Mestre Ataíde: diferenças entre revisões

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É clara sua preocupação com o bem-estar de sua família, provendo-lhe o necessário para o sustento, é generoso com os escravos e aprendizes.<ref name="Encurralado"/> Aparentemente era um fiel devoto da [[Igreja Católica]], tendo ingressado em dez irmandades religiosas, e vários documentos atestam sua frequência aos serviços religiosos junto com a família e seus escravos. A despeito disso, nas irmandades que eram ordens terceiras, nunca foi admitido como irmão professo, já que era "indigno", como ele mesmo declarou; seu estado de "concubinato renitente" o impedia.<ref name="Campos"/> Não obstante, explicava publicamente seu concubinato e os filhos naturais que tivera, situação comum mas irregular, como "uma fragilidade humana".<ref name="Encurralado"/>
 
Sua carreira militar até onde se sabe parece ter sido mais honorária do que efetiva, e mesmo se não, as artes parecem ter levado uma vantagem natural, pois foi descrito como sendo um "homem calmo, fino, rico de dotes e prestígios", que Fritz Teixeira de Salles chama de "diplomata ameno". No seu espólio foram arrolados vários bens, que podem ajudar a dar-nos uma ideia de seus hábitos e gostos pessoais, entre eles um [[pianoforte]], uma [[rabeca]], uma [[viola|violeta]], um [[fagote]], uma caixa de tabaco, espada, espingardas e pistolas, um relógio com corrente dourada, um par de fivelas de calção de pedras de topázio cravadas em prata dourada, calção de cetim riscado e colete de lã, chapéu, bengala de junco com cabo de prata, uma chácara, uma casa na Rua Nova, vários utensílios domiciliares como colheres de prata, louças, cadeiras, poltronas, armários, espelhos, bandeja, candeeiro, uma bíblia ilustrada, um dicionário de francês, o tratado ''Segredo das Artes'', uma luneta, um oratório dourado com cinco imagens. Seu gosto pela [[música]] parece evidente, a partir da posse de vários instrumentos e da frequente representação de figuras de músicos em suas pinturas, às vezes pintando orquestras inteiras com uma correta descrição dos instrumentos.<ref name="Encurralado">[http://wwwarchive.arteis/rfWNF#selection-101.unb.br/museu/teoria/secao30-112.htm0 ''Manoel da Costa Athayde: Encurralado no Paraíso'']. Instituto de Artes da Universidade de Brasília, s/d.</ref><ref>Frota, p. 24</ref>
 
==Obra==
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Há, porém, dilemas ainda mal resolvidos na caracterização do seu estilo. Na grande escala, os críticos ainda não chegaram a um consenso se o [[Barroco]] e o [[Rococó]] são [[Estilo (arte)|estilo]]s distintos ou se este último é apenas a fase final do primeiro. Já se discutiu tanto que a questão parece destinada a ficar para sempre irresolvida,<ref>Oliveira, Myriam Andrade Ribeiro. [http://books.google.com/books?id=Cw_po7q15qQC&printsec=frontcover&dq=aleijadinho&hl=pt-BR&ei=wLgrTLeZCYaKlwe0ovGrCQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=2&ved=0CCkQ6AEwAQ#v=onepage&q=aleijadinho&f=false ''Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus'']. Cosac Naify Edições, 2003, pp. 17-21</ref> e assim, no caso particular de Ataíde, ele é descrito ora como um barroco, ora como um rococó.<ref name="Itaú"/><ref name="Campos"/><ref>Morato, p. 2</ref> Disse Adalgisa Campos, sintetizando o problema, que os aspectos formais das obras de Ataíde revelam "a inspiração do artista em seu meio — salientando uma coloração tropical vibrante e figuras humanas mestiças – expressando através da forma rococó uma espiritualidade barroca".<ref name="Paiva"/> Mas essas incertezas não importam para a valorização de Ataíde como artista, pois é consenso que seu talento era superlativo, independentemente da escola à qual quisermos atribuí-lo. Nas palavras de Lélia Coelho Frota, "como a de todo artista de boa envergadura, a obra de Ataíde, em última análise, não se deixa prender a rótulos de escola ou de períodos. Transcende-os, é contemporânea de si mesma".<ref name="Itaú"/>
 
Outra peculiaridade é o atraso cronológico com que as artes brasileiras recebiam as últimas novidades estéticas europeias. Quando Ataíde iniciou a parte mais importante de sua carreira, só no início do século XIX, tanto Barroco como Rococó já eram formulações obsoletas na Europa, onde então reinavam o [[Neoclassicismo]] e o [[Romantismo]]. Entretanto, o pintor brasileiro permanecerá fiel àqueles cânones anteriores. No Brasil eram linguagens ainda com todo o poder de fogo, se comunicavam com plenitude com seu público e dele recebiam, como os documentos provam, ótima acolhida. Logo isso começaria a mudar, ao chegarem os primeiros neoclássicos no [[Rio de Janeiro (estado)|Rio de Janeiro]] e Nordeste. Em Minas a mudança só aconteceu mais tarde, depois da morte de Ataíde, cujo vulto dominou a pintura regional por trinta anos. Mais do que isso, ele encerra toda uma era na [[pintura brasileira]], sendo o último grande representante, e o maior deles, de um brilhante ciclo cultural que durara mais de duzentos anos.<ref>Frota, pp. 32-33</ref><ref name="Barroco brasileiro">[http://wwwenciclopedia.itaucultural.org.br/aplicExternastermo63/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=63&cd_idioma=28555barroco-brasileiro "Barroco brasileiro"]. In: ''Enciclopédia Itaú de Artes Visuais'', 22/11/2005</ref><ref>Andrade, pp. 109-111</ref><ref name="Morato, pp. 53-56"/><ref>Oliveira, Lúcia Lippi. ''Cultura é patrimônio: um guia''. FGV Editora, 2008. p. 22</ref>
 
===Tradição e originalidade===
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[[Ficheiro:Mestre-Athayde - Ceia - Car.jpg|thumb|300px|''A Última Ceia'', [[Caraça|Colégio do Caraça]].]]
 
Ataíde deixou muitas peças de menores dimensões sobre painéis de madeira ou tela, como ''Nossa Senhora do Carmo, o Menino Jesus e São Simão Stock'', hoje no [[Museu da Inconfidência]], ''Flagelação de Cristo'' no [[Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo]], ''Cristo a Caminho do Calvário'' no [[Museu de Arte Sacra de Mariana]], as ''Cenas da Vida de Abraão'' e ''São Francisco Alcança as Graças da Porciúncula'' na Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, ''Batismo de Cristo'' na [[Catedral de Mariana]] e outras,<ref name="Itaú Cultural">[http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8486/manoel-da-costa-athaide "Manoel da Costa Athaide"]. In: ''Enciclopédia Itaú Cultural'', 2018</ref> mas merece uma nota especial a sua tela ''A Última Ceia'', datada de 1828, regularmente citada na bibliografia como uma de suas obras mais importantes. Realizada para o tradicional [[Serra do Caraça|Colégio do Caraça]] em Santa Bárbara, nos dizeres de Castro & Souza de Deus é uma obra em que fica explícita sua qualidade de criador original, introduzindo em uma cena altamente patética elementos de descontração e informalidade, dando "um toque de graça profana a uma passagem tão tocante da vida de Cristo". Diversos detalhes anedóticos dão vivacidade à composição, como as serviçais em atividade, uma delas uma mulata, e a animada interação coreográfica dos Apóstolos com Cristo. Outros introduzem associações heterodoxas para a doutrina católica, pois sobre a mesa aparecem ossos de carneiro, "em flagrante contradição com os rígidos preceitos do Catolicismo de outrora quanto à restrição de consumo de carne durante a [[Quaresma]]".<ref>Castro, Henrique Moreira de & Souza de Deus, José Antônio. "Um olhar etnográfico sobre as paisagens culturais barrocas do hinterland brasileiro nas Minas oitocentistas". In: ''12 Encuentro de Geógrafos de América Latina''. Montevidéu, 03-07/04/2009</ref>
 
A tela foi emprestada para o Governo de Minas Gerais nos anos 70 por ocasião da inauguração do Palácio das Artes em [[Belo Horizonte]], e temeu-se que ela nunca mais fosse devolvida, "pagando" desta forma os gastos públicos para levar o asfalto até o Caraça.<ref name="Caraça"/> O colégio estava na época ainda abalado pelo desastroso incêndio de 1968, que encerrou sua brilhante trajetória como educandário da elite brasileira, mas salvando-se porém a obra do pintor.<ref name="Museu">Soares, Claudia. [http://www.revistamuseu.com.br/naestrada/naestrada.asp?id=2511 "Parque Nacional do Caraça, MG"]. In: ''Revista Museu'', 2003</ref> O caso despertou uma reação veemente em [[Carlos Drummond de Andrade]], que escreveu um poema sobre isso: ''Ataíde à Venda?'', do qual vale transcrever o fecho:
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[[File:Aleijadinho-cristo.jpg|thumb|''Cristo em oração no Horto das Oliveiras'', parte da série de esculturas de [[Aleijadinho]] encarnadas por Ataíde. Santuário de Matosinhos]]
 
Uma parte significativa da sua produção está na douração de [[talha dourada|talha em madeira]] e na pintura de estátuas, uma técnica conhecida como [[encarnação e estofamento]]. A encarnação se refere à imitação do efeito da carne humana nas partes do corpo que ficavam visíveis, como o rosto e as mãos, e o estofamento era a imitação de vestimentas e tecidos.<ref>Coelho, Beatriz. "Materiais, Técnica e Conservação". In: Coelho, Beatriz. ''Devoção e Arte: imaginária religiosa em Minas Gerais''. EdUSP, 2005, pp. 238-241</ref> Em várias igrejas mineiras o artista deixou sua marca em vários aspectos da decoração, e projetou a arquitetura de retábulos e objetos litúrgicos como castiçais e crucifixos.<ref name="Cronologia"/> O contrato para a decoração da [[Igreja de Nossa Senhora do Carmo (Ouro Preto)|Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo]], em Ouro Preto, onde faz observações detalhadas do trabalho, tendo projetado o altar-mor e dourado toda a talha da igreja, é um testemunho de sua compreensão da decoração dos interiores como uma obra unificada, na qual se integram arquitetura, pintura, talha e objetos.<ref>Krüger, Mário Júlio Teixeira. ''Na Génese das Racionalidades Modernas: Em torno de Alberti e do humanismo''. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 394</ref> Também foi [[ilustrador]], pintando [[iluminura]]s em Livros de Compromisso de irmandades.<ref>Campos, Adalgisa Arantes. [http://www.revistadehistoria.com.br/secao/perspectiva/arte-divina ''Arte divina'']. In: ''Revista de História'', 2010 (59)</ref> Nestas outras áreas sua obra é pouco estudada, mas se destaca a pintura da mais importante série de estátuas de [[Aleijadinho]], instalada nas Capelas dos Passos do [[Santuário do Bom Jesus de Matosinhos]].<ref>Schwarcz, name="ItaúLilia Cultural">[http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8486/manoel-da-costa-athaideMoritz "Manoel& daStarling, CostaHeloisa Athaide"]Murgel. In: ''EnciclopédiaBrasil: Itaúuma Culturalbiografia: Com novo pós-escrito''. Companhia das Letras, 20182015, p. 45 </ref><ref>Tosta, Antonio Luciano de Andrade & Coutinho, Eduardo F. ''Brazil''. ABC-Clio, 2015, p. 222</ref>
 
==Legado==
 
AsAtaíde diversasdesfruta apreciaçõesde críticasum elogiosaselevado queprestígio foramentre disseminadasa emcrítica trechosespecializada anteriorese tornamse desnecessáriotornou descreverpopular novamentemesmo entre o grande público. É em detalhegeral considerado o elevadomais prestígiorepresentativo denome queda opintura artistado desfrutaperíodo entrecolonial, amuito críticalouvado especializadapela equalidade mesmointrínseca odo grandeseu públicotrabalho quee pelas notas de algumoriginalidade modoem seseu interessaestilo pelae históriaem daseus motivos, sendo para vários críticos um dos precursores de uma arte doverdadeiramente Brasilbrasileira.<ref nosname="Encurralado"/><ref>Toledo, diasBenedito Lima de. ''Esplendor do Barroco hojeLuso-brasileiro''. EleAtelie Editorial, nome2012, ap. ruas258</ref><ref>Gardenal, eIsabel. escolas[http://www.unicamp.br/unicamp/sites/default/files/jornal/paginas/ju_590_paginacor_12_web.pdf e"Visões do foiparaíso"]. inclusive''Jornal temada Unicamp'', 17-23/03/2014</ref><ref name="Barroco brasileiro"/><ref name="Eunice">Santos, Eunice. "Passado inspira artistas". In: ''Jornal Lampião — Revista do Curso de estudosJornalismo da Universidade Federal de eruditosOuro estrangeirosPreto'', 2014 (16)</ref><ref>"Obra de Mestre Ataíde volta ao Caraça". Basta''Folha entãode lembrarSão quePaulo'', seu03/07/1995</ref> nomeÉ étambém consensualmenteconsiderado reconhecidoo comoponto deculminante importânciada centralrica nae longa históriatrajetória da pintura brasileirabarroca no Brasil, que depois dele entra em inexorável declínio,<ref>Pereira, Danielle. Mais[http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/03/17/o-renascimento-do-barroco-paulista/ "O renascimento do quebarroco umpaulista"]. patrimônioIn: nacional''Revista Pesquisa FAPESP'', ele2017 (253)</ref> foi uma referencia importante para vários outros pintores da região de Minas Gerais e ainda inspira novos artistas,.<ref alémname="Eunice"/> Ele dá nome a ruas e escolas e já foi inclusive tema de suasestudos de eruditos estrangeiros. Suas obras seremsão objeto de projetos escolares e seremsão infalivelmente mencionadas em guias turísticos ao lado das de Aleijadinho como entre os principais atrativos culturais da região de Minas.<ref Gerais.name="Eunice"/><ref>Leandro, Thiago. [http://www.uniban.br/hotsites/folha/pdu/artes.html ''Estudantes de Artes conferem de perto obras famosas em Minas Gerais'']. UNIBAN Paraná, s/d.</ref><ref>Francisco, Severino. [http://www.divirta-se.uai.com.br/html/sessao_7/2010/07/23/ficha_agitos/id_sessao=7&id_noticia=26451/ficha_agitos.shtml "Exposição traz trabalhos que dialogam com obra do Mestre Ataíde"]. ''Correio Braziliense'', 23/07/2010</ref><ref>[http://viajeaqui.abril.com.br/fotos/brasil/minas-gerais-501374.shtml?foto=4p "Cidades históricas de Minas Gerais"]. ''Viaje Aqui'', 03/06/2011</ref><ref>[http://www.ouropreto.org.br/port/igrejas.asp "Igrejas em Ouro Preto"]. Site oficial de Turismo de Ouro Preto, 04/06/2011</ref><ref>[http://173.203.31.59/Portal.Base/Web/VerContenido.aspx?ID=205505 "A arte como patrimônio da humanidade"]. ''Educar Brasil'', 04/06/2011</ref>
 
A pesquisa sobre sua vida e obra continua e ainda há muito por desvendar. ApesarHá poucos anos foram descobertas pinturas suas ocultas sob repinturas posteriores nas Capelas dos Passos do seuSantuário de Matosinhos, as mesmas capelas onde estão as estátuas de Aleijadinho que ele encarnou.<ref name="Medeiros"/> Apesar da sua grande prestígioreputação, ele é um artista ainda relativamente pouco estudado. Embora uma considerável bibliografia tenha abordado aspectos pontuais de seu trabalho, são poucos os estudos de fôlego que o enfocam com exclusividade, destacando-se as contribuições pioneiras de [[Rodrigo Mello Franco de Andrade]], Luís Jardim, Hannah Levy, Raimundo Trindade, Salomão de Vasconcellos e a Carlos Del Negro nos anos 1930-50, seguidas pelas monografias e dissertações de Ivo Porto de MenesesMenezes, Marly Spitali de Mendonça, Lélia Coelho Frota e Adalgisa Arantes Campos.<ref name="Fontes"/><ref name="Encurralado"/>
 
Há poucos anos foram descobertas pinturas suas ocultas sob repinturas posteriores nas Capelas dos Passos do Santuário de Matosinhos, as mesmas capelas onde estão as estátuas de Aleijadinho que ele encarnou.<ref name="Medeiros"/> Os órgãos do patrimônio histórico brasileiro realizam ações de conservação e restauro do seu legado material, mas por outro lado, em alguns casos suas pinturas estão em mau estado de conservação, e exigem a atenção urgente das autoridades responsáveis e das comunidades onde estão para que esses tesouros da arte colonial brasileira não se percam para sempre.<ref name="UFMG">[http://www.ufmg.br/diversa/1/artes.htm "Centro da UFMG recupera patrimônio histórico e artístico nacional e forma novos profissionais"]. In: ''Diversa - Revista da Universidade Federal de Minas Gerais'', 2002; 1 (1) </ref><ref>Sebastião, Walter. [http://www.divirta-se.uai.com.br/html/sessao_7/2010/07/25/ficha_agitos/id_sessao=7&id_noticia=26563/ficha_agitos.shtml "Obras de mestre Ataíde merecem mais atenção"]. ''Em Cultura'', 25/07/2010</ref><ref>Werneck, Gustavo. [http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2010/11/22/interna_gerais,193807/especialistas-encontram-uma-tonelada-de-lixo-no-teto-de-igreja.shtml "Especialistas encontram uma tonelada de lixo no teto de igreja"]. ''Estado de Minas'', 22/11/2010</ref><ref>[http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2011/05/comunidade-ajuda-restaurar-igreja-centenaria-em-piranga-em-mg.html "Comunidade ajuda a restaurar igreja centenária em Piranga, em MG"]. ''O Globo'', 26/05/2011</ref>
 
==Listagem de obras==