Quatrocentão: diferenças entre revisões

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Várias obras genealógicas foram produzidas no século XIX, especialmente depois da criação do [[Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro]], e vários trabalhos foram publicados no âmbito do IHGB enaltecendo a figura do bandeirante como símbolo do povo paulista e transformando-o em um gigante,<ref name="Bogaciovas"/> processo fortalecido na década de 1890 com a criação do [[Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo]] (IHFSP). Segundo Paulo César Marins, "romances, artigos em jornais e na revista do IHGSP, livros de história, monumentos escultóricos públicos e pinturas históricas foram os maiores responsáveis pela disseminação de uma visão positiva dos bandeirantes".<ref name="Veiga"/> O próprio perfil urbano se transformava, suprimindo-se as edificações simples dos primeiros tempos coloniais em troca de edificações majestosas, pois constituíam, segundo Paulo César Garcez Marins, "testemunho inegável – e incômodo – da precariedade material da capitania e da província paulista", readequando a cidade "ao triunfo dos fazendeiros e políticos republicanos, que guardavam muito pouco do cotidiano tosco, semi-isolado e sertanejo de seus ancestrais quinhentistas, seiscentistas e setecentistas".<ref name="Anais">Marins, Paulo César Garcez. [https://www.scielo.br/pdf/anaismp/v6-7n1/02.pdf "O Parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista"]. In: ''Anais do Museu Paulista'', (1998-1999); (6/7): 9-36</ref> Para Luís Soares de Camargo, "o contexto histórico é fácil de ser entendido: São Paulo despontava como a grande potência econômica, mas faltava-lhe uma base historiográfica que desse uma base a esse novo papel do povo paulista. Faltava um 'herói' para dar mais consistência a uma tese de que desde o passado São Paulo já estava à frente das demais capitanias. Assim, alguns historiadores deram início a esse processo de glorificação do passado paulista e a figura que mais se adequava era a dos sertanistas. Forte, corajoso, guerreiro".<ref name="Veiga">Veiga Edison. [https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/20/como-os-bandeirantes-cujas-homenagens-hoje-sao-questionadas-foram-alcados-a-herois-paulistas.htm "Como os bandeirantes, cujas homenagens hoje são questionadas, foram alçados a heróis paulistas"]. ''UOL'', 20/06/2020 </ref> Na análise de Gonçalves & Coelho, "o bandeirante ao mesmo tempo em que era uma figura capaz de unir todos os setores da sociedade e assim construir uma identidade histórica homogênea, também tinha a função de separar as antigas famílias paulistas de um grupo de imigrantes que acabara de chegar. O mesmo bandeirante acionado para unir a população, permitia a distinção de um grupo de pessoas que se consideravam descendentes dos fundadores da cidade de São Paulo".<ref name="Gonçalves">Gonçalves, Andressa da Silva & Coelho, Mauro Cezar. [https://periodicos.unifesspa.edu.br/index.php/escritasdotempo/article/view/1384 "As narrativas didáticas sobre o bandeirante: entre a mitologia bandeirante e a crítica histórica"]. In: ''Escritas do Tempo'', 2020; 2 (5)</ref>
 
Essa visão magnificada do bandeirante e sua transformação em símbolo de todo o povo, concentrada nos trabalhos do IHFSPIHGSP, foi muito apoiada por [[Washington Luís]], prefeito da capital, governador do estado e depois presidente do Brasil, e através de sua influência muitas publicações foram editadas e a imagem do bandeirante se tornou mais popular.<ref name="Gonçalves"/> O orgulho das famílias pioneiras foi renovado com a publicação, no início do século XX, da obra ''[[Genealogia Paulistana]]'', de [[Luís Gonzaga da Silva Leme]], uma revisão muito expandida da obra de Pedro Taques, enfatizando a ascendência indígena de grande parte das famílias mais distintas do tempo do bandeirismo e dos grandes cafeicultores, estabelecendo elos entre os antigos sertanistas e as elites emergentes do café.<ref name="Anais"/> Durante a [[Revolução de 1932]] foram impressas cédulas que levavam as efígies dos bandeirantes e outros símbolos paulistas. Por ocasião das grandiosas comemorações do Quarto Centenário, em 1954, a glorificação do bandeirante e das famílias quatrocentonas estava em seu auge, foram reeditadas obras que falavam da antiga Vila de [[São Paulo de Piratininga]] e foram lançadas obras inéditas.<ref name="Bogaciovas"/><ref name="Veiga"/><ref name="Anais"/> No entanto, neste momento já ficava claro que outros atores sociais, de diferentes origens, haviam dado contribuições valiosas para o crescimento da cidade e do estado, especialmente os imigrantes, dando margem a uma disputa pela memória a ser construída.<ref name="Anais"/>
 
Entre as principais obras que retratavam os bandeirantes na primeira parte do século XX, encontram-se ''São Paulo nos primeiros anos'', ''São Paulo no século XVI'', ''São Paulo seiscentista'' e ''História Geral das Bandeiras Paulistas'', em 11 volumes, de [[Afonso d'Escragnolle Taunay]], que desempenhou um papel central na consagração dos quatrocentões, tanto pelas suas publicações, onde recuperou os escritos de frei Gaspar e Pedro Taques, dando-lhes grande crédito, quanto pela sua atividade como diretor do [[Museu Paulista]] entre 1917 e 1945, onde privilegiou um vigoroso, apologético e de certa forma anacrônico discurso em torno dos bandeirantes, que envolveu a produção de iconografia e estatuária.<ref name="Schneider"/><ref name="Veiga"/> Segundo Alberto Schneider, ao reeditar Gaspar e Taques e tomá-los como referências fundamentais na reconstrução da imagem do bandeirante, Taunay lançou as bases da moderna mitologia que ainda cerca os pioneiros.<ref name="Schneider"/> Para Marcelo Bogaciovas, seu trabalho representou "o ápice da mitificação do bandeirantismo".<ref name="Bogaciovas"/> Essa ideologia penetrou nos livros didáticos produzidos na época, gerando uma persistente imagem pública identificando o bandeirante com o paulista e exaltando sua mitologia heroica como um indicativo de sua liderança na formação da sociedade brasileira, muitas vezes esquecendo ou minimizando suas ações violentas e destrutivas.<ref name="Gonçalves"/>