Francisco Manicongo

homem escravizado natural do Congo, denunciado à Inquisição Portuguesa por práticas homossexuais
(Redirecionado de Xica Manicongo)

Francisco Manicongo, também conhecido como Francisco de Congo (Reino do CongoSalvador), foi um escravo africano que viveu em Salvador da Bahia, no Estado do Brasil, na segunda metade do século XVI. Segundo o antropólogo e ativista Luiz Mott, foi, juntamente com Vitória do Benim, documentada em Lisboa em 1556, um dos primeiros casos documentados de africanos homossexuais, sendo acusado de ser e se vestir como um imbanda, homossexual passivo na tradição das partes do Congo.[1] Tornou-se uma figura de destaque a partir da década de 1990, sobretudo entre a comunidade LGBT, após a divulgação do seu caso por Mott.

Francisco Manicongo
Nascimento Reino do Congo
Residência Salvador

A travesti ativista negra Majorie Marchi reinventou o personagem histórico na década de 2000, traduzindo-o como uma travesti com o nome social de Xica Manicongo. Em 2010, foi criado pela ASTRA-Rio, Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro, a que Marchi presidia, o Prêmio Xica Manicongo. Em 2021, um quilombo urbano no Rio de Janeiro foi criado e batizado como "Xica Manicongo", em homenagem à personagem criada por Marchi.

Biografia editar

Em 21 de agosto de 1591,[2] durante a primeira visitação do Santo Ofício à Bahia, Matias Moreira, cristão-velho de Lisboa, morador no Colégio da Companhia de Jesus,[3] denunciou Francisco de Congo, cativo de António Pires, sapateiro[nota 1], morador abaixo da Misericórdia de Salvador, que não só tinha fama de homossexual entre os negros da cidade, com os quais praticaria o "pecado nefando", como se vestia à maneira dos homosexuais passivos da sua terra natal.[1][2] No mesmo dia, Duarte, negro da Guiné, filho de gentios de Angola, escravo do mesmo Colégio, denunciando o escravo Joane, também ele acusado de sodomia, disse que repreendendo Joane por o perseguir para cometer com ele a dita prática, à época em que também era escravo dos Jesuítas, e dizendo-lhe que "era caso de os queimarem" por isso, lhe respondera Joane "que também Francisco Manicongo, negro de António Pires sapateiro, fazia o dito pecado com outros negros, e que não o queimavam por isso."[3]

Disse o denunciante que haveria cerca de quatro anos, soubera que Francisco de Congo tinha fama entre os negros de Salvador de ser somítigo, e que após saber da fama o vira com um pano cingido, como o trazem os somítigos do Congo. Mais disse que "sabe que em Angola e Congo, nas quais terras tem andado muito tempo e tem muita experiência delas, é costume entre os negros gentios trazerem um pano cingido com as pontas por diante, que lhe fica fazendo uma abertura diante, os negros somítigos que no pecado nefando servem de mulheres pacientes, aos quais chamam na língua de Angola e Congo 'imbandaa'[nota 2], que quer dizer somítigos pacientes.". Vendo Francisco vestido com a veste dos quimbandas, Moreira logo o repreendera, por não trazer "o vestido de homem que lhe dava seu senhor, dizendo-lhe que em ele não querer trazer o vestido de homem mostrava ser somítigo, pois também trazia o dito pano do dito modo", tendo Francisco negado ser homossexual. Disse Moreira que o voltara a ver duas ou três vezes em Salvador com o dito pano cingido, e que o tornara a repreender, sendo que no momento da denúncia já andava "em vestido de homem".[1][2]

A sua história voltou a ganhar relevância nos anos 1990, graças ao trabalho do antropólogo Luiz Mott, que partiu da publicação da "Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil", publicada em São Paulo em 1925.[1] Segundo Mott, Francisco teria sido "o homossexual mais corajoso de que se tem notícia neste começo da nossa história".[4] De acordo com Mott, nesta época os imbandaas ou quimbandas eram tidos como seres sobrenaturais, e alvo de uma deferência especial por parte da população, havendo queixas sobre o poder que detinham e a liberdade de fazer o que queriam, inclusive o que estava vedado à restante população, não havendo "lei que o condene como não há ação que não lhe seja permitida. Portanto, fica sempre sem castigo, embora abuse sem embaraço de sua impudecência, tão grande é a estima que por ele o demônio inspira![1]

Xica Manicongo editar

Na década de 2000, a ativista travesti negra Majorie Marchi reinventou Francisco Manicongo como a travesti "Xica Manicongo", criando o nome pelo qual a personagem é hoje sobretudo conhecida.[5] Em 2010, a associação ASTRA-Rio - Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro - a que Marchi presidia, criou o Prêmio Xica Manicongo,[5] que visa reconhecer iniciativas relacionadas com os direitos humanos e promoção da cidadania de travestis e pessoas trans.[6][7]

Em 2021, um quilombo urbano do Rio de Janeiro foi nomeado "Xica Manicongo", em homenagem à figura criada por Marchi.[8]

Em 2018, a estilista baiana Isaac Silva[9][10] lançou uma coleção de moda em sua homenagem.[11][12][13][14]

Xica será enredo do Paraíso do Tuiuti para o carnaval de 2025.[15]

Notas e referências

Notas

  1. No documento original António Pires é referido como sapateiro. Luiz Mott, por seu lado, atribui a Francisco Manicongo este ofício.
  2. "Quimbanda" na transcrição de Luiz Mott, "Imbandaa" no documento original.

Referências

  1. a b c d e Luiz Mott; Luiz Mott (2005), «Raízes históricas da homossexualidade no Atlântico lusófono negro», Revista Afro-Ásia, ISSN 0002-0591 (33): 9-33, Wikidata Q115650514 
  2. a b c Livro 1 de denúncias da 1ª visitação ao Brasil por Heitor Furtado de Mendonça, p. fólios 128-129v, Wikidata Q115651260 
  3. a b Livro 1 de denúncias da 1ª visitação ao Brasil por Heitor Furtado de Mendonça, p. fólios 129v-130v, Wikidata Q115651260 
  4. Cassimiro, Patrick (2022). Fabulosas: Histórias de um Brasil LGBTQIAP+. [S.l.]: Paralela. ISBN 9786557823552 
  5. a b Jesus, Jaqueline Gomes de (2 de junho de 2019). «XICA MANICONGO: A TRANSGENERIDADE TOMA A PALAVRA». Revista Docência e Cibercultura (1): 250–260. ISSN 2594-9004. doi:10.12957/redoc.2019.41817. Consultado em 21 de março de 2022 
  6. «De Xica Manicongo a Erica Malunguinho: as mulheres trans na política». Nós, mulheres da periferia. 28 de janeiro de 2022. Consultado em 21 de março de 2022 
  7. «Campanha de promoção aos direitos humanos do UNAIDS é premiada no Rio de Janeiro». www.unodc.org. Consultado em 21 de março de 2022 
  8. «Coletivos negro e LGBTs inauguram quilombo urbano em Niterói, no RJ». Brasil de Fato. Consultado em 21 de março de 2022 
  9. «"Hoje falo no espelho: olha a pessoa maravilhosa que você se tornou", diz Isa Isaac Silva sobre a transição de gênero». Vogue. 8 de abril de 2023. Consultado em 14 de setembro de 2023 
  10. «A estilista queer Isaac Silva, um dos nomes mais promissores da nova safra da moda». Estadão. Consultado em 14 de setembro de 2023 
  11. «Estilista Isaac Silva lança coleção em homenagem a Xica Manicongo, primeira travesti negra do Brasil – A Lista Negra». Consultado em 21 de março de 2022 
  12. «Cultura negra é reverenciada por estilista Isaac Silva - 22/07/2018 - sãopaulo - Folha de S.Paulo». www1.folha.uol.com.br. Consultado em 22 de março de 2022 
  13. Ker, João. «O afrorromantismo de Isaac Silva». Revista Híbrida. Consultado em 21 de março de 2022 
  14. «Conheça Angela Brito e Isaac Silva, os estreantes do SPFW N48». Vogue. Consultado em 22 de março de 2022 
  15. «Paraíso do Tuiuti vai contar a história da primeira travesti do Brasil no carnaval de 2025». G1. Consultado em 6 de abril de 2024