Ciência ocupacional

A ciência ocupacional é o estudo da atividade humana, especialmente quando motivada por um objetivo e relacionada ao bem-estar e à saúde, como concebidos na terapia ocupacional.[1] A terapia ocupacional faz parte das ciências humanas e sociais e se baseia em uma variedade de metodologias e disciplinas, incluindo antropologia, psicologia e sociologia. Ela envolve pesquisa básica, pesquisa aplicada ou pesquisa "transformadora".[2] Esta última adota uma abordagem crítica, questionando as relações de poder que existem dentro das ocupações e entre os profissionais e as pessoas, comunidades e populações que eles atendem.[3]

Sob a perspectiva da ciência ocupacional, uma ocupação é "um grupo de atividades, culturalmente denominado, que tem valor pessoal e sociocultural e que apoia a participação na sociedade".[4] As ocupações são, portanto, entendidas como atividades humanas orientadas para objetivos, realizadas por indivíduos específicos em um contexto específico.

A ciência ocupacional faz parte das ciências puras, enquanto a terapia ocupacional, devido à sua proximidade com a ciência ocupacional, é sua vertente nas ciências aplicadas.

No mundo anglófono, o termo "ciência ocupacional" às vezes é enganoso, pois a ocupação geralmente se refere à atividade produtiva, ao trabalho.[5] O mesmo acontece em francês devido às conotações pejorativas do termo ocupação (passatempo inútil ou ocupação militar da França pelos nazistas). Algumas pessoas na França preferem por isso a expressão "ciências (ou ciência) da atividade humana".[6][7]

História

editar

A ciência ocupacional evoluiu a partir do esforço de estudiosos de diferentes disciplinas para compreender como os seres humanos ocupam o continuum espaço-tempo. Ela foi nomeada e promovida em 1989 por uma equipe de professores da Universidade do Sul da Califórnia (USC) sob a liderança de Elizabeth Yerxa,[8] que foi influenciada pelo trabalho de estudantes de pós-graduação sob a supervisão de Mary Reilly na mesma universidade.[9] Desde o seu início. que coincidiu com a constituição do programa de doutorado em Ciência Ocupacional na USC, a ciência ocupacional evoluiu como uma fonte adicional de pesquisas para expandir os conhecimentos teóricos e empíricos que, entre outras finalidades, servem de apoio à profissão de terapia ocupacional.[10]

A sociedade acadêmica Occupational Science Europe foi por sua vez criada em 2015 com o objetivo de promover a ciência ocupacional no continente europeu.

Ligações entre ciência ocupacional e terapia ocupacional

editar

A ciência ocupacional foi desenvolvida por estudiosos (principalmente da profissão de terapia ocupacional) que se basearam em ideias originais anteriores à fundação da terapia ocupacional . Pode, portanto, ser considerada como uma disciplina acadêmica em desenvolvimento ou emergente.[11][12][13][14] Os substratos (ou dimensões subjacentes) da ocupação (forma, função e significado) são difíceis de observar e quantificar,[15] e, portanto, requerem e beneficiam de uma abordagem multidisciplinar. Embora tanto a ciência ocupacional quanto a terapia ocupacional estejam enraizadas na teoria de sistemas e em visões holísticas da agência humana, os métodos para observar e compreender a forma de uma ocupação (como algo é feito), função (seu propósito) e significado (como é compreendido e experimentado pelo agente) nem sempre têm uma abordagem holística. Por exemplo, disciplinas como a biomecânica e a psicologia informam a ciência ocupacional mas, individualmente, não estão necessariamente preocupadas com uma compreensão integrada dos factores que influenciam coletivamente a vida quotidiana de uma pessoa. A prática profissional em terapia ocupacional pode suscitar novas ideias e desencadear potenciais pesquisas dentro da disciplina da ciência ocupacional; embora normalmente o conhecimento das disciplinas acadêmicas preceda a aplicação desse conhecimento em campos aplicados.[16] A ciência ocupacional tem a capacidade de fornecer informações sobre a modalidade primária de terapia ocupacional (ocupação) através do estudo das consequências da engajamento ocupacional e dos seus benefícios terapêuticos.[17] Reciprocamente, a pesquisa em terapia ocupacional pode fornecer informações sobre como a agência humana e os fatores que a influenciam mudam em situações de doença, deficiência ou intervenção terapêutica. Pontos de vista adicionais sobre essas relações podem ser encontrados em documentos que descrevem as relações entre a ciência ocupacional e a terapia ocupacional, publicados pela World Federation of Occupational Therapists (WFOT) e pela Society for the Study of Occupation: USA (SSO:USA) nos Estados Unidos. Esforços de pesquisa contribuíram ao delineamento de conceitos-chave ou essenciais da ciência ocupacional no que se refere à prática da terapia ocupacional.[18] A continuação deste trabalho poderá contribuir para o aprimoramento do conhecimento de educadores, cientistas e profissionais no que diz respeito ao uso, baseado em evidências, da ocupação na prática da terapia ocupacional.

Relações entre ocupação humana, saúde e bem-estar

editar

Além dos benefícios bem documentados da atividade física regular,[19] ocupações que geram propósito, competência e autoestima podem proporcionar benefícios psicológicos relacionados à satisfação de necessidades de sentido.[20] Situações de vida que limitam ou restringem a participação em ocupações significativas (como isolamento geográfico, refúgio político ou encarceramento)[21] ou levam à participação em ocupações prejudiciais (como abuso de substâncias, comportamentos desviantes ou de risco), podem levar à “doença, isolamento e desespero”, ou mesmo morte.[12] No entanto, a participação em ocupações que se mostram benéficas ou restauradoras pode melhorar a saúde. Através da participação em ocupações engajadas ou restaurativas, o estado mental dos indivíduos pode ser melhorado e resultar em sentimentos de regeneração. O sono, uma área de ocupação, não só regenera os processos físicos e cognitivos, mas também é necessário para um funcionamento ocupacional satisfatório.[22] Participar em outras ocupações relaxantes ou que reduzam a tensão, como ler um livro, receber uma massagem, dar um passeio, fazer exercício ou praticar um hobby estimulante, pode fornecer restauração física, cognitiva e mental e redução do estresse.

Pesquisas empíricas relatam os benefícios psicológicos e fisiológicos obtidos por meio da participação em diferentes tipos de ocupações humanas rotineiras. As questões sobre a natureza das diferentes dimensões da ocupação humana e as suas influências na identidade, no comportamento e nos estados dos seres humanos são vistas pelos cientistas ocupacionais como áreas pertinentes de investigação.[23][24] Os teóricos do desenvolvimento humano há muito levantam a hipótese de que as ocupações entretenidas durante a infância e os eventos relacionados às atividades características dos diferentes estágios da fase adulta são fatores críticos para o crescimento e maturação física, cognitiva e psicológica.[25][26][27]

Da mesma forma, há um interesse contínuo em como os padrões de uso diário do tempo, incluindo hábitos, rotinas e estilos de vida, podem estar relacionados com estados de bem-estar.[28][29] Adolf Meyer, um proeminente psiquiatra e defensor da terapia ocupacional nos Estados Unidos, foi um dos primeiros a especular que um padrão, ritmo ou fluxo regular de ocupações diárias contribue para a saúde mental.[30] Meyer também postulou que a história de vida dos seus pacientes poderia ser usada para identificar condições situacionais e eventos que ajudam a explicar os seus distúrbios, proporcionando assim um caminho para a prevenção através de intervenções comunitárias para promover a saúde pública (higiene mental).[31]

Aplicação acadêmica

editar

O desenvolvimento da ciência ocupacional como disciplina acadêmica tem avançado através da criação de vários programas de estudo em universidades que oferecem diplomas de graduação e pós-graduação na área. As disciplinas nas quais os cientistas ocupacionais podem ser encontrados incluem arquitetura, engenharia, educação, marketing, psicologia, sociologia, antropologia, economia, terapia ocupacional, saúde pública e geografia. Existem várias sociedades nacionais, regionais e internacionais dedicadas a promover a evolução desta área especializada das ciências humanas. Periódicos acadêmicos contendo conteúdo diretamente relevante para a ciência ocupacional incluem o Journal of Occupational Science , OTJR: Occupational Therapy Journal of Research, Journal of Happiness Studies, 'Quality of Life Research, Applied Research in Quality of Life, Canadian Journal of Occupational Therapy, The Scandinavian Journal of Occupational Therapy, o American Journal of Occupational Therapy, Revue Francophone de Recherche en Ergothérapie, e vários outros periódicos de terapia ocupacional.

Ver também

editar

Referências

  1. Pierce, Doris; Morel-Bracq, Marie-Chantal (2016). La science de l'occupation pour l'ergothérapie. Col: Ergothérapie. Louvain-la-Neuve [Paris]: De Boeck supérieur 
  2. Meyer, Sylvie (5 de outubro de 2018). «Quelques clés pour comprendre la science de l'occupation et son intérêt pour l'ergothérapie» (em francês). doi:10.13096/RFRE.V4N2.116. Consultado em 1 de agosto de 2024 
  3. Vallée, Catherine (outubro de 2020). «Mettre l'occupation au cœur de nos actions». Canadian Journal of Occupational Therapy (em inglês) (4): 233–239. ISSN 0008-4174. doi:10.1177/0008417420952317. Consultado em 1 de agosto de 2024 
  4. Meyer, S. (2013). De l’activité à la participation. Paris : De Boeck - Solal, p. 59.
  5. Meyer, S. (2013). De l’activité à la participation. Paris : De Boeck - Solal.
  6. Morel-Bracq, M.-C. (2009). Modèles conceptuels en ergothérapie : Introduction aux concepts fondamentaux. Marseille : Solal Editeurs.
  7. Quévillon, E. (2015). Construire la science de l’activité humaine en France. In M.-C. Morel-Bracq, E. Trouvé, E. Offenstein, E. Quevillon, K. Riguet, H. Hernandez, … C. Gras (Eds.), L’activité humaine : un potentiel pour la santé. Paris: De Boeck-Solal.
  8. Yerxa, E.; Clark, F.; Jackson, J.; Parham, D.; Pierce, D.; Stein, C.; et al. (1989). «An introduction to occupational science, A foundation for occupational therapy in the 21st century». Occupational Therapy in Health Care. 6 (4): 1–17. PMID 23931133. doi:10.1080/j003v06n04_04 
  9. Reilly, M (1962). «Occupational therapy can be one of the great ideas of 20th Century medicine». American Journal of Occupational Therapy. 16: 1–9. PMID 14491211 
  10. Hocking, C.; Wright-St Clair, V. (2011). «Occupational science: Adding value to occupational therapy». New Zealand Journal of Occupational Therapy. 58 (1): 29–35 
  11. Glover, J (2009). «The literature of occupational science: A systematic, quantitative examination of peer-reviewed publications from 1996-2006». Journal of Occupational Science. 16 (2): 92–103. doi:10.1080/14427591.2009.9686648 
  12. a b Wilcock, A (2005). «Occupational science: Bridging occupation and health». Canadian Journal of Occupational Therapy. 72 (1): 5–12. PMID 15727043. doi:10.1177/000841740507200105 
  13. Christiansen, C; Townsend, E (2009). Introduction to Occupation: The Art and Science of Living 2nd ed. Upper Saddle River, NJ: Pearson. pp. 359–384. ISBN 978-0131999428 
  14. Yerxa, E (1993). «Occupational Science: A new source of power for participants in occupational therapy.». Journal of Occupational Science. 1 (1): 3–9. doi:10.1080/14427591.1993.9686373 
  15. Schell, B; Gillen, G (2019). Willard & Spackman's Occupational Therapy 13th ed. Philadelphia, PA: Wolters Kluwer. pp. 124–140. ISBN 9781975106584 
  16. Pierce, D (2014). Occupational Science for Occupational Therapy. Thorofare, NJ: Slack Inc. ISBN 9781556429330 
  17. Howell, D; Pierce, D (2000). «Exploring the forgotten restorative dimension of occupation: Quilting and quilt use». Journal of Occupational Science. 7 (2): 68–72. doi:10.1080/14427591.2000.9686467 
  18. Backman, C; Christiansen, C; Hooper, B; Pierce, D; Price, P (2021). «Occupational science concepts essential to occupation-based practice: development of expert consensus». American Journal of Occupational Therapy. 75 (6). 7506205120 páginas. PMID 34817600. doi:10.5014/ajot.2021.049090 
  19. Bize, R; Johnson, J; Plotnikoff, R (2007). «Physical activity level and health related quality of life in the general adult population: A systematic review». Preventive Medicine. 45 (6): 401–415. PMID 17707498. doi:10.1016/j.ypmed.2007.07.017 
  20. Baumeister, R; Wilson, B (1996). «Life stories and the four needs for meaning». Psychological Inquiry. 7 (4): 322–325. doi:10.1207/s15327965pli0704_2 
  21. Whiteford, G (1997). «Occupational deprivation and incarceration». Journal of Occupational Science. 4 (3): 126–130. doi:10.1080/14427591.1997.9686429 
  22. Tester, N; Jackson, J (2017). «Sleep as an occupational need». Am J Occup Ther. 72 (1): 7201347010p1–7201347010p4. PMID 29280728. doi:10.5014/ajot.2018.020651 
  23. Clark, F (1993). «Occupation embedded in real life: Interweaving occupational science and occupational therapy». Am J Occup Ther. 47 (12): 1067–1078. PMID 8285206. doi:10.5014/ajot.47.12.1067  
  24. Christiansen, C (1999). «Defining Lives: Occupation as identity: An essay on competence, coherence and the creation of meaning.». Am J Occup Ther. 53 (6): 547–558. PMID 10578432. doi:10.5014/ajot.53.6.547  
  25. Piaget, J (2000). The Psychology of the Child. New York: Basic Books. ISBN 978-0465095001 
  26. Vygotsky, L; Cole, M (1978). Mind in Society: The Development of Higher Psychological Processes. Boston: Harvard University Press. ISBN 978-0674576292 
  27. Erikson, E; Erikson, J (1998). The Life Cycle Completed. [S.l.]: Norton. ISBN 978-0393317725 
  28. Matuska, K; Christiansen, C (2009). Life Balance: Multidisciplinary Theories and Research. Thorofare, NJ/Bethesda, MD: Slack/AOTA Press. ISBN 978-1556429064 
  29. Eklund, M; Orban, K; Argentzell, E; Bejerholm, U; Tjornstrand, C; Erlandsson, L-K; Hakansson, C (2017). «The linkage between patterns of daily occupations and occupational balance: Applications within occupational science and occupational therapy practice». Scand J Occup Ther. 1 (24): 41–56. PMID 27575654. doi:10.1080/11038128.2016.1224271  
  30. Christiansen, C (2007). «Adolf Meyer Revisited: Connections between lifestyles, resilience and illness». Journal of Occupational Science. 14 (2): 63–76. doi:10.1080/14427591.2007.9686586 
  31. Dreyer, B (1976). «Adolf Meyer and Mental Hygiene: An ideal for Public Health». American Journal of Public Health. 66 (10): 998–1003. PMC 1653447 . PMID 788532. doi:10.2105/AJPH.66.10.998 

Ligações externas

editar