A Destruição da Razão

A Destruição da Razão (Die Zerstörung der Vernunft) é um livro de filosofia política do filósofo marxista György Lukács publicado em 1954. Em edições posteriores, foi incluído o subtítulo Der Weg des Irrationalismus von Schelling zu Hitler ("O Caminho do Irracionalismo de Schelling a Hitler"), que também pode ser visto como um resumo abreviado da obra.

Lukács, partindo do método marxista, que posiciona a história da filosofia na superestrutura a partir do desenvolvimento estrutural das forças produtivas e das lutas de classes (cf. o verbete infraestrutura e superestrutura),[1] destrincha, mostra e critica o irracionalismo de uma série de autores conhecidos na filosofia ocidental e na sociologia modernas: Schelling, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Dilthey, Simmel, Scheler, Spengler, Heidegger, Jasper, Weber, entre outros, mapeando na filosofia alemã o que teria levado ao nazifascismo ou a ele se associado. Assim, o autor discute imperialismo, demagogia, elitismo, darwinismo social, "racismo científico" e outros temas. Em um esboço em seus anos finais para um projeto de autobiografia (Gelebtes Denken), Lukács anota: "A Destruição da Razão é novamente a história social de um típico tornar-se perverso do pensamento".[2]

Com esta obra, Lukács também destoa do enfoque stalinista da época, que havia estabelecido uma clivagem única para a história da filosofia que só opusesse materialismo a idealismo. Sem abdicar da concepção materialista da História e da crítica ao idealismo, o autor, em seu projeto de retomada a Karl Marx e de renovação do movimento comunista, prefere opor racionalismo a irracionalismo. Segundo ele próprio, em Pensamento Vivido. Autobiografia em diálogo, livro de diálogos com outros camaradas lançado já na velhice:

"Aqui eu também era contra o dogma segundo o qual a filosofia moderna se fundaria exclusivamente na oposição entre materialismo e idealismo. Assumi a oposição entre irracionalismo e racionalismo, qualquer que fosse a forma destes, idealista ou materialista [...]"[3]

Contexto e escrita editar

A Destruição da Razão foi escrito sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e terminado no começo dos anos 1950, tendo sido publicado em 1954. Segundo o próprio Lukács, já na velhice, em Pensamento Vivido. Autobiografia em diálogo, fruto de entrevistas, em forma de colóquios, feitas pelos camaradas Istvàn Eörsi e Erzsébet Vezér no primeiro semestre de 1971:

"[...] Quanto à filosofia, porém, foi naquela época [anos 30] que comecei meu trabalho filosófico e me encontrava em total oposição à linha sustentada por Stálin. Naquela época, escrevi meu livro sobre Hegel [O Jovem Hegel], na segunda metade dos anos 30, num período em que Zdanov já dizia que, na verdade, Hegel era o ideólogo da reação feudal contra a Revolução Francesa, e não se pode afirmar que meu livro sobre Hegel seja uma exposição dessa ideia. Mais tarde, Zdanov apresenta, com Stálin, toda a história da filosofia como a luta entre materialismo e idealismo. A Destruição da Razão, ao contrário, que, no geral, foi escrita durante a guerra, põe no centro da reflexão uma oposição totalmente diversa, isto é, a luta entre filosofia racional e irracional. É verdade que os irracionalistas eram todos idealistas, mas eles também tinham antagonistas racionalistas-idealistas. Portanto, a oposição que exponho em A Destruição da Razão é totalmente incompatível com a teoria zdanoviana. [...] No começo dos anos 50 concluí o livro, mas a maior parte do manuscrito já estava pronta durante a guerra. Note bem, na década de 50 ainda estava em vigor a concepção segundo a qual a oposição entre materialismo e idealismo seria a única oposição da história da filosofia. O senhor talvez se lembre que, depois da publicação de A Destruição da Razão, fui atacado pela esquerda com o argumento de que havia negligenciado esta importante questão."[4]

Sumário editar

  • Nota sobre a 2ª edição alemã (escrita em Budapeste em dezembro de 1960)
  • Introdução
    • Sobre o irracionalismo como fenômeno internacional do período imperialista
  • Primeiro capítulo
    • Sobre algumas características do desenvolvimento histórico da Alemanha
  • Segundo capítulo
    • A fundação do irracionalismo no período entre duas revoluções (1789-1848)
    • I. Observações prévias e de princípio sobre a história do irracionalismo moderno
    • II. A intuição intelectual de Schelling como primeira forma de manifestação do irracionalismo
    • III. A filosofia tardia de Schelling
    • IV. Schopenhauer
    • V. Kierkegaard
  • Terceiro capítulo
    • Nietzsche como fundador do irracionalismo do período imperialista
  • Quarto capítulo
    • A filosofia da vida na Alemanha imperialista
    • I. Essência e função da filosofia da vida
    • II. Dilthey como fundador da filosofia da vida do imperialismo
    • III. A filosofia da vida no período pré-guerra (Simmel)
    • IV. Guerra e entreguerras (Spengler)
    • V. A filosofia da vida do período da “estabilização relativa” (Scheler)
    • VI. A quarta-feira de cinzas do subjetivismo parasitário (Heidegger, Jaspers)
    • VII. A filosofia da vida pré-fascista e fascista (Klages, Jünger, Baeumler, Böhm, Krieck, Rosenberg)
  • Epílogo
    • Sobre o irracionalismo no pós-guerra
  • Posfácio
    • Sobre como lidar com o passado alemão (publicado em 1966 numa edição condensada da obra autorizada por Lukács e na edição brasileira de 2020)

Recepção e respostas editar

De acordo com Nicolas Tertulian, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris), "A Destruição da Razão é, sem dúvida, o livro mais controvertido de György Lukács: desde seu aparecimento, há mais de 30 anos [Tertulian escrevia nos anos 1980], uma massa impressionante de contestações se acumulou em torno desta obra".[5]

Nos círculos oficiais da União Soviética da época, a obra de Lukács foi encarada como revisionista. O próprio autor tomou conhecimento, por exemplo, de um texto publicado por um certo Balogh e reproduzido no livro György Lukács e o revisionismo, publicado em 1960 na Alemanha Oriental (os artigos publicados nas revistas soviéticas teriam o mesmo sentido). Em carta ao tradutor italiano de seu livro O Jovem Hegel, R. Solim, em 1º de outubro de 1959, Lukács rebate:

"Os sectários se mostraram seguramente muito escandalizados que o dogma de Jdanov sobre a oposição entre materialismo e idealismo como único objeto da história da filosofia – dogma tido por eles com aura de santidade – tenha sido ridicularizado e eles tentaram – através das mais grosseiras falsificações de citações – demonstrar o caráter ‘revisionista’ do livro".[6]

Reafirmando seu desdém pelas críticas desse gênero, as quais à época ressoavam de todos os lados em revistas oficiais soviéticas (isto depois de seu retorno da deportação romena), Lukács lembrava a Solim as palavras de Dante a Virgílio: “Non raggionam di lor, ma guarda e passa”.[6]

Os pensadores da Escola de Frankfurt (Adorno, primeiro, depois Herbert Marcuse e mesmo Leo Löwenthal) contestaram o livro de Lukács.[5]

Leszek Kolakowski, em sua História do Marxismo, o denuncia como uma eloquente "involução stalinista" do pensamento de Lukács, enquanto que Louis Dumont, nos seus Essais sur l'individualisme, mas também em prefácio a um livro de Karl Polanyi, toma distâncias.[5]

Mesmo pensadores marxistas próximos a Lukács, como Ernst Bloch e Henri Lefebvre, incomodaram-se com o conteúdo radical de algumas de suas análises.[5] Bloch, por exemplo, deve ter sido o primeiro a objetar particularmente com a postura de Lukács em relação a Schelling; escreve Bloch a Lukács em carta de 25 de junho de 1954, ano da publicação do livro: "[...] É igualmente surpreendente ver como tu queres atualizar post numerando e de uma maneira muito exagerada as invectivas não pronunciadas de Hegel contra Schelling [...]".[7] Mas é sobretudo o fato de ter situado Schelling na origem de uma linha de pensamento que deveria desembocar, numa sequência de degradações, no fenômeno nazista, que despertou o protesto de Bloch: "[...] há um caminho levando diretamente da intuição intelectual até Hitler? Three cheers for the little difference. Não é conferir um brilho de todo indevido ao estandarte, ou melhor, às latrinas hitlerianas? [...]"[7] No entanto, não só Bloch não escreveu sobre Schelling um estudo sistemático equivalente ao capítulo consagrado a Schelling em A Destruição da Razão, como também as teses de Lukács encontraram confirmação e até mesmo desenvolvimento nos trabalhos do pesquisador marxista contemporâneo Hans Jörg Sandkühler, autor de vários estudos sobre Schelling.[7]

Os admiradores de Schelling, de Nietzsche, de Dilthey ou de Heidegger costumam recusar a obra, enquanto que os críticos desses autores encontram nela ainda hoje sólidos substratos para a crítica demolidora.[5]

Edição brasileira editar

Em dezembro de 2020, o Instituto Lukács do Brasil lançou a primeira tradução para o português como seu ato de encerramento com tradução de Bernard Herman Hess, Rainer Patriota e Ronaldo Vielmi Fortes. A revisão geral técnica ficou a cargo de Ronaldo Vielmi Fortes e Ester Vaisman.

Referências

  1. Segundo o próprio Lukács na Introdução da obra: "[...] A História da Filosofia, assim como a da arte e a da literatura, nunca é – como acreditam seus historiadores burgueses – simplesmente a história das ideias filosóficas ou das personalidades que as sustentam. Tanto os problemas quanto as vias de resolução são colocados à filosofia pelo desenvolvimento das forças produtivas, pelo desenvolvimento social, pelo desdobramento das lutas de classe. Os traços fundamentais e decisivos de qualquer filosofia não podem jamais ser revelados exceto por meio do reconhecimento dessas forças motrizes primárias. [...]" (Lukács, A Destruição da Razão, São Paulo: Instituto Lukács, 2020, p. 9.)
  2. Lukács, Pensamento Vivido. Autobiografia em diálogo (Gelebtes Denken), traduzido por Cristina Alberta Franco, São Paulo: Instituto Lukács, 2017, p. 209.
  3. Idem, p. 115.
  4. Idem, p. 132.
  5. a b c d e Nicolas Tertulian, "A Destruição da Razão: 30 anos depois", p. 16. Tradução de Antônio José Lopes Alves. Publicado originalmente em Réification et utopie: Ernst Bloch et György Lukács un siècle après. Arles: Actes Sud, 1986.
  6. a b Apud Nicolas Tertulian, idem, p. 17.
  7. a b c Idem, p. 22.

Ligações externas editar