Artista

pessoa que se dedica à arte
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Um artista é, de modo geral, uma pessoa envolvida na produção de arte, no fazer artístico criativo. No entanto, essa definição tem variado imensamente ao longo dos séculos e nas diferentes culturas, e seu conceito está diretamente ligado ao conceito de arte, igualmente controverso e variável. Pesquisas científicas tem consistentemente falhado na tentativa de enquadrar o que se entende por artista dentro de parâmetros fixos e de valor universal, mas isso não impede que as tentativas continuem a se multiplicar.[1]

Reconstrução de uma cena pré-histórica, em que homens primitivos pintam animais em uma caverna

Em tempos pré-históricos, quando os primeiros seres humanos começaram a deixar pinturas em cavernas e criar esculturas e adornos pessoais, acredita-se que o artista devia ser uma espécie de xamã, usando tais objetos para funções religiosas ou mágicas, mas é possível que mesmo em tempos remotos já se praticasse arte de maneira muito mais complexa, de certa forma semelhante à de hoje, entendendo-a como um painel onde se projetavam imagens e pensamentos importantes para aqueles povos.[2]

Segundo escritores célebres como Platão e Aristóteles, na Grécia Clássica os artistas em geral eram considerados simples técnicos qualificados, trabalhadores mecânicos,[3] ainda que se reconhecesse que seu trabalho exigia criatividade, inteligência e capacidade de organização.[4][5] Esta impressão se cristalizou, mas pesquisas recentes sugerem que a situação pode ter sido diferente. Segundo relatos antigos, os escultores, por exemplo, eram muito respeitados como criadores que obras que pareciam vivas,[3] mas não havia sequer uma palavra para designar arte, e o termo usado, "tecnhê", significava apenas técnica ou habilidade para realizar algo de acordo com um plano e regras definidas, sendo aplicável a qualquer atividade produtiva.[6]

Seja como for, naqueles tempos a arte já era objeto de grande interesse teórico — foi ali que surgiu o embrião da Estética como um ramo autônomo da Filosofia[7] — e era submetida a uma série de regras convencionadas coletivamente, que identificavam beleza com perfeição, harmonia e virtude, enfatizavam a preocupação ética e social, estabeleciam rígidas hierarquias de valor e tinha um caráter idealista. Punha-se os artistas a serviço do Estado, da Religião e das elites como veículos das ideologias dominantes, trabalhando em obras que tinham, entre outros objetivos, o de desempenhar uma função social educativa e moralizadora, num período em que a população era em grande parte analfabeta. Explica-se assim a função social que se esperava para a arte e a obediência aos cânones consagrados que se esperava dos artistas.[8][9][10][11]

O trabalho do escultor no Renascimento. Relevo de Andrea Pisano, 1334-1336.

Esta situação permaneceu mais ou menos inalterada até o Renascimento, quando se iniciou uma grande recuperação dos valores do antigo Classicismo. Os artistas em geral ainda estavam submetidos a um complexo conjunto de princípios técnicos e estéticos rigorosos, estudados em um longo período de aprendizado nas guildas de artesãos, onde o ensino era informal, e se vinculavam fortemente à tradição deixada por mestres consagrados. Para eles, o exemplo dos melhores artistas era um padrão a ser observado e imitado, a fim de que as novas obras atingissem o mesmo patamar de qualidade encontrado na produção mais prestigiada.[12][13][14] Estas ideias não eram novas, mas encontraram uma estruturação formal inovadora com o surgimento do academismo, uma metodologia de ensino sistemática e graduada, semelhante à das universidades. Como disse Lilia Schwarcz, o sistema acadêmico, que a despeito de inumeráveis polêmicas manteria seu prestígio até fins do século XIX, revelava um entendimento da arte, à inspiração dos clássicos, como um fenômeno demonstrável e transmissível de acordo com regras precisas, que tinham um caráter quase científico, onde a autoridade de tradição era acatada sem grandes questionamentos. Ao artista cabia unicamente inserir-se nesta corrente dominante ou ficar à margem do mercado.[15]

E, de fato, neste momento se iniciava a luta dos artistas pela sua liberdade e independência criativa. Vários fatores contribuíram para isso. De acordo com Pierre Bourdieu, a ênfase na referência ao antigo significava um paralelismo com uma ordem social concebida sobre fundamentos morais, mas o concomitante culto ao virtuosismo técnico serviu para deslocar parte do interesse principal do conteúdo para a forma,[16] e a cada dia se tornava mais difícil concordar com os clássicos no preceito de que a beleza era um valor perene e universal.[17][18] Desenvolvia-se também o conceito de gênio, alguém especialmente favorecido pela natureza e acima das convenções ordinárias, alguém que podia exercer sua criatividade com muito mais desenvoltura.[12] O trabalho das academias, institucionalizando e sistematizando um novo método e realmente revolucionando o antigo sistema de ensino das guildas, muito contribuiu para elevar o status social dos artistas, aproximando-os dos intelectuais, dos humanistas, dos profissionais liberais e mesmo dos profetas, dando-lhes isso também mais autonomia.[12][16]

Artistas na boemia, em pintura de Columbano Bordalo Pinheiro retratando o Grupo do Leão.

Por outro lado, a segurança do emprego e a garantia de inserção do trabalho no mercado proporcionada pelo sistema das guildas, onde a grande maioria das obras era produzida sob encomenda direta, se perderam em grande medida, e a crescente valorização do gênio individual, junto com as críticas que cada vez mais artistas faziam ao rigor, ao racionalismo e ao conservadorismo da doutrina acadêmica, resultaram na progressiva fragilização e fragmentação do antes monolítico universo artístico, com o resultado de os artistas passarem a viver uma vida incerta, muitas vezes perambulando pelas cortes à procura de mecenas que os patrocinassem.[12][14] Segundo Nikolaus Pevsner, esta a seria a origem da imagem do artista como um boêmio, um rebelde e um visionário incompreendido, vivendo entre orgulho e miséria, que atingiu seu ápice entre os românticos dos séculos XVIII-XIX,[14] para quem a afirmação da individualidade e da originalidade se tornou uma obsessão. Foi quando, enfim, a palavra "artista" adquiriu um significado razoavelmente preciso e universal (no ocidente), apontando para o indivíduo possuidor não só de habilidade técnica, mas principalmente de imaginação criativa e de um talento especial inato.[19]

Ao mesmo tempo, a ascensão do Esteticismo, pregando que a arte deve valer apenas por si mesma ("arte pela arte"), desvinculando-a de sua função utilitária (moral, educativa, etc), junto com profundas mudanças sociais e políticas, a dinamização da crítica de arte na imprensa, acessível a um grande público, e o crescimento do mercado de classe média, em grande parte independente dos salões oficiais acadêmicos e com preferências ecléticas, no final do século XIX abriram o campo para a pulverização das hierarquias de valor e para a libertação definitiva dos artistas dos cânones genéricos coletivos e tradicionalistas, assumindo a primazia a visão individual e o experimentalismo.[13][20][21][22][23] Robert Rosenblum disse que este período marca a dissolução da função do artista como intérprete das virtudes morais coletivas.[24] Porém, como assinala Renato Ortiz, foi um período de grandes contradições, com correntes radicalmente opostas em debate: "este processo de autonomização é contemporâneo ao florescimento de uma cultura pautada por leis de um mercado ampliado de bens simbólicos. A emergência do folhetim, do jornal diário, da fotografia, atividades vinculadas ao aspecto produtivo e econômico, põem em causa justamente a autonomia recém conquistada".[20]

Instalação interativa de Maurice Benayoun que faz uso de tecnologia sofisticada e exige a participação do público na criação da obra.

Se essa liberdade deu origem a uma grande diversificação no universo artístico, multiplicando-se as propostas experimentais e as posturas artísticas diferenciadas, que representaram o ocaso da antiga tradição acadêmica e o rechaço maciço do passado e de todas as convenções homogeneizantes, por outro lado desencadeou crescente dificuldade de se definir e mesmo reconhecer o que é uma obra de arte e o que é um artista. A situação se tornou tão complexa e controversa que, chegando-se a meados do século XX, em que se iniciava o fenômeno da globalização e a cultura de massa determinava vastas mudanças sociais e culturais, inclusive nos modos de produção, significação e consumo de arte, muitos intelectuais desistiram inteiramente de sequer tentar essa definição, sem que isso impedisse que muitos outros a continuassem buscando, mas sem chegar a qualquer resultado consensual.[20][25][26][27][28] Entre as mudanças mais importantes que se verificaram neste período estão o relativo desprestígio da obra como um produto final, decorrente de um projeto individual pré-estabelecido e almejando um resultado fixo previsível, e a introdução da noção do artista como co-criador da obra junto com seu público, tornando-se antes um mediador, um catalisador e um facilitador, debatendo a função e os propósitos do artista neste novo mundo, deixando amplo espaço para o improviso, a ludicidade, a irracionalidade, o automatismo, a informalidade, a interatividade e o acaso, e deslocando grande parte do interesse para a linguagem artística em si, para os conceitos e para o processo criativo, e não para o produto acabado em mídias tradicionais.[25][29][30] Diante dos novos horizontes abertos pela tecnologia recente, George Landow afirmou que "a hipermídia representa o fim da era de autoria individual", e o desenvolvimento da inteligência artificial vem postulando a possibilidade de máquinas, como os computadores, serem capazes de criar verdadeiras obras de arte e serem consideradas "artistas".[30]

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Referências

  1. Karttunen, Sari. "How to identify artists? Defining the population for ‘status-of-the-artist’ studies". In: Poetics, 1998; 26 (1):1–19
  2. Lewin, Roger. Human Evolution: An Illustrated Introduction Arquivado em 20 de dezembro de 2013, no Wayback Machine.. Blackwell Publishing, 1999, pp. 230-231
  3. a b Eaverly, Mary Ann. "The Status of Artists". In: The Classical Review (New Series), 2012; 62 (02):641-642
  4. Tatarkiewicz, Władysław. Historia de la estética I. La estética antigua. Akal, 2002, p. 39
  5. Beardsley, Monroe C. & Hospers, John. Estética. Historia y fundamentos. Cátedra, 1990, p. 2
  6. Parry, Richard. "Episteme and Techne". In: Zalta, Edward N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2008
  7. Tanner, Jeremy. "Social Structure, Cultural Racionalisation and Aesthetic Judgement in Classical Greece". In: Rutter, N. Keith & Sparkes, Brian. Word and image in ancient Greece. Edinburgh University Press, 2000.p. 183
  8. Boardnan, John. "Greek Art and Architecture". In Boradnan, John; Griffin, Jasper & Murray, Oswin. The Oxford History of Greece and the Hellenistic World. Oxford University Press, 1991, pp. 330-332
  9. Lessa, Fábio de Souza. "Corpo e Cidadania em Atenas Clássica". In Themil, Neyde; Bustamante, Regina Maria da Cunha & Lessa, Fábio de Souza (orgs). Olhares do corpo. Mauad Editora Ltda, 2003, pp. 48-49
  10. Steiner, Deborah. Images in mind: Statues in Archaic and Classical Greek Literature and Thought. Princeton University Press, 2001. pp. 26-33; 35
  11. Beardsley, Monroe. Aesthetics from classical Greece to the present. University of Alabama Press, 1966. pp. 27-28
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