Literatura confessional

A Literatura Confessional, estreitamente associada à expressão da intimidade, emerge como uma prática discursiva em que o sujeito de enunciação toma a si mesmo como objeto de conhecimento. Suas raízes remontam tanto ao exame de consciência cristão, como exemplificado nas Confissões de Santo Agostinho, quanto à tradição filosófica e literária secular, que ganha relevância a partir do Iluminismo, especialmente com Jean-Jacques Rousseau. Este, em sua obra precursora As Confissões (1782), inaugura uma nova forma de autoexame, marcada por uma sinceridade sem precedentes, em que o eu se defronta não mais com o julgamento divino, mas com a hipocrisia social[2].

Capa de Santa Teresinha do Menino Jesus, História de uma alma[1]

Os gêneros literários confessionais são, principalmente, as memórias, as autobiografias e os diários. Às vezes, denominados "literatura do eu"[3].

A literatura confessional é, em sua essência, um produto da modernidade, na medida em que reflete a centralidade da subjetividade individual. A modernidade, desprovida de modelos normativos, força o indivíduo a criar suas próprias normas e, assim, a literatura confessional torna-se uma forma de revelação pessoal, onde o autor explora as contradições e paixões do eu. O estilo dessa narrativa frequentemente divaga, refletindo a percepção de que a personalidade humana é constituída por múltiplos impulsos conflitantes, especialmente evidente no romantismo, com sua figura emblemática do herói rebelde.

Santo Agostinho, Confissões[4]

A autobiografia moderna, muitas vezes expressa na forma de um narrador autodiegético, instaura uma tensão entre o narrador e o protagonista, resultando em uma disjunção temporal e emocional entre o eu que viveu e o eu que narra. Essa dualidade enriquece a confissão literária, tornando-a não apenas um relato de experiências, mas também um ato de interpretação e reinterpretação das circunstâncias passadas. Obras como Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, exemplificam essa fusão entre o autor, o narrador e o personagem, oferecendo um discurso digressivo e íntimo que dialoga diretamente com o leitor.

Entendida como literatura do eu se manifesta, portanto, como uma prática literária onde o narrador explora a sua subjetividade expressando uma experiência pessoal que vai além da simples narrativa dos fatos. É, em última análise, uma forma de conhecer-se a si mesmo, ao mesmo tempo em que dialoga com o mundo externo e as convenções sociais transcendendo a mera narração de eventos biográficos, constituindo-se como uma prática de autorrevelação profundamente enraizada na subjetividade moderna e na busca incessante por autenticidade e auto-entendimento.

Em determinados gêneros literários é um pouco difícil estabelecer uma relação direta com a literatura confessional, pois ela não é explícita. É o caso da poesia. Temos, contudo, teses como a da Doutora Teresa Ferreira analisando a autorretratística na expressão de poetas portugueses, deslindando-a[5].

O desenvolvimento tecnológico e o advento de novas mídias têm provocado uma verdadeira revolução e incomensurável incremento da literatura confessional. Novas plataformas são facilmente acessíveis e possibilitam a incontáveis autores compartilhar sua intimidade. É o caso dos blogs e diversas redes sociais, por exemplo[6][7][8].

Os blogs são páginas pessoais nas quais os autores podem expor desde experimentações literárias até os mais banais comentários sobre o seu cotidiano. À maneira de um diário íntimo...[9].

De fato, em contextos mais contemporâneos, blogs, postagens em mídias sociais e narrativas digitais expandiram o reino da literatura confessional, permitindo que indivíduos apresentem versões selecionadas de suas vidas em tempo real, para um público potencialmente vasto e imediato. Essas formas levantam novas questões sobre autenticidade, privacidade e autorrepresentação em uma era de construção de identidade performativa[10].

Literatura Confessional e Realidade

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A literatura confessional, ao fundar-se na suposta autenticidade do autor que se desvela, estabelece uma intricada dialética entre o relato íntimo e a realidade subjetiva. A expectativa de uma reprodução fidedigna dos eventos reais é constantemente tensionada pela mediação interpretativa do autor, cuja narrativa transfigura a memória e as emoções vividas em construção literária[11]. Autores selecionam, distorcem e estruturam suas narrativas de vida para alcançar um efeito literário, sem se comprometer inteiramente com a verdade objetiva[12].

A psicanálise, ao introduzir a noção de inconsciente, desestabiliza profundamente a concepção tradicional de autorrevelação, questionando a ideia de que o sujeito se compreende na totalidade de sua consciência. A partir dessa premissa, torna-se evidente que o autor se revela, consciente ou inconscientemente, em sua produção discursiva, sendo que a confissão pode conter involuntárias insinceridades. Tal desdobramento desafia a suposição de que o sujeito é plenamente idêntico à sua autoimagem, sublinhando a complexidade da subjetividade e a inevitável opacidade da confissão literária[13].

Por outro lado, um autor pode muito bem disfarçar-se em personagem como o fez James Joyce com o seu "alter ego" Stephen Dedalus no clássico Retrato do Artista quando Jovem. Assim, a literatura confessional, caracterizada pela exposição íntima e direta das experiências pessoais do autor, estabelece uma relação complexa com a noção de verdade. Ao longo da história, essa forma de escrita tem sido marcada por uma tensão entre a sinceridade pretendida e a subjetividade que permeia a narrativa. Essa dinâmica levanta questões fundamentais sobre o que realmente constitui a "verdade" em um contexto literário[14].

Exemplos de Literatura Confessional

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Bibliografia Selecionada

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  • AZEVEDO, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. Matraga, Rio de Janeiro, ano 14, n. 21, p. 44-55. jul./dez. 2007.
  • BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In: ___. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 270-278.
  • CANDIDO, Antonio. Poesia e ficção na autobiografia. In: ___. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987, p. 51-69.
  • CARLOS, Ana Maria e ESTEVES, Antonio R. (Org.). Narrativas do eu: memórias através da escrita. Bauru: Canal16, 2009.
  • FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ____.O que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro. Lisboa: Editora Vega. 1992. p. 129-160.
  • GALVÃO, Walnice Nogueira e GOTLIB, Nádia Battella (Org.). Prezado senhor, prezada senhora. Estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • GAY, Peter. O coração desvelado. Trad. Sergio Bath. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. De Rousseau à Internet. Organização de Jovita Maria G. Noronha. Trad. Jovita Maria G. Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
  • MACIEL, Sheila Dias. Diários: escrita e leitura do mundo. Analecta, Guarapuava, v. 3 no 1, p. 57-62 jan/jun .2002.
  • MIRANDA, Wander Melo. A ilusão autobiográfica. In: –––. Corpos escritos. São Paulo: Editora Edusp; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992, p. 25-41.
  • OLMI, Alba. Memória e memórias: dimensões e perspectivas da literatura memorialista. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.
  • REMÉDIOS, Maria Luiza R. (Org.) Literatura confessional: autobiografia e ficcionalidade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.
  • RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Trad. Lucy Moreira César. Campinas: Papirus, 1991.
  • SANTIAGO, Silviano. Suas cartas, nossas cartas. In: ___. Ora (direis) puxar conversa! Ensaios literários. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 59-95.

Referências

  1. Lisieux, Escritório Central de Lisieux (Calvados), & Bar-le-Duc, Imprimerie Saint-Paul, 1937, edição de 1940
  2. Cabral, Eunice. "Literatura Confessional". In: E-Dicionário de Termos Literários. Fundação para a Ciência e Tecnologia, 30/12/2009
  3. Cabral, Eunice. "Literatura Confessional". In: E-Dicionário de Termos Literários. Fundação para a Ciência e Tecnologia, 30/12/2009
  4. Manuscrito iluminado do século XIII de Confissões de Santo Agostinho, Livro VII
  5. Ferreira, Teresa Pinto da Rocha Jorge. Autorretratos na Poesia Portuguesa do Século XX. Doutorado. Universidade Nova de Lisboa, 2019, pp. 23-27
  6. Kline, David; Burstein, Dan. Blog!: How the Newest Media Revolution is Changing Politics, Business, and Culture, Squibnocket Partners, L.L.C., 2005. ISBN 1-59315-141-1
  7. Azevedo, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. Matraga, Rio de Janeiro, ano 14, n. 21, p. 44-55. jul./dez. 2007
  8. Lima, Mariana Marques de. O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. In, Revista do Laboratório de Estudos Urbanos. 22-2, Novembro/2016
  9. Azevedo, Luciene. Blogs: a escrita de si na rede dos textos. Matraga, Rio de Janeiro, ano 14, n. 21, p. 44-55. jul./dez. 2007
  10. Batista, Patrícia Pereira. Do Diário ao Blog Confessional: Continuidade ou Surgimento de uma Nova Prática?. In, Contemporânea. Vol. 6. Número 3. Rio de Janeiro: UERJ, 2008
  11. Faedrich, Anna. O Conceito de Autoficção: demarcações a partir da literatura brasileira contemporânea. Itinerários. Araraquara, n. 40, p.45-60, jan./jun. 2015
  12. Larson, Thomas. The memoir and the memoirist : reading and writing personal narrative. Athens, Ohio: Swallow Press/Ohio University Press, 2007
  13. Cabral, Eunice. "Literatura Confessional". In: E-Dicionário de Termos Literários. Fundação para a Ciência e Tecnologia, 30/12/2009
  14. Lejeune, Philippe. On autobiography. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988