A Jardineira é uma marchinha de carnaval, lançada originalmente no final de 1938 para o festejo do ano seguinte, tinha letra do compositor baiano Humberto Porto,[1] música de Benedito Lacerda e primeira gravação por Orlando Silva.

"A Jardineira"
A Jardineira
Orlando Silva canta A Jardineira
Canção de Orlando Silva
Lado A "Meu Consolo É Você"
Publicação 1938
Lançamento 6 de dezembro de 1938 (1938-12-06)
Formato(s) Shellac, 10", 78 RPM
Gravação 31 de outubro de 1938
Gênero(s) marcha de carnaval
Duração 3:04
Gravadora(s) Victor
Letra Humberto Porto
Composição Benedito Lacerda

Porto e Lacerda sofreram várias acusações de plágio do cancioneiro popular; o letrista, efetivamente, se inspirou num refrão existente em Mar Grande, quando em 1937 visitara a ilha de Itaparica.[1] Como já em janeiro de 1939 informara o crítico Oswaldo Santiago, "Humberto Porto, que é baiano, antes de ser publicada a marcha, escreveu no vespertino “A Nota” que ia lançar um tema do folclore de sua terra na folia em perspectiva."[2]

Histórico editar

Já em novembro de 1938 Benedito Lacerda anunciava, numa entrevista à revista Carioca em que falava de seus sucessos, que "dentro em breve, porém, juntarei mais um: «Jardineira». Música baseada em motivos da Bahia. Letra de Humberto Porto. Gravou-a, Orlando Silva..."[3] A mesma revista publicou a seguir a letra da canção com a recomendação: "que os carnavalescos trauteiem, enquanto esperam, a letra momástica que classificamos como sucesso", completando: "é uma música carnavalesca. A primeira música carnavalesca a fazer sucesso evidente, antes do carnaval. «A Jardineira», marcha de rancho (...) é a tal".[4]

Assim, após esse lançamento prévio, já em janeiro do ano seguinte a "Carioca" publicou uma nota em que dizia "está sendo disputada a autoria da triunfante marcha «A Jardineira», que se apresenta como candidata provável ao título de «melhor das marchas carnavalescas»."[5] E, de fato, seguiu-se mais adiante com uma extensa matéria em que se apresentavam argumentos levados por leitores sobre a pré-existência da canção.[6]

Acusações de plágio editar

Em 12 de janeiro Oswaldo Santiago registrou que "a imprensa de norte a sul (também no Paraná há quem se atribua a paternidade da obra...) tem lançado as maiores injúrias a Benedito Lacerda, Humberto Porto e a todos os compositores do Rio que, (...) ainda que algo de mau houvesse, nenhuma culpa teriam no caso..."[2]

Na revista Carioca do dia 14 desse mesmo mês vários foram os leitores que acusaram já conhecer a música. O semanário abriu os depoimentos que recebera declarando "«Jardineira» caiu no goto. As edições andam por aí (...) com notável sucesso, a música hoje popularíssima. Os leitores de Carioca, porém, compareceram, de apito à boca, para pôr as coisas no seu verdadeiro lugar. A música é de uma velha canção. A letra foi readaptada. Que merecem, em face disso, Benedicto Lacerda e Humberto Porto? Aplausos ou assobios? Dividem-se as opiniões."[6]

A primeira das queixas viera do soteropolitano José Jeronymo de Souza que dizia ter sido embalado pela canção ainda criança: "recordar a música-sucesso de nossos pais e de nossa infância, é prova de bom gosto. Agora não posso deixar de gritar o meu protesto contra a tal paternidade que querem dar a esta composição. «Jardineira» já pertence ao povo, ninguém mais se lembra do seu autor. É do povo, portanto."[6]

O reclamante seguinte, Altino B. de Sá, de São José dos Campos, lembrava já haver denunciado plágios em várias marchinhas de anos anteriores e que naquele ano "a marchinha «Jardineira» nada mais é do que a reprodução de um sucesso de 1928, que, já naquele tempo, era calcado numa valsa vienense. Basta lembrar o estribilho: Vem, jardineira / Vem, meu amor / Vem regar as flores / Com teu regador".[6] Da mesma cidade outro leitor identificado como Dr. Pinheiro trouxe a ideia de que houvera plágio de uma cantiga de roda infantil que surgira há vinte anos e depois foi desaparecendo, e que os artistas "realizaram, agora, um milagre: o milagre de uma autêntica ressurreição", concluindo com ironia: "os iconoclastas perguntarão, talvez: mas qual o mérito dos "autores"? E eu responder-lhes-ei, convicto da força do rebate: fazer reviver é, as vezes, mais difícil que criar".[6]

Em Porto Alegre o padre Frederico Mauthe alegou que recolhera a música numa coleção de hinos e canções escolares, em 1922; no Rio de Janeiro um certo Candinho, parceiro de Camarão, dissera que usara o tema em muitas versões.[7]

Ao menos duas pessoas reivindicaram para si a autoria da canção: Paulino Alves, tenente chefe da banda do 13º Regimento de Infantaria, em Ponta Grossa, no Paraná,[8] E Maria das Dores Corrêa Xavier, "que afirma tê-la feito em 1906, na cidade de Piranhas, em Alagoas, onde dirigia um conjunto de «Pastorinhas»", sendo neste pleito defendida pelos advogados Costa Pinto e Costa Magalhães que pediam indenização de "vinte contos", quando a expectativa é que a canção rendesse menos que a metade desse valor.[9]

Defesas editar

 
Porto e Benedito fazem sua defesa, na redação de "Carioca"

Na matéria de janeiro de 1939 Oswaldo Santiago publicou a partitura da marchinha, sublinhando oito compassos novos introduzidos pelos autores e que haviam sido indicados pelo compositor Humberto Salles, morador de Andaraí (interior baiano), presentes na segunda parte da canção. Santiago argumentou em defesa dos autores: "no momento quem está na berlinda é a marcha «Jardineira», velha melodia do cancioneiro popular baiano (...) que, conforme se vê no impresso para piano, acusam a procedência da mesma. Não houve, portanto, da parte desses conhecidos compositores, a menor ideia de apropriação. Eles confessam, num texto que está na capa da música, que «Jardineira» é canção com que as mães embalam os filhos, no interior da «boa terra»", continuando: "como se trata de obra do domínio público, sem autor conhecido, a lei permite a adaptação que fizeram para o ritmo carnavalesco carioca, além de pequenas outras modificações na letra e na música (...) tudo feito de modo claro, leal, sem margem para ataques", concluindo: "acalmem-se os baianos, ciosos das suas joias melódicas e literárias. A divulgação de «A Jardineira» em todo o país, pela voz de Orlando Silva, é um serviço que Humberto Porto prestou à Bahia, em cujo regaço ele colheu a camélia que caiu do galho, como já colheu outras flores do seu cancioneiro, estilizando-as e tornando-as mais conhecidas."[2]

Os dois artistas foram, pessoalmente, à redação da revista Carioca, apresentar a sua versão dos fatos que, em matéria assinada por Julio Pires, foi retratada como “uma bomba. O estouro da boiada. Gritaria. Não pode! É plágio! Lincha! Pega! Mata! Esfola! Um inferno!...” Assim, Lacerda iniciou sua fala: “apareceu nos últimos dias, uma «neta» ou «sobrinha» de certa senhora de Alagoas, que entendeu também de participar dos meus lucros e glórias. Mas a mocinha, que diz ser a autora da «Jardineira» que eu apresentei para o Carnaval de 1939, vem de muito longe. É do povo. Pertence ao nosso «folclore». E se você quer apreciar a diferença entre as duas composições, escuta apenas estes quatro compassos” (a seguir entoa a canção da alegada autora, mostrando a diferença) “isso não é nada ainda. A petulância foi muito maior. A pretensa «cantora», garante que toda a música é dela. Coitadinha... Diz que eu e o Porto colocamos na partitura alguns compassos suaves. Mas o que essa senhora parece desconhecer é que até numa edição da Livraria Zenith (...), São Paulo, aparece a “Jardineira”... Se há motivo de reclamação, ela que se entenda [com o editor citado]”.[10]

Porto, a seguir, definiu a obra: “Realmente (...) trata-se de uma joia do mesmo quilate da «Casinha pequenina», irmã da «Ciranda, cirandinha», do «Valha-me Deus Sinhô São Bento, buraco véio tem cobra dentro» – toada de “«capoeira»”, e ainda, do «Rosalinda mandou dizê, que agulha sem fundo não pode cuzê», canto do «samba de umbigada», melodias e ritmos que nasceram em épocas que não foram nossas, fundiram-se, caldearam-se, atravessaram a ação dos tempos, formando um conjunto típico, que se denomina «folclore» musical de um povo. Aquilo que o caracteriza, que define as raízes de suas origens..."[10]

"Terno de Reis da Jardineira" editar

A narrativa de Porto remete à sua infância na Bahia e descreve o terno de Reis que o impressionara e o inspirara: "Esse quadro maravilhoso, que se fixa na imaginação infantil de todo o baiano, é lembrado, gostosamente, numa saudade cheia de amenas recordações. Quis trazê-la para o Rio. Ao público, apresentei, então, «A Jardineira» vestida numa roupa nova, ajudado pelo Lacerda. Benedito, de posse dessa melodia, deu-lhe o cunho vivo, preciso à alegria imensa do maior Carnaval do mundo. Quanto ao plágio de que fui acusado, quero que seja desfeito o equívoco. Eu não disse que a melodia é «minha». Eu a trouxe para o Rio, com um ritmo diferente. Assim procedendo, tive a intenção de mostrar que não só dormem, no âmago deste Brasil imenso, pedras preciosas de todo o quilate, mas também joias musicais como esta e as outras a que me referi acima. Fiz isso sem maiores pretensões, sentindo, apenas, a grande, a mesma alegria do «garimpeiro» que, encontrando um belíssimo diamante, mostra-o cheio de orgulho e vaidade, à admiração dos outros”...[10]

A seguir ele constrói a imagem do terno de Reis de onde a canção teria sido oriunda: “Reportem-se à praia de Mar Grande[nota 1], da Baía de Todos-os-Santos – Itaparica... É noite de Reis. Veremos, então, o «terno» da «Jardineira».
”Ela” vem na frente. O cortejo em coro, pergunta-lhe:
”Oh! Jardineira, por que estás tão triste?
Mas o que foi que te aconteceu?”
Ela, sozinha, responde:
”Foi a camélia que caiu do galho,
deu dois suspiros
e depois morreu...”
E toda a gente:
”Foi a camélia que caiu do galho,
deu dois suspiros
e depois morreu...
[10]

Primazia do baiano Hilário Jovino Ferreira, segundo Jota Efegê editar

Em matéria de janeiro de 1966 o jornalista Jota Efegê publicou suas considerações sobre uma investigação que havia sido realizada ainda em 1939 pelo radialista Almirante que, no seu programa "Curiosidades Musicais", colheu depoimentos - dentre os quais um que não fora aprofundado mas que, segundo Efegê, levaria ao rumo certo; foi o depoimento de João Batista Madureira Silva, que dissera então que "tinha certeza de que era de um tal Hilário que fez a música há uns 40 anos".[7]

Este "Hilário" era, informa Efegê, o baiano Hilário Jovino Ferreira que, mudando-se para o Rio e se tornando tenente da Guarda Nacional, levou as tradições da "boa terra" à então capital do país, tais como os ranchos de "ternos" e "pastoris", com "marchas suaves e cadenciadas" que lhes eram características, fundou ali várias agremiações de rancho até que, em 1899, criou um denominado "A Jardineira", desfilando naquele ano e indo até a Tia Bebiana para o ritual obrigatório na Lapinha, cantando os versos oriundos da Bahia: "Ó Jardineira / por que estás tão triste..."[7]

Este "rancho" reunia vários baianos de cabedal reconhecido, como Maria Adamastor (Maria César) ou Getúlio Marinho (Amor), que o credenciava para ditar as normas sobre esse tipo de manifestação a ponto de em 1908 haver realizado uma vistoria nas agremiações então existentes e declarado que todas cumpriam "as regras que são adotadas nestas diversões oriundas do Estado da Bahia". Com a saída de vários integrantes, em 1901 estes fundaram "A Flor da Jardineira"; em 1906 surgiu "As Filhas da Jardineira", com sede à Rua Frei Caneca - e a figura da "jardineira" era constante também nas músicas por estes grupos entoadas.[7]

Efegê conclui que toda a celeuma se deu em razão de Porto e Lacerda não haverem dado claramente a indicação de onde haviam colhido a cantiga; reforça o papel de Hilário Jovino Ferreira: "inovador do carnaval carioca, fundador e orientador de um punhado de ranchos que nos moldes dos «ternos» [de] Reis da Bahia deram graciosidade aos nossos festejos de louvor a Momo [e] foi, de fato, quem trouxe «A Jardineira» para o Rio (...) Tendo morrido em março de 1933, não a viu voltar como novidade em 1939, nem pôde apresentar-se como dono."[7]

Notas e referências

Notas

  1. No original trazia "ilha de Paquetá, da Baía de Todos-os-Santos – Itaparica". Ocorre que esta "ilha" não pode estar em outra ilha (ilha de Itaparica), sobretudo porque na Baía de Todos-os-Santos não existe uma ilha com este nome, mas sim na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro; efetuou-se a mudança, baseado no quanto as demais referências trazem, ao tempo em que reporta este erro a um possível ato falho do redator de "Carioca"

Referências

  1. a b Luiz Américo Lisboa Júnior (2006). Compositores e Intérpretes Baianos: de Xisto Bahia a Dorival Caymmi. [S.l.]: Via Litterarum/Editus. 371 páginas. ISBN 859849324-4 
  2. a b c Oswaldo Santiago (12 de janeiro de 1939). «O Caso da Jardineira». Rio de Janeiro. O Malho (293 ano XXXVIII): 6. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  3. «Um músico por semana: Benedito Lacerda». Rio de Janeiro. Carioca (160): 63. 12 de novembro de 1938. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  4. «Por trás do dial». Rio de Janeiro. Carioca (163): 44. 3 de dezembro de 1938. disponivel na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  5. «Por trás do dial». Rio de Janeiro. Carioca (168): 42. 14 de janeiro de 1939. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  6. a b c d e «"Ó JARDINEIRA POR QUE ESTÁS TÃO TRISTE?.." Que merecem Benedicto Lacerda e Humberto Porto - aplausos ou assobios: Como se externam os leitores de CARIOCA sobre a musica que caiu no gôto». Rio de Janeiro. Carioca (168): 46-47. 14 de janeiro de 1939. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  7. a b c d e Jota Efegê (23 de janeiro de 1966). «Uma jardineira triste de muitos donos mas nenhum verdadeiro». Rio de Janeiro. O Jornal (13 597): 27. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  8. Oswaldo Santiago (2 de fevereiro de 1939). «Carnaval na rua!». Rio de Janeiro. O Malho (296): 6. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  9. «Radioletes (Broadcasting)». Rio de Janeiro. O Malho (295): 6. 26 de janeiro de 1939. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil 
  10. a b c d Julio Pires (21 de fevereiro de 1939). ««A Jardineira» não é plágio!». Rio de Janeiro. Carioca (169): 39-40. disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Brasil