Dialogismo

conceito de Bakhtin

Dialogismo é um conceito desenvolvido pelos filósofos russos Mikhail Bakhtin e Valentin Volóchinov. Para Bakhtin, todos os enunciados (acontecimentos de linguagem, como uma fala, um discurso, uma carta) têm a propriedade de ser dialógicos. Determinado indivíduo, ao proferir (ou escrever) um enunciado, interage, conscientemente ou não, com outros enunciados, outros discursos, concordando ou discordando, complementando e se construindo na interação com eles. De modo mais amplo, a própria linguagem humana tem a propriedade de ser dialógica, formando uma cadeia ininterrupta de enunciados que seguem uns aos outros.[1]

Por exemplo, suponhamos que determinado indivíduo emita o seguinte enunciado, em um ato real de comunicação: não existe racismo no Brasil. Ao fazê-lo, ele está pressupondo que seus interlocutores tenham certos conhecimentos prévios a respeito do racismo, e de sua existência naquele país. O enunciado só faz sentido porque ele interage, responde àqueles que afirmam a existência do racismo na sociedade brasileira. Esse exemplo, mais ilustratuvo, pode ser expandido. Assim, chegamos ao princípio geral, que é o fato de ser o dialogismo inerente à linguagem humana. Todo enunciado pressupõe a existência de outras vozes, com as quais ele interage.[1]

Para além desse dialogismo constitutivo, há outras formas de apresentar vozes alheias em determinado discurso. Isso é feito por meio de recursos, como o discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre e as aspas. Tais recursos, entre outros, podem ser vistos como uma materialização do dialogismo inerente à linguagem humana. Tal materialização não é obrigatória. Mesmo que um autor opte por não fazer uma citação direta, ele ainda assim está em diálogo com outras vozes, com outros discursos.

Definição editar

 
O dialogismo é um dos conceitos principais para a teoria do filófoso russo Mikhail Bakhtin.

Para Bakhtin, o dialogismo — também chamado de "relações dialógicas"[2] — são relações entre índices sociais de valores que constituem o enunciado, compreendido como unidade da interação social.[3] O dialogismo implica a compreensão individual/coletiva como um processo no qual sua dinâmica lhe confere um caráter social e cultural determinante[4]. Se trata de um conceito com ampla aplicabilidade que permite a aprendizagem de diversas práticas sociais.[5]

Para que ocorram as relações dialógicas, é preciso que qualquer material linguístico ou semiótico entre na esfera do discurso, ou seja, se transforme em enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social. Só assim é possível responder, isto é, fazer réplica ao dito, confrontar posições, fazer intervenções, concordar ou discordar.

A palavra chave da linguística bakhtiniana é diálogo: "as relações dialógicas são de índole específica: não podem ser reduzidas a relações meramente lógicas (ainda que dialéticas) nem meramente linguísticas (sintático-composicionais).Elas só são possíveis entre enunciados integrais de diferentes sujeitos do discurso".[6]

Mesmo num monólogo, há dialogismo, pois nesse ato, aparentemente individual, há vozes que dialogam. Portanto, o dialogismo não se restringe ao diálogo face a face, mas a todo enunciado no processo de comunicação manifestado em diferentes dimensões.[1]

Conceitos constituintes editar

Para o linguista brasileiro José Luiz Fiorin,[1] os três eixos básicos norteadores do pensamento bakhtiniano que constituem a concepção de dialogismo são:

  • a unicidade do ser e do evento;
  • a relação eu/outro; e
  • a dimensão axiológica.

O primeiro conceito diz respeito ao modo real de funcionamento da linguagem, ou seja, "todos os enunciados constituem-se a partir de outros".[7] O segundo trata-se da incorporação, pelo enunciador, das vozes de outros no enunciado. É uma forma composicional visível na qual é possível ver o discurso alheio. "São maneiras externas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso".[8] O terceiro está relacionado ao sujeito, à subjetividade que é "construída pelo conjunto de relações sociais de que participa o sujeito."[9]

Relação com outros conceitos editar

Relação com intertextualidade editar

Dialogismo não deve ser confundido com intertextualidade, pois não é qualquer relação dialógica que se pode chamar de intertextualidade.

Para Bakhtin, há uma diferença entre texto e enunciado. Segundo Fiorin, a diferença entre eles seria que "enunciado" é um todo de sentido, uma posição assumida pelo enunciador, "marcado pelo acabamento, dado pela possibilidade de admitir uma réplica",[10] enquanto "texto" pertence ao domínio da materialidade, ou seja, a um conjunto coerente de signos verbais e não verbais, é uma realidade imediata. É a manifestação do enunciado.

Dessa forma, pode haver relação dialógica entre textos e entre enunciados. Assim, a intertextualidade refere-se apenas às relações dialógicas materializadas em textos. "Isso pressupõe que toda intertextualidade implica a existência de uma interdiscursividade (relações entre enunciados), mas nem toda interdiscursividade implica intertextualidade".[11] Pois há textos que não mostram o discurso do outro, mas possibilita a interdiscursividade.

Relação com polifonia editar

 Ver artigo principal: Polifonia (literatura)

Polifonia para Bakhtin não é apenas um universo de muitas vozes, mas um universo em que todas as vozes são equipolentes, isto é, têm o mesmo valor, sem que nenhuma se sobreponha às demais.[12] O estudo voltado a esse tema se encontra na obra Problemas da poética de Dostoiévski[13] (1963) a qual Bakhtin dedica suas reflexões ao gênero romance polifônico, dando origem ao conceito de polifonia. O dialogismo é um conceito mais amplo, e esta associado à linguística. Já a polifonia está relacionada à teoria literária.

Nas palavras do escritor brasileiro Cristóvão Tezza, "a polifonia é mais uma visão de mundo do que uma categoria técnica".[14]

Muitos pesquisadores usam o dialogismo como sinônimo de polifonia, no entanto, há estudos que mostram a diferença. Como em Maciel[15] no artigo Diferenças entre dialogismo e polifonia. Nas palavras no autor, "Se o dialogismo já se faz presente na interação entre quaisquer vozes, a polifonia depende da amplitude das ideias que se discute." Assim, pode-se dizer que as relações dialógicas integram a polifonia, mas não coincidem com ela. "No romance polifônico, expressa-se um conjunto específico de relações dialógicas. Os vínculos entre microdiálogo, diálogo e grande diálogo se realizam por meio de relações dialógicas. A passagem de um tema por muitas e diferentes vozes se dá por meio de relações dialógicas."

Ver também editar

Referências

  1. a b c d Luiz., Fiorin, José (2006). Introdução ao pensamento de Bakhtin. [S.l.]: Ática. ISBN 8508105215. OCLC 212885467 
  2. Mikhailovitch), Bakhtin, M. M. 1895-1975 (Mikhail (2010). Estetica da criação verbal. [S.l.]: Martins Fontes. ISBN 9788578272609. OCLC 817220864 
  3. Faraco 2009, p. 66.
  4. ABDALA JUNIOR, Roberto. «Brasil anos 1990: teleficção e ditadura — entre memórias e história». Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro. 13 (25): p. 94-111, jul./dez. 2012. Consultado em 22 de março de 2024 
  5. ABDALA JUNIOR, Roberto. «Brasil anos 1990: teleficção e ditadura — entre memórias e história». Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro. 13 (25): p. 94-111, jul./dez. 2012. Consultado em 22 de março de 2024 
  6. Bakhtin 2010, p. 323.
  7. Fiorin 2016, p. 34.
  8. Fiorin 2016, p. 37.
  9. Fiorin 2016, p. 60.
  10. Fiorin 2016, p. 57.
  11. Fiorin 2016, p. 58.
  12. Faraco 2009, pp. 77-80.
  13. 1895-1975., Bakhtin, Mikhail M. (2008). Problemas da poética de Dostoievski. [S.l.]: Forense Universitária. ISBN 9788521804376. OCLC 298933230 
  14. Tezza 2002, pp. 297-98.
  15. Maciel, Lucas Vinício de Carvalho (18 de março de 2016). «Diferenças entre dialogismo e polifonia». Revista de Estudos da Linguagem. 24 (2). 580 páginas. ISSN 2237-2083. doi:10.17851/2237-2083.24.2.580-601 

Bibliografia editar

  • Bakhtin, Mikhail (2010). O problema do texto na Linguística, na filologia e em outras ciências Humanas. Estética da criação verbal. Traduzido por Paulo Bezerra 4.ª ed. São Paulo: Martins Fontes 
  • Fiorin, José Luiz (2016). Introdução ao pensamento de Bakhtin 2ª ed. São Paulo: Contexto 
  • Faraco, Carlos Alberto (2009). Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola 
  • Tezza, Cristóvão (2002). Zylko, B., ed. Polyphony as an Ethical Category. Bakhtin & his Intellectual Ambience. Gdansk: Wydawnictwo Uniwersytetu Gdanskiego 

Ligações externas editar

  • "Dialogismo", E-dicionário de Termos Literários de Carlos Cela. Verbete escrito por Isabel Fernandes. 30 de dezembro de 2009. Acesso em 12 de dezembro de 2018.
  • "Linguagem e dialogismo". Canal da UNIVESP. YouTube. 22 de novembro de 2011. Acesso em 12 de dezembro de 2018.