Pés de lótus foi a tradição chinesa de enfaixar os pés das mulheres jovens com faixas apertadas a fim de modificar o formato dos pés. A prática possivelmente teria tido origem em dançarinas das classes mais abastadas durante o Período das Cinco Dinastias e dos Dez Reinos na China Imperial (séculos X ou XI), para então se tornar popular durante a Dinastia Song e eventualmente teria se espalhado para mulheres de todas as classes sociais. Os pés de lótus tornaram-se populares por uma questão de status (mulheres de famílias ricas, que não precisavam de seus pés para trabalhar, poderiam manter os pés enfaixados) e ter os pés deformados tornou-se um padrão de beleza na cultura chinesa. Sua popularidade e prática, entretanto, variou em diferentes partes do país.

Uma mulher chinesa exibindo um pé de lótus.

O Imperador Kangxi tentou banir os pés de lótus em 1664, mas falhou.[1] No final do século XIX, reformistas chineses desafiaram a prática; contudo não foi senão no início do século XX que a tradição dos pés de lótus começou a morrer como resultado de campanhas anti-pés de lótus. Essa tradição implicava em deficiências locomotivas permanentes para a maioria das mulheres com a prática, e algumas poucas chinesas ainda vivem hoje em dia com deficiências ligadas aos pés de lótus.[2]

Resumo do contexto Histórico

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O cenário da prática do pé-de-lótus foi documentado pela primeira vez entre os anos de 937dC e 956dC, durante a dinastia Tang do Sul da China.[3] Existe uma lenda que relaciona a criação desta prática a um imperador da China Medieval, conhecido como Li Yu, ao ter se apaixonado pela graciosidade de uma dançarina que tinha os pés pequenos e assim desejou que outras mulheres fossem submetidas a prática, sendo elas concubinas e artistas, que, por estarem na condição de servas, seguiam as ordens, e vontades do monarca.[1][3][4]

 
Meninas estudantes chinesas com alteração dos pés-de-lótus em uma escola.

Devido à importância, e influência, do imperador, a elite chinesa começou a acreditar que ter os pés pequenos eram símbolo de beleza, de forma que muitas famílias submetiam esta prática ás próprias filhas.[2][3] Posteriormente, acabou por ser disseminada por toda a população como referência de erotismo e padrão estético social.[5][3]

A consolidação desta prática por toda a sociedade chinesa, condicionada como socialmente importante para a jovem mulher que gostaria de casar-se, ocorreu durante o período da Dinastia Song, 960 d.C. – 1279 d.C.[5][6][7] As mulheres que não apresentassem os pés atados eram passiveis de exclusão social, sendo marginalizadas e até mesmo nunca interessadas por um pretendente.[8][3]

A prática tradicional do pé-de-lótus enraizou-se na sociedade chinesa, que em dedicação ao desejo sexual masculino, debruçado em um erotismo patriarcal, submetia mulheres a deformidade dos membros e a dor ao longo de suas vidas, tudo pela prática tradicional e a manutenção hierárquica social.[9] As mulheres escolhidas para o FootBinding dispunham de um investimento educacional de suas próprias famílias, a fim de alçarem maridos abastados e consigam a ascensão social desejada.[3][8]

 
Sapato do pé-de-lótus, normalmente mediam de 4 até 7 cm. Escada de 1cm por quadrante.

A partir do século XVII, houve a tentativa ineficaz de proibição da prática pelo imperador Kang, pois ela já fazia parte do cenário tradicional chinês por séculos.[3] O costume dos pés atados era tão grande que durante o século XIX, estima-se que quase todas as mulheres da elite chinesa tinham os pés modificados, assim como era possível perceber esta prática nas zonas rurais, com famílias pobres, utilizando desta prática com a filha mais velha.[5][3]

Mesmo que tradicional, e difundido na cultura chinesa, o FootBinding, recebeu diversas críticas por personagens sociais de liderança e intelectuais, quais abominavam a sua prevalência e desejavam o fim desta prática.[2] No início do século XX, e final do XIX, intelectuais chineses já criticavam a prática tradicional, comparavam a mesma com rituais de barbárie e de altamente danosa a mulheres.[9] Foi a partir da revolução chinesa, e a instauração da República Popular da China, que em 1912, foi proibida a prática do FootBinding.[3]

Atualmente, é possível encontrar pouquíssimas mulheres vivas com o pé-de-lótus, sendo elas idosas, que ainda vivem, em zonas rurais, com suas marcas, dores diárias e tradições que cercam a prática milenar chinesa.[5]

 
Flor de lótus fechada.

Alterações ósseas do pé-de-lótus e suas complicações para o indivíduo.

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Visão medial óssea de um pé normal,um pé com pé-de-lótus e visão plantar.

De acordo com pesquisas, a deformação dos pés é realizada na pessoa quando criança, antes da puberdade entre os 7 aos 15 anos, através de soluções anestésicas feitas em casa, com faixas que forçam os ossos do tarso, metatarsos e falanges dos pés para a região plantar, provocando deformidade e fracturas, a fim de atingir uma forma de flor de lótus fechada.[3][10]

As lesões causadas pelo pé-de-lótus traziam consigo diversas complicações para a mulher, como por exemplo: a redução de mobilidade, pois estariam com toda a massa corporal sobre seus pés deformados, o que mecanicamente, pode exigir mais de outras partes do corpo, provocando possíveis fracturas ou lesões.[4][11][12][9]

A morfologia óssea provocada pela lesão é demasiada complexa, para isso, pesquisadores observaram que as alterações ocorrem no ângulo do arco plantar, de forma acentuada, modificando principalmente as falanges, da 2ª a 5ª, e metatarsos, com a presença de remodelação óssea e na direção plantar (parte de baixo dos pés).[10] Os autores relatam também que a própria transformação dos pés provoca complicações na vida dessas mulheres, como na forma de andar e na estrutura completa do corpo.[4]

Outra complicação relacionada a deformação dos pés foi abordada por pesquisadores da área de biomecânica dos ossos, associando o trauma dos pés a constantes quedas dos indivíduos, favorecidos pela redução da área plantar, que, após deformação, tem como pontos de contato com o solo somente as regiões do calcanhar e as falanges (ponta dos pés).[6] Devido à instabilidade na locomoção e constante quedas, a possibilidade de ocorrer fracturas é alta, ainda mais em mulheres idosas, que, ao ser associada a baixa densidade óssea, ou outras patologias como a osteoporose, podem resultar em traumas.[11][12][6][5]

 
Pé normal e pé com alteração no ângulo plantar.
 

A deformidade chinesa dos pés impossibilitava que a pessoa se locomovesse longas distâncias e permanecer muito tempo sobre os pés.[4][11] A diminuição da mobilidade alterava a estrutura musculoesquelética, e, consequentemente, promove o seu enfraquecimento, que, por sua vez, leva a diminuição da densidade óssea da região e possíveis fracturas por estresse mecânico.[5][12][11] Esta desestruturação esquelética é visível com a redução do colo femoral e a diminuição da densidade óssea dos ossos do quadril, vinculada como uma das consequências do pé-de-lótus ao longo dos anos.[11][12][4]

Pé-de-lótus nas populações do passado (Paleopatologia)

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Pé normal e pé com alteração no ângulo plantar.

Ao se deparar com as lesões ósseas do pé-de-lótus, é muito provável que seja em um contexto arqueológico, já que sua prática foi extinta há muito tempo, havendo a necessidade de profissionais da bioarqueologia e bioantropologia, com conhecimentos em Paleopatologia para melhor diagnosticar as lesões e alterações encontradas no esqueleto.

Existem um conjunto de características paleopatológicas a serem esperadas ao se deparar com uma pessoa que teve os pés modificados pela prática do pé-de-lótus. Essas singularidades partem desde as próprias lesões ósseas dos pés, nomeadamente a região do tarso, metatarso e falanges do pé, quanto as lesões estruturais do esqueleto, que juntas, podem fornecer informações acerca da origem geográfica e sociocultural do indivíduo.[13][14][12][5]

 
Esquema apresenta um pé normal (esquerda) e um pé-de-lótus (direita). Nele, é possível notar alterações no arco transversal dos pés (diminuição do tamanho entre o calcanhar e a ponta dos pés), direcionamento dos ossos metatársicos e falanges para a direção plantar (parte de baixo dos pés) e achatamento da diáfise dos ossos (um "afinamento" da porção média do osso).

Estudos recentes relacionam a prática artificial chinesa de modificação dos pés á realidade das populações do passado, nomeadamente nos contextos arquelógicos.[13][14][15] Os Investigadores relatam alterações nos pés de mulheres da seguinte forma:

  • As alterações registradas dos ossos do Tarso (Tálus, Calcâneo, Navicular e Cuboide) são relativas ao tamanho e forma, apresentando modificações anormais, com achatamento das facetas articulares e diminuição do tamanho total do osso.[13][14]
  • Nos metatarsos, as alterações apresentam encurtamento do 4º e 5º metatarso. Já os metatarsos 1º, 2º e 3º, foi notado uma compressão médio-lateral em sua diáfise, provocando um aspecto "mais fino" no meio do osso, e mudanças nas posições normais das facetas de articulação, produzindo novos posicionamentos das facetas.[13][14][15]
  • Outras modificações artificiais colocadas pelos investigadores partem da diminuição do arco transversal dos pés e alteração das trabéculas ósseas, provocando sua diminuição.[15][14][13][11]
  • Foi apresentado diminuição da densidade óssea nos ossos da perna e quadril, com a presença de fracturas em alguns indivíduos, assim como alterações posicionais, e degenerativas, das facetas articulares.[12][14][13][11]

Em contextos paleopatológicos, é a análise do esqueleto completo e as possíveis relações entre as lesões observáveis, ou ausência delas, que permitem fazer um diagnóstico diferencial do indivíduo em estudo.[16] Logo, ao analisar os ossos que contenham características que possam ser relacionadas ao pé-de-lótus, como a própria modificação dos pés ou as consequências da prática na estrutura do esqueleto, somadas a análise do Perfil Biológico, Ancestralidade (Asiática) e Sexo (Feminino), contribuiriam no diagnóstico diferencial associado a prática cultural chinesa do pé-de-lótus.[13][14]

Galeria

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Ver também

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  1. a b «Chinese Foot Binding» (em inglês). BBC UK 
  2. a b c Lim, Louisa (19 de março de 2007). «Painful Memories for China's Footbinding Survivors». Morning Edition (em inglês). National Public Radio 
  3. a b c d e f g h i j Blake, C.F. (1994). Foot-binding in neo-Confucian china and the appropriation of female labor. [S.l.]: University of Chicago Press. pp. 676–712 
  4. a b c d e Zhang, Yan; Feng, Neng; Hu, Nanzhi; Gu, Yaodong (2015). «A Pilot Study on Gait Kinematics of Old Women with Bound Feet» (em inglês) 
  5. a b c d e f g Ma, Jiabin; Song, Yuquan; Rong, Ming; Gu, Yaodong (1 de janeiro de 2013). «Bound foot metatarsals skeletal rays kinematics information through inverse modelling». International Journal of Biomedical Engineering and Technology. 13 (2): 147–153. ISSN 1752-6418. doi:10.1504/IJBET.2013.057927 
  6. a b c Cummings, S R; Ling, X; Stone, K (outubro de 1997). «Consequences of foot binding among older women in Beijing, China.». American Journal of Public Health (em inglês). 87 (10): 1677–1679. ISSN 0090-0036. PMC 1381134 . PMID 9357353. doi:10.2105/AJPH.87.10.1677 
  7. Müller, Shing (1 de janeiro de 2003). «Chin-Straps of the Early Northern Wei: New Perspectives on the Trans-Asiatic Diffusion of Funerary Practices». Journal of East Asian Archaeology (em inglês). 5 (1): 27–71. ISSN 1387-6813. doi:10.1163/156852303776172971 
  8. a b «Questions About Footbinding». Stanford University Press. 25 de janeiro de 2017: 1–23. ISBN 978-1-5036-0107-9 
  9. a b c «WEARING HIGH-HEELED SHOES: THE DISCUSSION OF MODERN "FOOTBINDING" IN REPUBLICAN CHINA» 
  10. a b Zhang, Yan & FL, Li & WW, Shen & JS, Li & Ren, X. & Gu, Yaodong. (2014). Characteristics of the Skeletal System of Bound Foot: A Case Study. Biomimetics Biomaterials and Tissue Engineering. 19.
  11. a b c d e f g h Pan, Yi; Qin, Ling; Xu, Mian; He, Yin; Bao, Juan; Guo, Xian; Shu, Jun (2013). «A Study on Bone Mass in Elderly Chinese Foot-Binding Women» (em inglês) 
  12. a b c d e f Qin, Ling; Pan, Yi; Zhang, Ming; Xu, Mian; Lao, Hanchang; O'Laughlin, Michael C.; Tong, Shan; Zhao, Yanling; Hung, V. W. Y. (1 de março de 2015). «Lifelong bound feet in China: a quantitative ultrasound and lifestyle questionnaire study in postmenopausal women». BMJ Open (em inglês). 5 (3): e006521. ISSN 2044-6055. PMC 4368908 . PMID 25783423. doi:10.1136/bmjopen-2014-006521 
  13. a b c d e f g Berger, Elizabeth; Yang, Liping; Ye, Wa (1 de março de 2019). «Foot binding in a Ming dynasty cemetery near Xi'an, China». International Journal of Paleopathology (em inglês). 24: 79–88. ISSN 1879-9817. doi:10.1016/j.ijpp.2018.09.005 
  14. a b c d e f g h Zhao, Yongsheng; Guo, Lin; Xiao, Yuni; Niu, Yueming; Zhang, Xiaowen; He, Deliang; Zeng, Wen (1 de março de 2020). «Osteological characteristics of Chinese foot-binding in archaeological remains». International Journal of Paleopathology (em inglês). 28: 48–58. ISSN 1879-9817. doi:10.1016/j.ijpp.2019.12.003 
  15. a b c Stone, Pamela K. (1 de junho de 2012). «Binding women: Ethnology, skeletal deformations, and violence against women». International Journal of Paleopathology. Body parts and parts of bodies: Traces of violence in past cultures (em inglês). 2 (2): 53–60. ISSN 1879-9817. doi:10.1016/j.ijpp.2012.09.008 
  16. Ortner, Donald J. (2012). «Differential Diagnosis and Issues in Disease Classification». John Wiley & Sons, Ltd (em inglês): 250–267. ISBN 978-1-4443-4594-0. doi:10.1002/9781444345940.ch14 
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