Guillaume de Machaut: diferenças entre revisões
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Pequenos ajustes |
|||
Linha 3:
|imagem = Machaut 1.jpg
|imagem_tamanho =300px
|imagem_legenda =Guillaume de Machaut em uma miniatura francesa do
|fundo =instrumentista_sem_vocal
|nome completo =Guillaume de Machaut
Linha 20:
}}
'''Guillaume de Machaut''' (também '''Machau''' ou '''Machault'''; [[Machault (Ardenas)|Machault]] (?), c. [[1300]] – [[Reims]], abril de [[1377]]) foi um [[compositor]] e [[poeta]] [[França|francês]]. Nada se sabe de sua família e seus primeiros anos são obscuros, mas recebeu sólida educação musical, literária e [[artes liberais|humanistica]] em [[Reims]] e [[Paris]]. Iniciou sua carreira servindo [[João I da Boémia|João de Luxemburgo]], [[rei da Boêmia]], mais tarde trabalhando para sua filha [[Bona de Luxemburgo]] e [[Carlos II de Navarra]], recebendo o patrocínio de outros reis e nobres de alta categoria. Ao mesmo tempo, fez carreira na Igreja, sendo indicado [[cônego]] de várias dioceses, mas nunca chegou a ser ordenado padre. Suas posições eclesiásticas foram em sua maioria provisórias, salvo em Reims, onde efetivou-se, passando metade de sua vida ligado ao [[cabido]] da [[Catedral de Reims|Catedral]], mas pouco se sabe de sua atividade nelas.
É mais lembrado como compositor e poeta, considerado o maior da França no
Suas obras correram a Europa, fundando toda uma escola que permaneceu influente por mais de um século, sendo importante referência para poetas celebrados como [[Geoffrey Chaucer]], [[Jean Froissart]], [[Eustache Deschamps]] e [[Cristina de
▲É mais lembrado como compositor e poeta, considerado o maior da França no século XIV, sendo um inovador em ambos os campos. Na música adotou muitas novidades rítmicas, melódicas, harmônicas e notacionais introduzidas pela [[polifonia]] da ''[[Ars Nova]]'', sendo um dos grandes representantes desta escola e um dos criadores da canção polifônica, mas manteve laços com a tradição anterior da ''[[Ars Antiqua]]'' e com a tradição do canto [[homofonia|homofônico]] [[trovador]]esco, conseguindo um equilíbrio raro e muito apreciado entre o texto e a música. Na poesia estabeleceu um novo modo narrativo e consolidou gêneros líricos que se tornariam dominantes nos séculos XIV e XV, como a [[balada]], o ''[[virelai]]'' e o ''[[rondeau]]'', que também eram gêneros musicais. Deixou produção numerosa na poesia lírica e quatorze longos poemas narrativos (''dits''), bem como em diversos formatos de canção polifônica e homofônica, com temáticas que tratam principalmente dos ideais [[cavalaria|cavaleirescos]] e do [[amor cortês]], mas abordando também assuntos políticos e sociais e os contrastes entre o mundo ideal e o mundo real. Sua grande ênfase na dignidade e valor do indivíduo, suas preocupações pedagógicas e seu interesse na boa formação ética, intelectual e técnica dos artistas, que os capacitassem a se tornar modelos e líderes para a sociedade, estabelecendo no mundo a harmonia divina através da arte, o tornam um proto-[[humanista]].
▲Suas obras correram a Europa, fundando toda uma escola que permaneceu influente por mais de um século, sendo importante referência para poetas celebrados como [[Geoffrey Chaucer]], [[Jean Froissart]], [[Eustache Deschamps]] e [[Cristina de Pizan]] e para numerosos compositores. No século XVI sua contribuição havia sido esquecida, e somente no século XIX iniciou uma lenta recuperação. A partir da segunda metade do século XX tornou-se um dos poetas e compositores medievais mais estudados, sendo objeto de volumosa bibliografia. Suas músicas estão entre as mais gravadas e executadas do repertório medieval, voltando a inspirar vários criadores, e além do valor histórico e intrínseco da sua produção literária, certos aspectos de sua construção textual, como os cruzamentos entre ficção e realidade, as narrativas com focos múltiplos e a presença constante de elementos [[autobiografia|autobiográficos]], [[metalinguagem|metalinguísticos]] e [[intertextualidade|intertextuais]], interessam hoje por suas afinidades com a literatura [[pós-moderna]]. Suas obras mais afamadas são o poema narrativo ''Le Livre dou Voir Dit'' e a composição sacra ''[[Missa de Notre Dame]]'', um dos maiores marcos da [[música da Idade Média]].
==Vida==
Guillaume de Machaut é um dos artistas medievais cuja vida é mais bem conhecida; mesmo assim, ela ainda tem importantes lacunas. Nasceu em data incerta. A maioria dos críticos o coloca nascendo entre 1300 e 1302. Tampouco o lugar de nascimento é conhecido com segurança, mas deve ter ocorrido na cidade de Machault, a cerca de 39 quilômetros de Reims, na [[Champagne (província)|Champagne]]. Nada se sabe sobre seus pais e sobre sua família imediata só resta notícia de Jean, seu irmão mais novo, que foi clérigo na [[diocese de Reims]]. [[Eustache Deschamps]], poeta e seu seguidor, pode ter sido seu sobrinho. Biografias mais antigas davam-lhe uma origem nobre, hoje é considerado um plebeu, mas Lawrence Earp diz que as evidências neste aspecto são pobres demais tanto para afirmar quanto para negar qualquer uma das alternativas. Talvez Machaut também tenha se associado à Igreja desde cedo como o irmão, e sua educação deve ter ocorrido na escola da [[Catedral de Reims]]. Foi chamado de clérigo (''clerc, clers''), mas a palavra tinha um significado diferente naqueles tempos, nem sempre indicava ordens sacras, em vez significava genericamente alguém que havia recebido uma boa educação em uma escola da Igreja. Fez estudos superiores provavelmente na [[Universidade de Paris]], onde obteve um grau de mestre, mas não se sabe exatamente em que domínio; ao que parece, nas [[artes liberais]], que eram divididas no
[[
Em torno de 1323 passou a servir [[João I da Boémia|João de Luxemburgo]], [[rei da Boêmia]], uma associação que seria fundamental para seu posterior desenvolvimento como compositor e poeta cortesão, tanto pelo apoio recebido e pelo acesso que lhe proporcionou a um ambiente cultural florescente quanto pelo exemplo pessoal, tomando a figura do rei como um modelo do [[cavaleiro]] ideal: generoso, valente, audaz, símbolo de valores tradicionais que o poeta lamentará ver perdendo-se em sua geração, qualidades pelas quais ele de fato tornou-se famoso, e que se tornariam uma temática recorrente na produção literária de Machaut.<ref name="Sophie">Hardy, Sophie. ''Edition critique de la Prise d’Alexandrie de Guillaume de Machaut''. Tese de Doutorado. Université d’Orléans, 2011, p. lxxix</ref><ref>Montefu, pp. 47-50</ref><ref>Leech-Wilkinson, Daniel. [https://www.academia.edu/9970945/Leech-Wilkinson_and_Palmer_Guillaume_de_Machaut_Le_Livre_dou_Voir_Dit ''Guillaume de Machaut: Le Livre dou Voir Dit'']. Garland Publishing, 1998, pp. xiv-xv</ref> São desta época suas mais antigas composições e poesias cuja data é razoavelmente assegurada, e também pode ter feito nesses anos contato pessoal com [[Philippe de Vitry]], um dos grandes teóricos e compositores da ''[[Ars Nova]]'', que seria um de seus modelos artísticos. Deve da mesma forma ter entrado em contato com a corte francesa, uma vez que João tinha ligações com ela e encontrou-se com o rei [[Carlos IV da França|Carlos IV]] em Reims, onde assistiu à sua coroação, em [[Toulouse]] e outras cidades. João foi um militar ativo e fez diversas campanhas no centro e oeste da Europa nas décadas de 1320 e 1330. A partir de descrições geográficas e factuais que deixou em seus poemas, Machaut presumivelmente o acompanhou em diversas delas, e sob o patrocínio de seu senhor iniciou seu ''[[cursus honorum]]''. Por volta de 1330 foi nomeado [[esmoler]], responsável pela distribuição das esmolas aos pobres, em 1332 foi indicado [[notário]], e no ano seguinte tornou-se secretário do rei João, estando entre seus deveres ler poesias para ele. Nesta altura suas viagens com o rei devem ter praticamente cessado, passando a viver como um cortesão. A corte era rica em vida cultural, e Machaut por certo deve ter-se beneficiado deste ambiente favorável às artes. Ele produziria para o rei muitas obras, destacando-se os poemas ''Dit du Vergier'' e sobretudo o ''Jugement dou Roy de Behaingne'', um dos mais importantes desta fase, que se tornou muito popular e consolidou sua fama como poeta cortesão.<ref>Earp, pp. 8-15</ref>
Linha 38 ⟶ 37:
Em 1337 ele finalmente foi [[vigário colado|colado]] cônego da Catedral de Reims por procuração, e em 1340 tomou posse efetiva. O canonicato de Reims exigia Ordens para a posse, e assim Machaut deve ter sido feito pelo menos [[subdiácono]]. A posição era muito rendosa e prestigiada devido ao fato de que nesta Catedral eram coroados os reis da França. A partir desta indicação deve ter fixado residência em Reims. Não há muitas atestações seguras de sua estada na cidade, mas a Catedral exigia de seus cônegos a presença por pelo menos 28 semanas em cada ano. Ele continuava oficialmente a serviço de João de Luxemburgo, e há evidências de viagens. Parece que foi-lhe concedido em 1343 também um canonicato em [[Amiens]], mas pouco se sabe a respeito.<ref>Earp, pp. 20-24</ref><ref>Robertson, Anne Walters. ''Guillaume de Machaut and Reims: Context and Meaning in His Musical Works''. Cambridge University Press, 2002, pp. 33-34</ref>
[[
[[Imagem:Machaut zloun.jpg|thumb|250px|Iluminura retratando Machaut e Carlos II de Navarra.]]
Com a morte do rei em 1346 na [[Batalha de Crécy]], encerra-se definitivamente este período em sua vida. É possível que desde algum tempo antes já estivesse servindo a filha de seu antigo mestre, [[Bona de Luxemburgo]], casada com João de Valois, [[duque da Normandia]]. Machaut aparentemente foi-lhe devotado, escrevendo-lhe poesias e músicas e pelo menos um importante poema, ''Remède de Fortune'', e deve datar deste período sua primeira coleção organizada de obras, preservada no ''Manuscrito C'', que revela sensíveis avanços em relação às suas primeiras criações, mas pouco se sabe com segurança sobre esta fase. Segundo Earp, "o mecenato artístico da misteriosa Bona de Luxemburgo parece oferecer interessantes pistas para novas pesquisas, em particular no que toca à possível conexão entre o mecenato de Bona e o desenvolvimento por Machaut das formas [[polifonia|polifônicas]] fixas, assim como seu cultivo do ''[[virelai]]'' [[monofonia|monofônico]] como uma música de dança".<ref>Earp, pp. 24-26</ref>
Linha 54:
===Música===
{{AP|Música medieval|Ars Nova|Ars Antiqua}}
Machaut viveu num tempo em que a música tinha amplas associações [[ética]]s e [[metafísica]]s. Nas universidades medievais e nas escolas catedralícias a música era considerada a única das artes morais e especulativas, fazendo parte do
::"Boécio distinguia por analogia a ''musica mundana'', a [[Música das esferas|música das esferas celestes]], da ''musica humana'', o ritmo biológico do corpo, das pulsações e doenças periódicas, e também da ''musica instrumentalis'', o som dos instrumentos musicais, que por extensão incluía a sonoridade da poesia. Numa ressonância da ''musica mundana'', o mundo medieval via na ''musica humana'' e na ''musica instrumentalis'' o processo pelo qual a alma meditativa individual se expressava externamente, estabelecendo assim uma conexão entre o corpo humano, a voz e a alma. Desta maneira, a música desencadeava uma harmonia interna que estabelecia uma relação entre o macrocosmo e o microcosmo".<ref name="Méllier"/>
[[File:Guillaume de Machaut - balada S’amours ne fait par sa grace adoucir.jpg|thumb|left|Balada ''S'amours ne fait par sa grace adoucir''.]]▼
▲[[
Este período testemunhou a transição entre a ''[[Ars Antiqua]]'' e a ''[[Ars Nova]]''. A ''Ars Antiqua'' representou a fundação da [[polifonia]], com o acréscimo de uma e depois mais linhas melódicas em [[Contraponto (música)|contraponto]] ao [[canto gregoriano]]. A [[Escola de Notre-Dame]] em Paris assumiu o protagonismo das novas pesquisas sonoras, num movimento caracterizado pelas relações equilibradas entre texto e música e pelo absoluto domínio dos ritmos ternários, em alusão à [[Santíssima Trindade]], que eram variados a partir de seis modos rítmicos derivados da métrica poética, e de harmonias simples baseadas em intervalos de oitava e quinta, considerados "perfeitos", dando-se grande ênfase a proporções matemáticas e simbolismos numéricos fundamentados na teoria da harmonia das esferas e na doutrina religiosa. A sistematização da ''Ars Nova'' principalmente por [[Philippe de Vitry]] e [[Johannes de Muris]] deu as bases para o estilo maduro de Machaut, que mostra um forte interesse pelas intrincadas e caprichosas relações rítmicas, melódicas e harmônicas introduzidas pela ''Ars Nova'' e pela sua derivação da ''[[Ars Subtilior]]'', onde o texto passava a ser subordinado à música, dando-lhe muito maior liberdade, embora ainda regida por regras rigorosas.<ref name="Kappler"/><ref name="Greenberg"/><ref name="Hindley"/> No entanto, ele foi uma figura de exceção nesta evolução, procurando preservar a importância do texto em paridade com uma maior complexidade musical.<ref name="Butterfield"/><ref name="Göllner"/> Seu tratamento da [[Harmonia (música)|harmonia]] se inseriu no contexto transicional de sua época, quando começava o abandono dos arcaicos [[Modos gregos|modos eclesiásticos]], que remontavam à [[música da Grécia Antiga]], em favor do estabelecimento das primeiras fundações da [[tonalidade]], mas características verdadeiramente tonais só se consolidariam na música do século XVI.<ref name="Process"/><ref name="Hamlyn">Hindley, Geoffrey (ed.). ''The Larousse Encyclopedia of Music''. Hamlyn, 1971, pp. 54-66</ref> Os modos, de fato, organizavam as relações entre as notas de uma certa [[escala musical]] [[Escala diatônica|diatônica]] e sua nota fundamental dava o "tom" geral da composição, mas eles não pressupunham o conceito musical de harmonia propriamente dito, sendo estabelecidos para a linha melódica isolada do canto gregoriano, sobre o qual se construíram as elaborações polifônicas posteriores.<ref name="Hamlyn"/> Assim, em sua produção não existem elementos típicos da música tonal, como as [[modulação|modulações]] e [[progressão harmônica|progressões harmônicas]], e as [[cadência]]s funcionam mais como pontos de descanso do que organizam a estrutura e dirigem o discurso musical, e não guardam relação muito clara com a harmonia geral das peças.<ref name="Process">Moll, Kevin N. ''Process in the Time of Dufay: Perspectives from German Musicology''. Routledge, 2014, pp. 305-311</ref><ref>Turcic, Patricia A. ''Words and Music in Communion: an analysis of Guillaume de Machaut's Le Lay de la Fonteinne in Cultural Context''. University of Maine, 2001, p. 45</ref> Como cada modo era associado a determinada atmosfera psicológica ou simbólica, Machaut aproveitou-se dessas convenções ainda correntes para explorar conscientemente as possibilidades de combinação de diferentes modos e o uso de dissonâncias para criar tensões formais e expressivas. Esses traços, antes do que defeitos, como foram considerados até recentemente, eram a linguagem de seu tempo.<ref name="Dufourcet"/><ref name="Boogaart">Boogaart, Jacques. "Thought-Provoking Dissonances: Remarks about Machaut's Compositional Licences in Relation to his Texts"]. In: ''Dutch Journal of Music Theory'', 2007; 12 (3):273-292 </ref><ref name="Performance"/>▼
▲Este período testemunhou a transição entre a ''[[Ars Antiqua]]'' e a ''[[Ars Nova]]''. A ''Ars Antiqua'' representou a fundação da [[polifonia]], com o acréscimo de uma e depois mais linhas melódicas em [[Contraponto (música)|contraponto]] ao [[canto gregoriano]]. A [[Escola de Notre-Dame]] em Paris assumiu o protagonismo das novas pesquisas sonoras, num movimento caracterizado pelas relações equilibradas entre texto e música e pelo absoluto domínio dos ritmos ternários, em alusão à [[Santíssima Trindade]], que eram variados a partir de seis modos rítmicos derivados da métrica poética, e de harmonias simples baseadas em intervalos de oitava e quinta, considerados "perfeitos", dando-se grande ênfase a proporções matemáticas e simbolismos numéricos fundamentados na teoria da harmonia das esferas e na doutrina religiosa. A sistematização da ''Ars Nova'' principalmente por [[Philippe de Vitry]] e [[Johannes de Muris]] deu as bases para o estilo maduro de Machaut, que mostra um forte interesse pelas intrincadas e caprichosas relações rítmicas, melódicas e harmônicas introduzidas pela ''Ars Nova'' e pela sua derivação da ''[[Ars Subtilior]]'', onde o texto passava a ser subordinado à música, dando-lhe muito maior liberdade, embora ainda regida por regras rigorosas.<ref name="Kappler"/><ref name="Greenberg"/><ref name="Hindley"/> No entanto, ele foi uma figura de exceção nesta evolução, procurando preservar a importância do texto em paridade com uma maior complexidade musical.<ref name="Butterfield"/><ref name="Göllner"/> Seu tratamento da [[Harmonia (música)|harmonia]] se inseriu no contexto transicional de sua época, quando começava o abandono dos arcaicos [[Modos gregos|modos eclesiásticos]], que remontavam à [[música da Grécia Antiga]], em favor do estabelecimento das primeiras fundações da [[tonalidade]], mas características verdadeiramente tonais só se consolidariam na música do
Os avanços da ''Ars Nova'' foram condenados pela Igreja e banidos da música sacra, considerados como profanos e sensuais e como obstáculos para o entendimento do texto cantado, além de ameaçarem a pureza da devoção. Os interditos tiveram pouco efeito prático, mas provocaram o redirecionamento dos principais esforços da vanguarda musical para o terreno secular. A ''Ars Nova'' introduziu também uma série de novidades na [[notação musical]], necessárias para registrar com mais precisão as novas subdivisões das notas e os novos ritmos.<ref name="Kappler">Kappler, Claude. [http://books.openedition.org/pup/2829 "La Prière Chantée: de la polyphonie primitive à Guillaume de Machaut"]. In: ''Senefiance'', 1981; (10):346-347</ref><ref name="Greenberg">Greenberg, Hope. [http://www.uvm.edu/~hag/personal/portfolio/224paper3.html ''De Chant et de Ditté Nouvelle: Machaut and the French Ars Nova'']. University of Vermont, Department of History, 2005</ref><ref name="Hindley">Hindley, pp. 70-72</ref> Embora não fosse o seu criador, sendo devedor de precursores como [[Jehannot de Lescurel]], [[Adam de la Halle]], [[Jean Acart de Hesdin]] e [[Jean de Le Mote]], coube-lhe um papel decisivo na consolidação e aperfeiçoamento de novas estruturas e formas musicais, dentre as mais importantes, as chamadas "formas fixas" da ''Ars Nova'', que eram também formas poéticas: a ''[[Balada|ballade]]'' (balada), o ''[[virelai]]'' e o ''[[rondeau]]'', que desenvolviam especialmente um tratamento polifônico do texto e enriqueciam a musicalização tipicamente silábica da poesia introduzindo [[melisma]]s na melodia. Pelo seu importante papel neste campo justifica-se que muitos críticos o considerem o verdadeiro fundador da canção polifônica.<ref name="Butterfield"/><ref name="Greenberg"/><ref>Poirion, Daniel. ''Le poète et le prince: l'évolution du lyrisme courtois de Guillaume de Machaut à Charles d'Orléans''. Slatkine, 1965, pp. 192-193</ref> Ao mesmo tempo, ele incorporou as tradições [[trovador]]escas da canção [[monofonia|monofônica]], representadas principalmente por La Halle, onde a linha melódica não era harmonizada por outras vozes. A partir da combinação desses elementos essenciais, Machaut desenvolveria uma obra musical de enorme riqueza e sofisticação, cuja definição dentro de esquemas simples é muito difícil exatamente pela grande variedade de soluções que encontrou.<ref>Earp, p. 597 </ref><ref name="Göllner"/><ref>Mahrt, William Peter. "Male and Female Voices in Two Virelais of Guillaume de Machaut". In: Leach, Elizabeth Eva (ed.). ''Machaut's Music: New Interpretations''. Boydell & Brewer, 2003, pp. 221-230</ref> Segundo Hindley, a forte ênfase em regras rigorosas e fórmulas matemáticas na estruturação das composições deste período poderia ter levado a música a concentrar-se principalmente nos aspectos formais e técnicos, mas "pode ser considerado quase um milagre que qualquer forma de lirismo pudesse emergir deste emaranhado de cálculos. O fato deste milagre ocorrer deve-se a Guillaume de Machaut. [...] Ele demonstrou a mesma sensibilidade em seus mais rigorosos motetos quanto em suas obras mais livres".<ref name="Hindley"/>
Contrastando com a boa documentação de sua influência poética, a atestação de sua influência musical é mais problemática. Ele praticamente não é citado nominalmente como músico em tratados musicais e na literatura de seus contemporâneos, e a maciça maioria dos escritores só faz menção à sua carreira como poeta. Não obstante, sua importância musical é comprovada indiretamente pelo grande número de obras francesas, ibéricas e italianas que tomam de empréstimo seus temas ou se constroem como [[paráfrase]]s de suas composições, e pelas diversas alusões não nominais de músicos e tratadistas a respeito de técnicas notacionais que ele introduziu.<ref name="Earp 65-72"/> Nigel Wilkins, um dos importantes estudiosos de sua obra, disse que "ele dominou os meados do
====Motetos====
{{AP|Moteto}}
[[
Machaut deixou o maior corpo de motetos medievais cuja autoria é conhecida, com 24 exemplos. Dezoito deles são escritos para duas vozes, com uma terceira parte instrumental, quatro são para quatro partes (duas instrumentais), e dois para três vozes.<ref name="Chaucer"/><ref name="Speculum"/> O moteto era uma das formas musicais mais prestigiadas, rígidas e eruditas de sua época, em regra construído sobre proporções matemáticas e simbolismos numéricos, sendo voltado basicamente para plateias educadas da aristocracia e da intelectualidade, mas também tinham um extenso uso no culto religioso.<ref name="Dufourcet"/><ref name="Chaucer"/> No caso de Machaut, eles foram dirigidos principalmente para seus patronos da elite profana.<ref>Rose-Steel, Tamsyn. [https://ore.exeter.ac.uk/repository/bitstream/handle/10036/3313/Rose-SteelT.pdf?sequence=2 ''French Ars Nova Motets and their Manuscripts: Citational Play and Material Context'']. Tese de Doutorado. University of Exeter, 2011, p. 125</ref> Eles fazem uso daquelas relações abstratas e tratam em geral do amor cortês, abundantes em alegorias e em alusões ao ''Roman de la Rose'', mas também abordam outras tradições trovadorescas, temáticas bíblicas e filosóficas e mesmo fatos do seu presente, como a Guerra dos Cem Anos. Musicalmente, são devedores principalmente do modelo estabelecido por Philippe de Vitry no estilo da ''Ars Nova'', bem como da música litúrgica.<ref name="Dufourcet"/><ref>Montefu, pp. 1-18</ref> No costume de seu tempo, os motetos trazem textos diferentes para serem cantados ao mesmo tempo pelas diferentes vozes. Os compositores inicialmente selecionavam um trecho de [[canto gregoriano]] cujas palavras pudessem ser utilizadas no desenvolvimento do tema literário da peça pelas outras vozes.<ref name="Dufourcet"/><ref name="Speculum"/> Era também prática comum usar uma linha de outros compositores adicionando uma ou mais vozes acima ou abaixo dela, e muitos motetos mais antigos foram compostos coletiva e cumulativamente desta maneira. No
::"Os poemas das vozes superiores se inspiram na atmosfera determinada pelo texto do canto gregoriano, e se complementam mutuamente ao delinear as nuanças psicológicas dos sentimentos descritos; os sofrimentos místicos se encontram geralmente transpostos para o plano amoroso, um pretexto para variações sobre o tema do amante frustrado e infeliz. [...] A concordância entre o [[tenor]] [que carrega a linha derivada do canto gregoriano] e as outras vozes se opera segundo dois níveis de [[tropo]]: por simples encontros verbais, por vezes indiretos, uma vez que estes encontros provêm de outras passagens do texto ao qual pertence ao fragmento, e o tropo seguido pela paráfrase ou extrapolação da ideia geral contida no tenor".<ref name="Dufourcet"/>
▲::"Os poemas das vozes superiores se inspiram na atmosfera determinada pelo texto do canto gregoriano, e se complementam mutuamente ao delinear as nuanças psicológicas dos sentimentos descritos; os sofrimentos místicos se encontram geralmente transpostos para o plano amoroso, um pretexto para variações sobre o tema do amante frustrado e infeliz. [...] A concordância entre o [[tenor]] [que carrega a linha derivada do canto gregoriano] e as outras vozes se opera segundo dois níveis de [[tropo]]: por simples encontros verbais, por vezes indiretos, uma vez que estes encontros provêm de outras passagens do texto ao qual pertence ao fragmento, e o tropo seguido pela paráfrase ou extrapolação da ideia geral contida no tenor".<ref name="Dufourcet"/>
▲[[File:Machaut pisici.jpg|thumb|left|Machaut escrevendo.]]
As possibilidades desta combinação de textos diferentes foi explorada virtuosisticamente pelo compositor para criar obras passíveis de múltipla significação, conforme a análise de Rose-Steel: "Machaut permitiu que os vários autores colidissem, criando um ambiente musical e textual em que elas pudessem interagir, sem impor uma conclusão definitiva. O emprego da ''auctoritas'' podia, portanto, criar ambiguidade e irresolução, e não necessariamente funcionar como a 'palavra de Deus', imposta a um texto a partir de fora".<ref>Rose-Steel, p. 127</ref> Ela continua:
Linha 81 ⟶ 83:
====Missa de Notre Dame====
{{AP|Missa (música)|Missa de Notre Dame}}
[[
A ''Missa de Notre Dame'' (''Messe de Nostre Dame''), composta para quatro vozes, merece especial destaque dentre as obras que Machaut compôs. É a única que se conhece de sua autoria a possuir uma função estritamente litúrgica,<ref name="Pearcy3">Pearcy, pp. 27-32</ref> foi uma das primeiras musicalizações polifônicas do Ordinário da missa e a mais antiga a sobreviver composta integralmente por um único autor. Antes a polifonia era reservada ao Próprio das missas, enquanto o Ordinário era cantado em canto gregoriano.<ref name="Newes"/><ref name="Fiol"/> Ela é também mais complexa do que qualquer outro exemplo de seu tempo.<ref>''Apud'' Linklater, Christina [http://www.collectionscanada.gc.ca/obj/s4/f2/dsk2/ftp01/MQ57131.pdf ''Guillaume de Machaut's Messe de Nostre Dame in the Context of Fourteenth-Century Polyphonie Music for the Mass Ordinary'']. Dissertação de Mestrado. University of Ottawa, 2000, p. 14</ref> A peça inclui uma seção final independente do Ordinário, ''Ite, missa est''.<ref name="Pearcy3"/>
Linha 93 ⟶ 96:
A sofisticação rítmica, melódica e harmônica do conjunto da ''Missa de Notre Dame'' é característica da ''Ars Nova'', mostrando como a proibição eclesiástica para o uso desta corrente na música religiosa foi pouco eficaz. A ''Missa'' foi composta entre c. 1350 e c. 1372, mas evidências estilísticas apontam como mais provável uma datação no início da década de 1360. Foi destinada provavelmente para o culto mariano, e deve ser a mesma obra que a chamada ''Missa de Beata'', citada no epitáfio do compositor, e que devia ser cantada nos aniversários de sua morte, conforme seu desejo.<ref name="Pearcy3"/><ref name="Fiol"/> Apesar do prestígio de que a ''Missa'' desfruta hoje, sendo a sua música mais gravada e estudada, e um dos marcos da música medieval,<ref name="McGrady"/><ref>Dulong, Gilles. "Guillaume de Machaut: Messe de Notre-Dame". In: Musée de la Musique. ''Moyen Âge, entre ordre et désordre''. Catálogo de exposição, 2004, pp. 9-10</ref> ela foi uma espécie de anomalia em seu tempo, que aparentemente causou pouco ou nenhum impacto.<ref>Linklater, p. 11</ref> Sarah Williams sintetiza a opinião corrente:
::"Ao passo que de certo modo ela tem importância histórica como a mais antiga musicalização do Ordinário por um único compositor, sua real influência é difícil de estabelecer. Não teve imitadores imediatos no
<div style="padding:0.5em;" align="left">{{multi-escuta item|nomearquivo=Machaut - Missa Notre Dame - Kyrie.ogg|titulo='''''Kyrie'' da ''Missa de Notre Dame'''''|descricao=<small>Versão instrumental em midi de Ricardo Frantz</small>|format=[[ogg]]}}</div>
===Literatura===
[[
Machaut ocupa um lugar diferenciado na poesia medieval francesa pela ênfase que dá ao chamado "eu poético", a sua representação em primeira pessoa, que ocorre em numerosos poemas, e que, segundo Swift, tem sido talvez o aspecto de sua obra literária mais explorado pela crítica, pelas pistas que oferece sobre as relações sociais, sobre a posição e educação dos poetas e sobre a construção de identidades artísticas públicas em seu tempo.<ref name="Swift2"/> Porter o chamou, por isso, de um dos primeiros "antologistas de si mesmo".<ref name="Porter"/> Machaut mostra a si mesmo em seus textos como poeta, amante, clérigo, cortesão, protagonista, testemunha e cronista de eventos, criando relações complexas entre verdade e autoridade, entre autor e narrador, entre o particular e o universal, e entre a vida descrita em um poema e a vida real fora do papel, além de fazer a crítica da sua própria atividade criativa. Sua narrativa desenvolveu de modo inovador a perspectiva autobiográfica do narrador como testemunha e agente dos fatos e introduziu uma nova forma de estabelecer a verdade poética através da descrição da verdade do mundo, mas ao mesmo tempo criou ambiguidades e tensões entre fato e ficção. Apesar de ser um elemento unificante, a predominância do "eu poético" em seus escritos não deve ser entendida como se o autor possuísse uma visão estética inteiramente unificada ou coerente, e os jogos de espelhamento e ocultação/exposição do "eu", junto com enigmas, trocadilhos, alegorias, anagramas, paródias, quebra-cabeças, criptogramas, ironias e contradições deliberadas mostram uma personalidade criativa multifacetada e mutável, claramente consciente do caráter pelo menos em parte ficcional e lúdico da poesia, e de que ela é uma construção artificiosa que impõe necessariamente limites à verdade em prol da eficiência estética.<ref name="Swift2"/><ref name="Méllier"/><ref>Attwood, Catherine. ''Dynamic Dichotomy: The Poetic "I" in Fourteenth- and Fifteenth-century French Lyric Poetry''. Rodopi, 1998, pp. 71-109 </ref><ref>Rose-Steel, p. 30</ref>
Linha 111 ⟶ 115:
Sua preocupação com a autopromoção, associada à precoce valorização do seu ''status'' como autor único de manuscritos de obras completas — embora manufaturados por escribas profissionais — tem influenciado profundamente as pesquisas modernas sobre o poeta,<ref name="Stanford"/> uma vez que a análise dos originais, com seus estilos de escrita peculiares, sua ortografia, suas anotações marginais, suas rubricas, suas decorações e outros elementos paratextuais, oferecem importantes luzes sobre uma variedade de aspectos da criação literária daquele tempo e sua difusão. O estudo das compilações de vários autores onde ele foi incluído também acrescenta dados valiosos para os pesquisadores, especialmente em função das escolhas editoriais, que contribuem para um melhor entendimento da recepção e da interpretação da obra em seu tempo, das relações autor-leitor e dos processos de construção cultural do prestígio e da identidade autoral.<ref name="Stanford"/><ref>Maxwell, Kate. [https://skatemaxwell.files.wordpress.com/2015/10/maxwell-lay-mortel.pdf "An Analysis of 'Mode' in Guillaume de Machaut’s 'Lay mortel'' ("Un mortel lay", Lay 12)"]. In: Gorst, Emma (org.). ''International Medieval Congress Mode in Lay and Song: Voice, Sight, Aurality, and Understanding in the Medieval Lyric''. University of Leeds, 2014, pp. 269-289</ref>
Os expedientes autorreferenciais e pluri-significantes que abundam em seus textos tinham um precursor importante no ''[[Roman de la Rose]]'', de Jean de Meun, que apresenta um narrador que atua em múltiplos níveis da realidade, associando a narrativa de fatos atuais e experiências pessoais a meditações retrospectivas e a incursões no mundo dos sonhos, o que acentuava a subjetividade do texto.<ref name="Swift2"/> O ''Roman de la Rose'', escrito no
[[
[[
Uma abordagem proto-humanista é visível, por exemplo, no seu tratamento do tema tradicional do [[amor cortês]], defendendo a experiência individual e a virtude do indivíduo em sua luta contra os azares da fortuna e as incertezas do amor, bem como reconhecendo a necessidade de encontrar um meio termo, a "média dourada" dos humanistas, entre o ideal e a realidade prática. Da mesma forma, seu interesse na formação de bons líderes entre a elite através da educação moral e literária, sua ênfase no "eu" e sua auto-apresentação como modelo artístico e como líder cívico, são prenúncios do didatismo político e ético e da eminência do indivíduo nas obras humanistas que apareceriam nos séculos XV e XVI. Também é um traço humanista sua preocupação em adestrar o talento inato do artista através de uma sólida educação, a fim de que se tornasse artisticamente competente no descrever com precisão os vários sentimentos e estados da alma pelas regras do ritmo, da forma e da versificação e de acordo com os estilos antigos e modernos, além de procurar educá-lo na arte da musicalização da poesia. Ele próprio se apresenta como um mestre da arte e da retórica, capaz de servir como modelo para outros. Em seu ''Le Livre dou Voir Dit'', uma suma das suas ambições literárias, ele oferece uma ampla gama de seções em prosa e verso e nos estilos de fábula, epistolário e narrativa histórica em que descreve sua experiência pessoal, apresentando o poeta e também o músico como importantes agentes na harmonização do cosmos, e mostrando a si mesmo como um artista engajado na solução dos dilemas de seu tempo. Seus ''Jugements'' são especialmente notáveis pela abordagem dura de temas políticos e dos vícios humanos como a [[avareza]], o [[egoísmo]], o [[preconceito]] e a [[tirania]], e pelas relações que faz entre a desarmonia do mundo e as doenças humanas de corpo e alma.<ref name="Méllier">Méllier, Anne-Hélène. "Guillaume de Machaut and the Forms of Pre-Humanism in Fourteenth-Century France". In: McGrady, Deborah & Bai, Jennifer. ''A Companion to Guillaume de Machaut''. Brill, 2012, pp. 34-48</ref>
Linha 119 ⟶ 124:
Também é um tema recorrente em sua produção a tensão entre a harmonia e sinceridade que ele deseja e idealiza e sua incapacidade de capturar a verdade por trás das aparências e de controlar o curso muitas vezes catastrófico dos eventos reais. Em vários de seus ''dits'', como em ''Voir Dit'' e ''Remède de Fortune'', ele expressa uma nota de desespero diante do caos do mundo, e se esforça para concluir os poemas com um fecho que possa oferecer alguma coerência para tudo, numa tentativa de modelar a realidade de acordo com sua vontade e moralizar os costumes.<ref name="Swift2">Swift, Helen J. "The Poetic". In: McGrady, Deborah & Bai, Jennifer. ''A Companion to Guillaume de Machaut''. Brill, 2012, pp. 17-32</ref> Outro de seus interesses centrais, "quase uma obsessão", conforme referiu Huot, era com o próprio processo de criação literária em todas as suas etapas, incluindo a transmissão oral e escrita da poesia e sua recepção pública, discutindo-o em muitos poemas, que assumem desta forma um denso caráter [[metalinguagem|metalinguístico]].<ref>Huot, Sylvia. "Controlling Readers: Guillaume de Machaut and his Late Medieval Audience". In: ''French Studies'', 2008; 62 (2):210</ref> Ele foi, segundo Porter, o primeiro poeta francês a escrever um longo poema narrativo — o ''Voir Dit'' — cujo assunto principal era a arte da escrita, e o primeiro a formar uma ideia de sua obra completa como uma unidade orgânica.<ref name="Porter">Porter, Laurence M. "The Problematics of Embedded Poems, from ''Aucassin'' to Artaud". In: Henry, Freeman G. (ed.). ''Twenty Years of French Literary Criticism: FLS, Vingt Ans Après: a Memorial Volume for Philip A. Wadsworth (1913-1992)''. Summa, 1994, pp. 281=286</ref>
As formas líricas que consolidou, como o ''lai'', o ''chant royal'', o ''complaint'', as baladas, ''rondeaux'' e ''virelais'', bem como seu estilo narrativo, tornaram-se modelos para gerações de poetas depois dele, onde se destacam por exemplo, [[Jean Froissart]], [[Geoffrey Chaucer]], [[Alain Chartier]], [[Eustache Deschamps]], [[Cristina de
====Os ''dits''====
Os extensos ''dits'' de Machaut, suas poesias narrativas, são suas peças literárias mais importantes. Assim como outras obras congêneres de seu tempo, as de Machaut fazem uso de um grande repertório padronizado de temas, situações e personagens mais ou menos idealizados e alegóricos que formavam uma linguagem literária e simbólica corrente, derivada em grande parte do ''Roman de la Rose'' e da tradição cavaleiresca. A riqueza do conteúdo tradicional, no entanto, oferecia infinitas possibilidades de novas combinações e tratamentos, e segundo Leech-Wilkinson os trabalhos mais bem sucedidos neste gênero, típico do fim da [[Idade Média]], se caracterizam por uma crescente fusão de elementos ficcionais oriundos da tradição com outros realistas, diretamente vinculados a aspectos autobiográficos e à situação política, cultural e social da época, não excluindo tampouco o humor e a ironia, resultando "em uma inextrincavelmente confusa distinção entre essas duas maneiras de representar a experiência humana". Os ''dits'' também se tornaram grandes veículos para uma nova maneira de oferecer didaticamente uma doutrinação ao público leitor, mormente em temas amorosos, muitas vezes entremeada de exemplos clássicos, em especial depois que os trabalhos mitológicos de [[Ovídio]] foram traduzidos para o francês, tornando-se um sucesso instantâneo entre escritores e a elite e uma fértil fonte de alegorias moralizantes.<ref name="Leech-Wilkinson xix-xx">Leech-Wilkinson (1998), pp. xix-xx; lviii</ref> São de menor expressão os ''dits'' ''de la Margueritte, de la Fleur, de la Harpe'' e ''de la Rose'', e os outros são obras de alta qualidade.<ref name="Emmerson"/>
[[File:Le Dit du Lyon - Guillaume de Machaut guidé par le lion.jpg|thumb|left|Machaut conduzido pelo leão, no manuscrito de ''Le Dit du Lyon''.]]▼
[[
[[Imagem:Machaut zloun2.jpg|thumb|esquerda|Retrato de Machaut em uma iluminura, a consolar o rei de Navarra em sua prisão.]]
''Le Dit dou Lyon'' faz uma descrição realista de suas viagens com João de Luxemburgo em suas campanhas militares na Lituânia, acompanhado de uma narrativa alegórica, centrada na figura de um leão, sobre a competição e a inveja que acompanham os amantes felizes.<ref name="lxxxiv"/><ref name="Emmerson"/> ''Le Dit de l'Alérion'' é um dos seus poemas mais longos, traçando um paralelismo entre a arte amorosa e a arte da [[falcoaria]], em seu tempo um dos passatempos prediletos da elite. O enredo relata que das quatro [[ave de rapina|aves de rapina]] mantidas pelo narrador, três eram muito satisfatórias, mas todas haviam se libertado e desaparecido, e a quarta era tão ineficiente que fora abandonada. No final da história, para sua alegria, sua preferida acaba voltando para o mestre. As aves são comparadas às mulheres, com uma orientação didática apoiada em exemplos históricos e literários, incluindo a aparição de figuras alegóricas tradicionais como a Razão, a Natureza e a Fortuna, que servem de conselheiras nas desventuras do amor.<ref>Gaudet, Minnette & Hieatt, Constance B. (eds.). ''Guillaume de Machaut: The Tale of the Alerion''. University of Toronto Press, 1994, pp. iii-viii</ref> ''La Prise d’Alexandrie'' é uma crônica em verso das aventuras de Pedro de Lusignan, rei de Chipre e Jerusalém, escrito após sua morte e à maneira de elogio fúnebre. Em ''Confort d'Ami'' o poeta dirige-se ao rei de Navarra, então preso, tentando consolá-lo através de exemplos bíblicos e clássicos, especialmente retirados do ''[[Ovídio Moralizado]]''.<ref name="lxxxiv"/>
Linha 132 ⟶ 138:
Em ''Le Remède de Fortune'', com cerca de 4.300 versos e 8 poemas líricos interpolados, dos quais sete são musicados, o amante é obrigado a passar por uma série de tormentos por causa do amor, principalmente por causa da insegurança a respeito da reciprocidade. Após essas provas, o amante finalmente recebe a confirmação de sua amada, chegam a trocar alianças, mas no final da narrativa ela parecer ser-lhe infiel, encerrando com uma nota ambígua. À maneira de Boécio, a Esperança consola o amante infeliz, e lhe mostra os caminhos traiçoeiros e inconstantes da Fortuna. É também uma espécie de manual para o comportamento dos cortesãos, e serve como instrução para os compositores oferecendo exemplos didáticos das "formas fixas" da ''Ars Nova''. Foi talvez, em termos de influência literária, o poema mais importante que produziu, deixando reflexos nítidos na produção de Chaucer, Froissart e Granson.<ref name="lxxxiv"/><ref name="Emmerson"/>
▲[[File:Le Dit du Vergier - vision de Guillaume de Machaut.jpg|thumb|250px|A visão mística de Machaut, no manuscrito de ''Le Dit du Vergier''.]]
▲[[
''Le Dit dou Vergier'' é um sonho alegórico parafraseando o ''Roman'' atribuído a [[Guillaume de Lorris]], na tradição do ''Roman de la Rose''. Errante após a frustração de seu amor, o poeta entra em um maravilhoso pomar (''vergier'') em plena floração que lhe parece o verdadeiro [[Jardim do Éden]], que o enche de alegria e consolação. O alado deus do Amor aparece-lhe sobre uma árvore portando nas mãos um dardo e um bastão, acompanhado de seis jovens, a Graça, a Esperança, a Piedade, a Lembrança, a Sinceridade e a Temperança, junto com seis donzelas, personificando o Querer, o Pensar, o Doce Prazer, a Lealdade, o Desejo e o Calar. O Amor em três longos discursos instrui o poeta sobre as diferentes facetas do amor e promete ajudá-lo a combater seus inimigos, o Perigo, a Vergonha e o Medo, se ele mostrar-se digno.<ref>[http://expositions.bnf.fr/aimer/grand/aim_078.htm ''Le Dit dou Vergier'']. Exposição. Bibliothèque Nationale de France</ref><ref>Sypherd, Wilbur Owen. 'Studies in Chaucer Hous of Fame''. Haskell House, 1965, p. 4</ref> Poirion considera que "os sonhos que o deus do Amor propõe ao poeta não dissimulam sua essência religiosa. Sob o signo do Amor, a 'religião da alegria' que Machaut professa atesta a sobrevivência, no seio da atividade poética, de um [[misticismo]] que remonta aos trovadores e que liga a criação poética às experiências mais intensas e mais sublimes da existência".<ref>Poirion, p. 91</ref>
Linha 142 ⟶ 149:
::"Temos o que parece ser uma fusão quase completa entre amante, protagonista, narrador e poeta. [...] Além disso, há uma progressiva redução da distância temporal entre o tempo da escrita e o tempo da narrativa, até que a história é contada quase à medida que acontece. Isto é feito com um alto grau de autoconsciência literária: um dos principais assuntos do ''Voir Dit'' é a história da escrita e construção do próprio livro, a primeira vez na obra de Machaut em que isso ocorre ''explicitamente''. A composição da poesia e a arte da escrita (incluindo a manufatura do códice e as atividades do mecenato) são aqui tematizados e ligados ao retrato do amor como experiência e como inspiração poética".<ref>''Apud'' Wright, p. 123</ref>
[[
Para Leech-Wilkinson, é o seu exemplo mais diferenciado e imprevisível neste gênero. A trama inicia de uma maneira tradicional, apresentando o poeta como amante infeliz, a quem falta não apenas uma dama, mas, como resultado, também a inspiração para compor novas obras. Em seguida ele se apaixona, e a dama lhe corresponde, mas segue-se uma longa e inconclusiva repetição de doenças e mal-entendidos que perduram por todo um ano. Os encontros que ocorrem depois entre o par são apresentados com grande habilidade dentro de uma atmosfera de otimismo e esperança, interrompida pela viagem da dama, que vai entreter o duque da Normandia e quase o esquece, surgindo suspeitas de infidelidade e uma série de contratempos que impedem o seu reencontro. O restante do poema é dominado pela frustração e pelas lembranças do que poderia ter sido um amor feliz.<ref name="Leech3"/> Nas palavras de Hardy, é "obra pessimista, em concordância com a melancolia do seu século". O tema central do amor se torna um pretexto para a exploração das relações entre o poeta, o público e seus mecenas, e é "um exercício de sutileza através do qual o poeta afirma sua posição em relação à nobreza e à figura do príncipe".<ref name="lxxxiv"/> Na opinião de Huot, Machaut faz uma crítica inteligente e bem humorada sobre o caráter do amor como apresentado no ''Roman de la Rose'', além de elevar o [[erotismo]] a alturas pseudo-religiosas e torná-lo mais complexo que os exemplos de seus predecessores, ao associá-lo a dimensões políticas, filosóficas e históricas.<ref>''Apud'' Leech-Wilkinson (1998), pp. lxi-lxii</ref>
Linha 230 ⟶ 238:
Uma vez que muitas das poesias de Machaut foram musicadas e seus gêneros constituíam tanto formas poéticas como musicais, aqui se analisam os grupos principais sob os aspectos literários e musicais conjuntamente. Este grupo é parte essencial dos manuscritos das suas obras completas, incluído principalmente na coleção intitulada ''La Louange des Dames'', que recolhe as poesias não musicadas.<ref name="Basso"/> Uma quantidade expressiva desses poemas aparece em outras fontes. Sobrevivem mais de cinquenta manuscritos que transmitem sua obra em seu conjunto ou em seleções,<ref name="Stanford"/> e o preparado para o duque de Berry, seu amigo e patrono, tem sido considerado a cópia mais confiável das suas obras completas.<ref>Hoppin, pp. 482-483</ref> Um bom grupo de peças líricas foi reutilizado, em sua forma integral ou em trechos, como interpolações líricas em seus ''dits'', recebendo música. A grande organização dos seus manuscritos originais tem levado diversos pesquisadores a analisar sua produção lírica como um conjunto coerente e não como uma simples compilação de peças avulsas, descobrindo uma série de repetições temáticas e motívicas, auto-citações e reaproveitamentos de material que dão força a esta tese. Contudo, nem todos os manuscritos das obras completas foram realizados sob sua supervisão e não se sabe com precisão qual era seu objetivo com a ordenação apresentada.<ref name="Stanford"/><ref name="Basso">Basso, Hélène. "Présence de Machaut dans quelques Recueils Collectifs". In: Foehr-Janssens, Yasmina & Tilliette, Jean-Yves (eds,). ''De Vrai Humain Entendement: études sur la littérature française de la fin du Moyen Âge offertes en hommage à Jacqueline Cerquiglini-Toulet le 24 janvier 2003''. Droz, 2005, pp. 14-27</ref><ref name="Hélène"/> Porém, no entendimento de Jacqueline Cerquiglini-Toulet, importante pesquisadora,
[[
[[Imagem:Guillaume de Machaut et Nature.jpg|thumb|250px|Uma outra versão da alegoria da Natureza oferecendo a Machaut suas filhas: a Razão, a Retórica e a Música, iluminura no ''Prólogo'' das suas obras completas.]]
::"Sua produção, tanto literária como a musical, é marcada por uma vontade de totalização, totalização de formas e de saberes, da qual é testemunho a organização dos seus manuscritos. Guillaume de Machaut pensava sua criação, tão variada, como uma obra unificada. Ele uniu aspectos diversos, poesia lírica às formas fixas, ''dits'' narrativos a inserções líricas e crônica histórica, em um livro onde controlou — inovadoramente — a organização e a difusão [da sua obra]. Esta obra era ligada ao seu nome. Orgulho de um escritor que assinava seus ''dits''. [...] A assinatura é um fenômeno característico de sua escrita. O ''Prólogo'', que acrescentará ''a posteriori'' no livro que recolhe suas obras completas é também significativo. Ali Guillaume é 'escolhido' por duas Forças, a Natureza e o Amor, que o investem de uma missão: O poeta é 'colocado à parte' para criar novos ''dits'' amorosos e agradáveis".<ref name="Célébrations">Cerquiglini-Toulet, Jacqueline. [http://www.culture.gouv.fr/culture/actualites/celebrations2000/machaut.htm "Septième centenaire de la naissance de Guillaume de Machaut 1300-2000"]. Célébrations Nationales. Ministère de la Culture et de la Communication, 2000 </ref>
Linha 242 ⟶ 251:
Apesar disso, e em que pesem as muitas novidades que sua poesia e música apresentam, ele não foi um [[iconoclasta]]. Como assinalou Wilkins, em seu tempo inovações excessivamente radicais não eram apreciadas, preferia-se releituras sutilmente variadas da tradição.<ref name="Chaucer"/> Machaut, com efeito, trabalhou sobre essas tradições antigas, ainda que as tenha diversificado e expandido enormemente, e mesmo seu tratamento de todo o universo emocional, de muitas maneiras inovador, manteve laços com a antiga preferência pela prática de escrever canções para serem cantadas e dançadas e produzirem alegria, associando fortemente a ''performance'' à concepção original das obras, hábito que seria progressivamente abandonado em favor de uma concepção mais voltada à pura leitura.<ref name="Speculum"/><ref name="Hélène">Basso, Hélène. "L'Espace d'un Recueil Amoureuse"; La Louange des Dames". In: Ducos, Joëlle & Latry, Guy (eds.). ''En un Vergier... : mélanges offerts à Marie-Françoise Notz''. Presses Universitaires de Bordeaux, 2009, pp. 177-196</ref> Elizabeth Leach, uma das principais pesquisadoras de sua obra, afirma que a meta suprema de Machaut com sua arte era produzir felicidade, tanto na esfera pública e política quanto na privada e emotiva, e produzir obras tristes e perturbadoras, especialmente no meio educado, regrado e tradicional da elite em que vivia e para o qual produzia, podia significar a exclusão social.<ref name="Musician"/> Ela esclarece:
[[File:Guillaume de Machaut et Bon Espoir - Le Remede de Fortune.jpg|thumb|left|Machaut, infeliz, recebe conselhos da Esperança, em ''Le Remède de Fortune''.]]▼
▲[[
::"O duplo de desejo de produzir alegria e exprimir a verdade do poeta entram em conflito porque este último não permite uma expressão autêntica da tristeza: canções tristes afugentam a audiência que procura alegria, e por outro lado um cantor não pode garantir a verdade da sua poesia se ela não concorda com seu sentimento pessoal. [...] Ligada intimamente à ''performance'' musical, a poesia do século XIII fundava sua verdade no ser a comunicação direta do 'corpo cantor' do intérprete. Como [[prosopopeia]], sua verdade emocional é cantada, incorporada, e assim atestada pela sua presença ao vivo. No século XIV, contudo, a poesia escrita se torna órfã do 'corpo cantor', e a projeção do sentimento autêntico se torna índice de uma nova espécie de verdade ancorada na escrita. [...] O problema de como compor satisfazendo ao mesmo tempo o sentimento e as demandas dos patronos ou audiências emerge assim como um novo [[topos]] cuja própria discussão passa a atestar a autenticidade do sentimento. [...] A poesia [...] deixa de ser sobre um amante infeliz incapaz de escrever poesia alegre, mas sobre um poeta profissional negociando com sucesso a escrita de poesia encomendada por patronos em uma cultura criativa que prestigia o sentimento autoral autêntico. [...] ▼
▲::"O duplo de desejo de produzir alegria e exprimir a verdade do poeta entram em conflito porque este último não permite uma expressão autêntica da tristeza: canções tristes afugentam a audiência que procura alegria, e por outro lado um cantor não pode garantir a verdade da sua poesia se ela não concorda com seu sentimento pessoal. [...] Ligada intimamente à ''performance'' musical, a poesia do
::"As obras de Machaut, especialmente as líricas, dão voz aos pensamentos de muitos amantes que tentam manter a esperança, mas falham; o manuscrito das suas obras completas contêm muitos exemplos de canções que expressam a tristeza. Mas a moldura do livro como um todo, abrindo com o ''Prólogo'', oferece um meio de interpretar as necessárias vicissitudes da experiência humana — a vida sob o império da Fortuna — mesmo quando não podemos ser sempre verdadeiros em relação às suas demandas. As obras de Machaut mostram a humanidade essencial tanto do fracasso como da tentativa de ter sucesso, da alegria e da tristeza, e a autenticidade tanto do sentimento escrito quanto da verdade da ''performance''. Colocando ambos os universos em conflito, ele se torna capaz de questionar e rejeitar uma vida de desejo em favor de uma vida de esperança, que é a solução consoladora que ele oferece tanto aos leitores como aos ouvintes.
Linha 252 ⟶ 262:
====''Lais''====
{{AP|Lai}}
O ''lai'' era uma das formas poéticas mais exigentes da tradição literária do
====''Virelais''====
{{AP|Virelai}}
Os ''virelais'' eram um gênero mais novo na tradição do
::"À primeira vista, os ''virelais'' parecem simples, e mesmo ingênuos. Porém, uma análise mais detida revela que eles dão espaço para uma pletora de sofisticações, seja no sutil diálogo entre a frase melódica e a linha poética, seja na variedade de procedimentos tonais e alterações motívicas. Isso não surpreende, dadas as notáveis maestria técnica e imaginação criativa das outras composições de Machaut. Mas é bom lembrar que as canções monofônicas são uma parte essencial de sua produção lírica, mais do que uma curiosidade marginal, traindo o seu débito para com a tradição trovadoresca em um tempo em que os gêneros líricos se concentravam no desenvolvimento da polifonia".<ref name="Maw">Maw, David. [http://academiccommons.columbia.edu/catalog/ac%3A185336 "Meter and Word Setting: Revising Machaut's Monophonic Virelais"]. In: ''Current Musicology'', 2002; (74):69-102 </ref>
Linha 262 ⟶ 272:
* '''Virelai ''Douce Dame Jolie'''''. <small>Versão midi de Timothy Roden, Craig Wright, Bryan Simms</small>
{{Áudio simples|Machaut Douce Dame Jolie.ogg|Douce Dame Jolie (som midi)}}
[[
<center>
{|class="wikitable sortable"
Linha 363 ⟶ 373:
====''Rondeaux''====
{{AP|Rondeau}}
[[
O ''rondeau'' (pl. ''rondeaux'') era outra inovação na tradição de canções medievais cortesãs, e Machaut foi um dos primeiros a dedicar-se a este gênero, que derivou do ''rondel'' e do ''triolet'' e teve como importante precursor Adam de la Halle. Ele se baseia principalmente sobre o conceito de repetição / contraste, tendo uma seção repetida entre quatro estrofes diferentes, à maneira de refrão.<ref>Crutchfield, Lilian & Gregg, Erica Maria. [http://www.public.asu.edu/~aarios/formsofverse/reports2000/page6.html "Rondeau"]. In: Ríos, Alberto. ''Forms of Verse''. Arizona State University, 2000, p. 6 </ref> Sua estrutura mais típica era ABaAabAB. O número de sílabas no verso variava muito, e empregava texturas musicais de duas a cinco vozes.<ref>Pearcy, p. 26</ref> Predominam, porém, as texturas a duas vozes. Seu exemplo mais conhecido talvez seja ''Ma fin est mon commencement'', por ser um caso raro onde o compositor usou em uma das vozes a técnica da escrita retrógrada, cantando a melodia a partir do seu final, justificando o título: "meu fim é meu começo".<ref>Hoppin, p. 485</ref> Para Hindley, o ''rondeau'', tornado famoso por La Halle, foi expandido por Machaut mantendo o mesmo esquema, mas combinando seus vários elementos em um motivo dominante, o que deu à forma uma nova e mais ampla dimensão.<ref name="Hindley"/> Para Poirion, o artista considerava o ''rondeau'' uma das formas mais vivazes do lirismo cortesão, contribuindo para seu crescente prestígio neste meio:
Linha 377 ⟶ 387:
{{AP|Balada}}
É disputada a primazia de Machaut no gênero da balada (''ballade''). [[Jehannot de Lescurel]] e [[Jean Acart]] entre outros, parecem ter-se antecipado a ele, mas sem dúvida cabe a Machaut a consolidação e difusão do gênero, um dos principais na tradição de poesia e música cortesã do
::"Machaut concebeu fluidas linhas melódicas, demonstrando grande flexibilidade na voz superior ou ''[[cantus]]''. Desenvolve elaborados melismas, especialmente no final da sílabas. Sua expansão do uso das consonâncias de terças e sextas é evidência de sua aceitação e uso das novas técnicas harmônicas da ''Ars Nova''. Sua música ainda emprega as comuns e numerosas quintas, quartas e oitavas paralelas e as dissonâncias características [da ''Ars Antiqua''], ao mesmo tempo em que seduz os ouvidos do seu público com a doçura das novas sonoridades".<ref name="Pearcy15">Pearcy, p. 15</ref>
Linha 385 ⟶ 395:
==Recuperação do seu legado==
[[
::''Oh flor das verdadeiras flores da melodia,''
Linha 398 ⟶ 408:
:::— Balada fúnebre em honra de Guillaume de Machaut escrita por Eustache Deschamps.<ref>''Apud'' Leech-Wilkinson (1998), p. xviii</ref>
Depois de conhecer vasta popularidade em vida, ser disputado pelos mais importantes nobres da França e influenciar gerações de outros mestres, em fins do
[https://www.academia.edu/1889959/Review_essay_on_Elizabeth_Eva_Leach_Guillaume_de_Machaut_Secretary_Poet_Musician "Review essay on Elizabeth Eva Leach, Guillaume de Machaut: Secretary, Poet, Musician"]. In: ''Early Music History'', 2012; (31)</ref> Entre as poesias, só eram conhecidos os ''dits'' ''Le Jugement dou Roy de Navarre'' e o ''Voir Dit'', e alguns trabalhos líricos recolhidos por [[Prosper Tarbé]] em 1849. Em 1877 ''La Prise d'Alexandrie'' foi publicada por Mas Latrie, mas a edição estava repleta de erros.<ref name="Earp 277-278"/><ref>Hoepffner, Ernest. [http://www.forgottenbooks.com/readbook/Oeuvres_de_Guillaume_de_Machaut_Pub_1200060508#13 ''Œuvres de Guillaume de Machaut'']. Tome Premier. Firmin-Didot, 1908, pp. ix-x</ref> Em 1898 [[Georg Hanf]] publicou um estudo sobre o ''Voir Dit'' que se revelaria seminal, introduzindo a noção, hoje prevalente, de que as suas obras narrativas não eram relatos históricos, como antes eram consideradas, mas sim uma literatura multifacetada que incluía muitos níveis de ficção.<ref>Kay, Sarah [http://scholarworks.iu.edu/journals/index.php/tmr/article/view/15329/21447 "Review: Hue, Denis, ed. Comme mon coeur desire: Guillaume de Machaut 'Le Livre du Voir Dit'. Orleans, FR: Paradigme, 2001. Pp. 282. EUR 28,2. ISBN: 2-86878-222-1"]. In: ''The Medieval Review'', 16/10/2002</ref>
Linha 404 ⟶ 414:
::"Não há como negar que a harmonia de sua Missa não tem nenhum atrativo para um ouvido refinado. Seu efeito é duro e selvagem, a cada passo o som é traído por falsas relações, por quintas e oitavas paralelas que se sucedem aos saltos. Os fundamentos dessa harmonia são compostos nada mais nada menos do que por quartas, quintas e oitavas. Raramente aparece uma terça ou uma sexta para suavizar a dureza que resulta desse arranjo bizarro. Devemos acrescentar que o ritmo desta composição não é mais digno de nota do que sua harmonia. Assim os modernos devem julgar essas peças como monstruosidades. Mas deve-nos surpreender a grandeza do gênio exigido para compor uma missa inteira em quatro partes sem empregar nada além de quintas, quartas e oitavas, e formar em cada voz uma melodia similar ao cantochão principal".<ref>Leech-Wilkinson, Daniel. ''The modern invention of medieval music: scholarship, ideology, performance''. Cambridge University Press, 2002, p. 159</ref>
[[File:Ernest Hoepffner - Oeuvres de Guillaume de Machaut - capa tomo I.jpg|thumb|250px|Capa do primeiro tomo das obras literárias completas de Machaut publicadas por Ernest Hoepffner.]]▼
▲[[
No início do século XX sua situação começou a mudar. Em 1904 Johannes Wolf publicou a maior parte da ''Missa'' em sua obra ''Geschichte der Mensuralnotation'', que deu subsídios para musicólogos como [[Hugo Riemann]] e [[Max Schneider]] e ensejou as primeiras reapresentações.<ref name="Earp 277-278"/> Entre 1908 e 1921 [[Ernest Hoepffner]] publicou a primeira edição de suas obras literárias completas. Ao mesmo tempo, o historiador da música [[Friedrich Ludwig]] percorria muitos arquivos europeus, redescobrindo uma quantidade de peças e lançando os fundamentos da primeira publicação de suas obras musicais completas entre 1926 e 1929, recuperando também parte do legado de diversos outros mestres medievais, o que provocou uma revolução no entendimento da música daquele período. O trabalho de Ludwig incluiu seus ''rondeaux'', suas baladas e ''virelais'', bem como as peças líricas incluídas em ''Remède de Fortune''. Com a morte de Ludwig em 1930, seu discípulo [[Heinrich Bessler]] continuou as pesquisas, publicando em 1954 os ''lais'' e a íntegra da ''Missa''. Neste ínterim, diversos outros musicólogos, impacientes com a demora da publicação, realizaram edições independentes da ''Missa'', e em 1956 [[Leo Schrade]] lançou uma revisão crítica das obras completas de Ludwig a partir de um novo sistema de notação, que facilitou o entendimento da notação antiga para os contemporâneos, mas sua edição trazia vários equívocos e no geral tinha qualidade inferior à sua fonte. Não obstante, esta publicação se tornou famosa e deu origem a uma tradição interpretativa cheia de erros.<ref name="Earp 277-278"/> ▼
▲No início do
Ao mesmo tempo, em meados do
É vasta a bibliografia disponível hoje sobre Machaut, sendo um autor que há mais de 50 anos ocupa um lugar sobremaneira destacado nos estudos medievalistas. Segundo McGrady, na selva contemporânea de estudos a ele dedicados, nenhuma obra tem recebido tanta atenção quando o ''Livre dou Voir Dit'' e a ''Missa de Notre Dame'', considerados suas obras-primas.<ref name="McGrady"/> A contribuição de Lawrence Earp em ''Guillaume de Machaut: A Guide to Research'' (1995), de todas é a mais importante, sendo frequentemente chamada a "Bíblia" neste campo, secundado pela contribuição de Elizabeth Eva Leach, ''Guillaume de Machaut: secretary, poet, musician'' (2011); Jacqueline Cerquiglini-Toulet e Barton Palmer são referências principais na edição de seus trabalhos originais, e a International Machaut Society centraliza os principais debates. Os estudos mais recentes têm dado ênfase ao interesse de Machaut em questões de autoria e identidade e aspectos de construção textual aberta, cíclica e multirreferencial considerados similares ao programa da [[pós-modernidade]], expandindo o enfoque para suas associações com a política e o contexto sociocultural de seu tempo em abordagens multidisciplinares, avultando também sua discografia e edições críticas de suas partituras.<ref name="McGrady"/><ref name="Zayaruznaya"/><ref name="Leech2"/><ref name="Stanford"/><ref name="Musician"/> No entanto, a música ainda recebe uma atenção significativamente maior do que sua poesia,<ref name="Gaudet"/> e permanece como fonte de inspiração para alguns músicos das mais novas gerações que vêm ganhando destaque, como [[Samuel Blaser]],<ref>Collins, Troiy. [http://www.allaboutjazz.com/a-mirror-to-machaut-samuel-blaser-songlines-recordings-review-by-troy-collins.php "Samuel Blaser Consort In Motion: A Mirror To Machaut (2013)"]. ''All About Jazz'', 18/09/2013 </ref> [[Katherine Hoover]]<ref>Pendle, Karin. ''American Women Composers''. Psychology Press, 1997, p. 63 </ref> e [[Laura Cannell]].<ref>[http://www.trunchconcerts.co.uk/may2-14.html "Music in a historic Norfolk Church"]. ''Trunch Concerts'', 02/05/2014 </ref>
Por outro lado, como apontou Leach, ainda subsiste muita incompreensão em uma série de aspectos de seu trabalho, mesmo entre os especialistas, pois há musicólogos que não conhecem devidamente sua poesia e filólogos e críticos literários que não estão bem a par dos estudos mais avançados sobre sua música — um problema que foi levantado desde os estudos de [[Jean-Baptiste-Bonaventure de Roquefort-Flaméricout|Roquefort-Flaméricourt]] no início do
Seja como for, Machaut conquistou uma posição segura de maior poeta e compositor francês do
{{referências|col=2}}
|