Autorretratística

Autorretratística é o campo da teoria e história da arte que estuda a história, meios de produção e circulação, recepção, formas e significados dos autorretratos. Surgindo na Antiguidade e se popularizando a partir do Renascimento como prática artística, como um campo específico de estudos a autorretratística é recente, mas vem se expandindo com rapidez.

Autorretrato de Albrecht Dürer, 1493

História editar

O autorretrato tem uma longa história. Na análise de Reynolds & Peter, as marcas de mãos que a humanidade pré-histórica deixou nas pinturas das cavernas podem ser consideradas precursoras do autorretrato, por serem um documento direto da presença do autor no ato criativo e da sua percepção da existência de um "eu".[1] O autorretrato mostrando a face ou todo o corpo do artista apareceu bem mais tarde, havendo exemplos documentados no Antigo Egito e na Antiguidade Clássica.[1][2]

 
Inicial iluminada com o autorretrato do iluminador, Rufillus, no Passionário Weissenauer, século XII

Na Idade Média a prática começou a ganhar impulso, acompanhando a crescente valorização da questão da autoria no estudo de obras artísticas,[3] e sobrevive uma apreciável quantidade de autorretratos de escribas e copistas iluminando seus livros e pergaminhos, em sua maioria anônimos.[1] Ao longo do Renascimento, com a valorização humanista do indivíduo, o interesse pela representação pessoal conheceu um crescimento explosivo, com particular ênfase no próprio autor, tanto nas artes visuais como na literatura. Segundo Teresa Ferreira, "as práticas do retrato, do autorretrato, da biografia e da autobiografia se desenvolvem a partir do Renascimento de modo relacional".[3]

Por muito tempo os autorretratos foram incluídos como pequenos detalhes em obras maiores, geralmente trabalhos de caráter religioso, mas a partir do Renascimento eles começam a aparecer de maneira mais chamativa, para logo ganhar plena independência em obras autônomas.[1][4] Na leitura de Maria Emília Pacheco, "a autorretratística autônoma desenvolve-se no século XVI paralelamente ao reconhecimento da dignidade do trabalho produzido para as cortes principescas altamente competitivas na promoção de uma cultura cortesã personalizada e digna. Nessa medida, as autoimagens dos pintores – e outros artistas – podem ser interpretadas como celebrações próprias das suas vidas pessoais, estratégia para ampliar o reconhecimento social da posição conseguida por mérito artístico".[5] O interesse pelo autorretrato e pelo retrato estava nesta época vinculado a vários objetivos, incluindo desejo de reconhecimento e identificação; idealização; proclamar status e relacionamentos; dar a conhecer a aparência, a vida interior, o destino do homem, marcar sua história e preservar a memória; evocar e criar a ilusão de presença; dar um exemplo; transmitir cultura; comemorar um momento no tempo ou um evento, entre outros.[3][6]

 
Autorretrato de Leon Battista Alberti, c. 1435

Dentro deste contexto, segundo Ferreira o primeiro autorretrato autônomo conhecido nas artes visuais é um de Leon Battista Alberti, executado em uma placa de bronze datada de cerca 1435,[3] mas de acordo com Reynolds & Peter a primazia tem sido geralmente dada ao Retrato de um homem de Jan van Eyck, datado de 1433, que a partir de sugestivas inscrições que traz tem sido considerado um autorretrato.[1] Muitos outros apareceriam em rápida sucessão por outros artistas.[3] Giorgio Vasari contribuiu para dar prestígio ao autor com seu tratado Vite de 1550, um longo elenco de biografias de artistas célebres, que na segunda edição de 1568 apareceram acompanhadas por seus retratos, alguns deles elaborados pelos próprios artistas. As Vite influenciaram Leopoldo de Médici a iniciar sua famosa coleção de autorretratos no século XVII, dando grande impulso a este gênero. Desde então a prática do autorretrato cresceu exponencialmente.[3] Segundo James Hall, nunca se produziu nem se venerou tanto o autorretrato quanto na atualidade, havendo artistas que construíram toda sua trajetória apenas com eles.[7] Os gêneros confessionais na literaturamemórias, autobiografias e diários — também enfocam o autor como personagem da obra, sendo às vezes descritos como a "literatura do eu".[8][9]

Estudos editar

Apesar da antiguidade do material que estuda, a autorretratística como um campo definido de estudos só começou a se desenvolver recentemente. O próprio termo "autorretrato" só foi documentado na língua inglesa (self-portrait) em 1831 e pouco depois foi dicionarizado, e até então, quando alguém queria referir-se a uma produção onde o artista fazia uma autorrepresentação dizia-se "retrato de um artista feito por si mesmo", ou "retrato do artista".[1][10] Em italiano foi dicionarizado em 1913, e em francês em 1928.[11] O termo entrou no léxico português no início do século XX e foi dicionarizado em 1949, rapidamente se disseminando,[5][11] e segundo Cláudio Rangel, o termo "autorretratística" foi introduzido no início dos anos 2000, devido ao crescimento colossal da produção de autorretratos, uma expansão favorecida pelas novas tecnologias disponíveis ao grande público, sendo um exemplo bem conhecido a prática da selfie com câmeras de telefones móveis.[12]

 
Autorretrato de Paula Modersohn-Becker, 1906

Até as primeiras décadas do século XX não existiam estudos significativos sobre esta forma de manifestação artística. Das Selbstbildnis vom 15. bis zum Beginn des 18. Jahrhunderts de Ernst Benkard, publicado em 1927, foi uma das primeiras monografias dedicadas a este campo e um dos primeiros autores a estabelecer a autorretratística como um campo distinto de estudos.[13] Esse desinteresse acadêmico está relacionado a vários fatores, entre eles a banalização do gênero ao longo do séculos, fazendo perder de vista a riqueza e complexidade que ele comporta,[14] e o pouco prestígio que a retratística tinha na teoria da arte em relação aos gêneros tidos como mais nobres, como a pintura histórica, sendo ainda menos prestigiada a autorretratística. Segundo Helena Pessoa, deve-se à produção de Andy Warhol a equiparação do gênero aos outros, tornando-se desde então um tema importante para grande parte dos artistas contemporâneos, "nos quais a representação de si próprio é uma estratégia única".[15] Também na literatura a produção e o estudo da autorretratística vêm se expandindo.[16]

 
Catálogo da I Exposição de Autorretratos realizada no Museu Nacional de Belas Artes do Brasil em 1944

Nas últimas décadas os estudos e exposições especialmente dedicados ao campo da autorretratística vêm se multiplicando internacionalmente, podendo ser citados, entre muitos, Untersuchungen zu Kunstlerbildnis und Kunstlerdarstellung in den Niederlanden im 17. Jahrhundert (estudo, Hans-Joachim Raupp, 1984), Portraits of the Artist: The Self-Portrait in Painting (estudo, Pascal Bonafoux, 1985),[13] O Rosto da Máscara. Auto-representação na Arte Portuguesa (exposição coletiva, 1994), L'autoportrait au XXe siècle: Moi Je, par soi-même (exposição coletiva, 2004), L'arte dell'autoritratto. Storia e teoria di un genere pittorico (estudo, Omar Calabrese, 2006), The Self-Portrait: A Cultural History (estudo, James Hall, 2014), e O Auto-retrato na Pintura Portuguesa (estudo, Maria Emília Pacheco, 2018).[5] No Brasil pode ser citado Por uma História da Auto-retratística no Brasil: em busca da I Exposição Brasileira de Auto-retratos no MNBA (estudo, Cláudio José Aarão Rangel, 2004)[17]

Interesses editar

A autorretratística como um campo teórico tenta modernamente responder a várias perguntas, desde a mais básica: o que é um autorretrato? Ou, por que ao longo dos séculos foi crescendo o número, e em quantidade de obras, os artistas que dedicaram a ele? Ou, ainda, por que as selfies se tornaram um fenômeno global? Também é objeto de seu interesse analisar a relação entre a autorrepresentação e a realidade, posto que os autorretratos muitas vezes não almejam a mera reprodução fidedigna de traços identificáveis objetivamente, mas, sendo construções intencionais, podem ser alegóricos, idealizantes, críticos, simbólicos, psicológicos, satíricos, filosóficos, reflexivos. Os pesquisadores ainda investigam os autorretratos porque eles desdobram muitos aspectos da vida pessoal e da percepção do artista de si mesmo e suas relações com seu meio social, seus pares, seu tempo, a cultura e a história, questionam a linguagem, a comunicação, a poética e o estilo artísticos (visuais ou literários), e entrelaçam o público e o privado, a pessoalidade e a impessoalidade, sendo obras intertextuais e polissêmicas.[3][5][14][18] Outro foco da pesquisa é analisar as mudanças no entendimento do significado do autorretrato ao longo dos séculos e sua recepção.[19]

 
Uma selfie de um menino zulu e uma menina ndebele não identificados, 2015

Trabalhos sobre semiótica, semântica, simbologia, filosofia, psicologia, gênero, identidade e outros campos têm contribuído nas últimas décadas para o aprofundamento do estudo da autorretratística.[20] O fenômeno massivo da selfie contribuiu recentemente para uma flexibilização, redefinição e ampliação do campo. Em 2013 a palavra "selfie" foi eleita a Palavra do Ano pelo Oxford Dictionary.[21] Da mesma maneira, o estudo da autorretratística entre povos nativos têm exigido uma abordagem pós-colonialista da história e da autorrepresentação, e isso tem gerado resistências em certos círculos da crítica.[22]

O campo se expande constantemente, e na análise de Eunice Ribeiro, "o repertório contemporâneo da representação retratística e autorretratística, no medium literário ou nos novos media em que o gênero atualmente se exercita, abre-se recorrentemente a questões relacionadas com as migrações e as diásporas, o envelhecimento, os temas de gênero, a exclusão social, as identidades transculturais, num sentido que é agora menos singularizador e menos essencialista e mais transitivo e turbulento".[23] Segundo Laura Busetta, a autorretratística contemporânea tem se revelado muitas vezes um ato de resistência política.[9]

 
Retrato do artista, de Etienne Van den Steen, 2016

É um consenso entre os estudiosos que se trata de um campo muito complexo,[14] e a própria definição de "autorretrato" está sujeita às mais variadas abordagens e interpretações.[24] Para Pacheco, "o autorretrato é repositório de uma imensa complexidade, suscetível de formulações inesgotáveis, na ótica da semântica e da polissemia".[5] Para Shearer West, uma das principais estudiosas do assunto, "a história da autorretratística é uma das mais fascinantes e complexas de todo o gênero da retratística. Como os autorretratos fundem o artista e o retratado em um só, eles têm o fascínio de um diário privado, pois parecem nos dar uma visão do artista sobre sua própria personalidade. No entanto, interpretar o autorretrato como uma descrição transparente da personalidade artística é ignorar os muitos outros fatores que têm impacto tanto na sua criação quanto na sua recepção".[25]

Ver também editar

 
Commons
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Referências

  1. a b c d e f Reynolds, Anna & Peter, Lucy. "Producing and collecting portraits of artists". In: Reynolds, Anna; Peter, Lucy; Clayton, Martin (eds.). Portrait of the Artist. Royal Collection Trust, 2016, pp. 9-12
  2. Cabral, Felipe Anderson Gesteira. Tecnologia no espelho: selfie, automação e inserção social dos portadores de microcefalia. Mestrado. Universidade Federal da Paraíba, 2018, p. 40
  3. a b c d e f g Ferreira, Teresa Pinto da Rocha Jorge. Autorretratos na Poesia Portuguesa do Século XX. Doutorado. Universidade Nova de Lisboa, 2019, pp. 23-27
  4. Enenkel, Karl & Liebregts, Peter. "Introduction". In: Enenkel, Karl; Jong-Crane, Betsy de; Liebregts, Peter (eds.). Modelling the Individual. Biography and Portrait in the Renaissance. Rodopi, 1998, pp. 1-10
  5. a b c d e Pacheco, Maria Emília Vaz. "A pintura do autorretrato contemporâneo em Portugal: breve panorâmica". In: Diacrítica, 2012; 26 (3): 93-130
  6. The Artist and the Mirror: Renaissance Self-Portraits. University of Chicago, 2023
  7. Apud Paula, Maíra Vieira de. O noir, o Rex e o reflexo: os autorretratos de Geraldo de Barros. Mestrado. Universidade de São Paulo, 2018, p. 19
  8. Cabral, Eunice. "Literatura Confessional". In: E-Dicionário de Termos Literários. Fundação para a Ciência e Tecnologia, 30/12/2009
  9. a b Busetta, Laura. "Self-Representation as a Marginal Subject: Identity, Displacement and Identification between Cinema and Visual Arts". In: Cinergie – Il cinema e le altre arti, 2019 (16)
  10. Manguel, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. Companhia das Letras, 2001, p. 195
  11. a b Ferreira, p. 18-19
  12. Rangel, Cláudio J. A. Por uma História da Auto-retratística no Brasil: Em busca da I Exposição Brasileira de Auto-retratos no Museu Nacional de Belas Artes. Niterói: Unilaslle, 2004, pp. 7-8
  13. a b Munduch, Melanie. Die Selbstbildnisse Luca Giordanos. Magistra. Universität Wien, 2012, pp. 3-4
  14. a b c Paula, pp. 17-21
  15. Pessoa, Helena R. G. Auto-retrato: o espelho, as coisas. Mestrado. Universidade de São Paulo, 2006, pp. 5-7
  16. Ferreira, p. 23
  17. Bettiol, Maria Regina. "Do retrato à caricatura: a figuração da personagem histórica em Saramago e Assis Brasil". In: Navegações, 2016; 9 (2): 161-168
  18. Caro, M. A. The native as image: art history, nationalism, and decolonizing aesthetics. Thesis. Universiteit van Amsterdam, 2010, pp. 155-157
  19. Haifeng, Xuan. Modes of Painting in the Self-Portraits of Marlene Dumas. Master. University of the Witwatersrand, 2012, pp. 25-27
  20. Haifeng, pp. 9-32
  21. Lehner, Ace. "From Self-Portrait to Selfie: Contemporary Art and Self-Representation in the Social Media Age". In: Lehner, Ace (ed.). Self-Representation in an Expanded Field: From Self-Portraiture to Selfie. MDPI Books, 2021, p. 1
  22. Caro, p. 162
  23. Ribeiro, Eunice. "Editorial". In: Revista 2i, 2019; 1 (Número Especial): 8
  24. Haifeng, pp. 19-22
  25. Apud Haifeng, p. 23

Ligações externas editar