros em volta dos seus problemas, dentre os quais destacam as sucessivas ameaças de expulsão das terras feitas pelo morgado a aqueles que não pagassem as suas rendas em dia. Porém, não é menos verdadeiro que as festas representavam momentos propícios para as reivindicações políticas. Por outro lado, além do processo de entre-ajuda, registrava-se a influência da tradição de festas, identificada no batuco, nos reinados da tabanca e na festa de Corpo de Deus. Tais festas propiciavam a união dos rendeiros à volta dos principais problemas da comunidade de trabalhadores rurais. Uma das testemunhas confirma a espontaneidade das práticas festivas, observando a sua sociabilidade: (...) em quanto ao ajuntamento esse he Costume nesta Ilha (Santiago) fazer-se huma festa, e que por isso entra em brincadeiras, Tambores e Bandeiras (...). Durante a semana do cortejo das tabancas, os seus membros fazem festas que vão noite afora, com muita grogo (aguardente). Estas festas eram pontuadas pelo batuco e pelas cantigas próprias da tradição local, isto é, do interior da ilha de Santiago. Devemos ter presente que a tabanca é uma aldeia de assistência mútua, tendo em vista que ajuda seus membros em caso de necessidade. Além do mais, agrega várias manifestações culturais e festivas tanto em casamentos quanto em batizados e funerais, tendo como centro a veneração do santo padroeiro protetor. Cada localidade tem a sua tabanca e, consequentemente, normas próprias. Fazem parte da tabanca todos os moradores de uma povoação local, que contribuem para a manutenção de um fundo que é usado nos festejos em honra ao padroeiro. Como instituição de socorros mútuos, a tabanca implica em solidariedade dentro da comunidade por meio do compadrio, como também organiza o trabalho na forma de “djunta mon” durante o ano agrícola e na edificação de moradias, o que atesta a sua dinanvidade para além do tempo dos festejos. O seu papel social é notório entre os seus membros, pois, aprende-se a rezar, a amar, a trabalhar e, principalmente, a viver em comunidade. Para tal, a tabanca tem as suas normas que, por sua vez, organiza a vida da comunidade, distribuindo papéis a cada membro da comunidade, o que é presenciado com mais nitidez quando começam os cortejos em busca do santo roubado. Por outro lado, a tabanca estabelece regras de decoro para cada situação concreta, como: nos funerais e nas rezas coletivas. Reforçam determinados valores morais e religiosos, como a compaixão e devoção, pelos quais a vida em comunidade é regida. Se de um lado, as práticas de entre-ajuda e de solidariedade entre os membros são incentivadas, de outro, quem não os segue, é multado, preso ou excluído da comunidade. Por exemplo, quando um membro da comunidade morre, todos os outros ajudam não só com o custo do funeral, como passam várias noites rezando na casa do falecido. Quem não retribui o gesto é automaticamente punido. A tabanca representa a sociedade e, como tal, tem o rei e a rainha da festa, além de representar as profissões mais influentes da sociedade, como sejam governadores, ministros, médicos, enfermeiras, policiais, ladrões, soldados e conselheiros. Os mais velhos, como guardiões da tradição, têm a missão de passar os ensinamentos aos mais jovens. Cabe aos reis e rainhas de agasalho das tabancas receber os participantes do cortejo em sua casa, agasalhar e proteger os seus integrantes, dando de comer e beber, para além de fazer oferendas ao santo padroeiro. Os cortejos são momentos em que as pessoas mostram ao mesmo tempo a sua ligação com a comunidade e com o santo padroeiro. É assim que as comunidades vizinhas entram em contato umas com as outras. Quando a tabanca vai, em cortejo, à casa do seu rei do agasalho que, por vezes, mora numa outra localidade, o que se registra é a apresentação ritual de uma determinada comunidade de trabalhadores rurais. Além da dimensão sócioreligiosa, a tabanca teve uma importância política notória, sendo ressignificada pelos rendeiros do interior da ilha de Santiago no ritual da revolta dos Engenhos (1822) e de Achada Falcão (1841). Quanto ao batuco, está presente nos casamentos, batizados e funerais, em todas as comunidades de trabalhadores rurais do interior da ilha de Santiago, nutrindo não só os laços de compadrio, como os a boa vizinhança. Estes momentos propiciam reunião de todos os membros da comunidade, tanto homens como mulheres, em “banquetes”, em cânticos e em danças coletivas. A sintonia manifesta-se através da coordenação do cântico e da dança do batuco. Todos os membros começam a cantar e a bater nas pernas, segundo o ritmo e a intensidade imprimidos pelo líder. Segundo Conrado Carlos de Chelmicki, primeiro a escrever sobre o ritual do batuco em Cabo Verde, a manifestação consiste no seguinte:

(...) Para baptizados e cazamentos, etc juntam-se para o batuque quantos há, homens e mulheres em todo o circuito d’algumas léguas. Toda esta negraria senta-se em circulo numa casa ou á porta, e no meio entra a balhadeira, vestida á moda do paiz, largando somente o pernno dos hombros e apertando bem o da cintura. O coro começa mui lentamente nas cantigas, graduando e ora cantando com certa languidez ora gritando apressadamente; todos accompanham ao tacto, battendo com as palmas das mãos nas pernas. A balhadeira ao compasso desta vozaria faz no meio movimentos com o corpo, voluptuosos, lascivos, desenvolvendo grande elasticidade e mobilidade dos músculos, p.e. (pára e) lentamente abaixam-se sem inclinar o corpo até tocar com os joelhos no chão (...) Estas reuniões também têem lugar nos interros; morrendo algum parente ou amigo, mandam por elle mantenhas (...) Mas geralmente succede no enterro um banquete, mesmo reza-se o terço e ladainhas em língua creola ao pé do cadáver (...) às vezes prolongam-se estes banquetes até outro dia (Chelmicki, 1841: 334-335).

Referência: PEREIRA, Eduardo Adilson Camilo. Política e cultura: As revoltas dos Engenhos (1822), de Achada Falcão (1841) e de Ribeirão Manuel (1910). 2a. ed., Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde, 2014 (2013).