Aqualtune
Aqualtune foi uma líder quilombola do século XVII, chefe de um dos principais assentamentos que formavam o Quilombo dos Palmares.[1] Sua existência e alta posição hierárquica são atestadas em um documento português de 1678, que a identifica como mãe do então rei de Palmares, Ganga Zumba, e de outro chefe, Ganga Zona.[2]
Aqualtune | |||||
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Chefe do Mocambo de Aqualtune | |||||
Liderança no Quilombo dos Palmares | |||||
Dados pessoais | |||||
Nascimento | África Central (tradição oral a associa ao Reino do Congo) | ||||
Morte | Incerta, após 1678 Quilombo dos Palmares, Serra da Barriga, Capitania de Pernambuco, Brasil Colonial | ||||
Sepultado em | Desconhecido | ||||
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Dinastia | Família Real de Palmares |
Além de sua figura histórica, Aqualtune é o centro de uma difundida tradição oral que a retrata como uma princesa e comandante militar do Reino do Congo, que teria sido capturada após a Batalha de Ambuíla (1665) e escravizada no Brasil.[3] A historiografia contemporânea, no entanto, aponta que esta narrativa é cronologicamente inconsistente com os fatos conhecidos sobre sua descendência e não é sustentada por evidências documentais, sendo compreendida como um mito fundador que enaltece a linhagem dos líderes de Palmares.[4]
Como matriarca da família que gerou os líderes mais notórios de Palmares, incluindo seu neto Zumbi dos Palmares, Aqualtune é uma personagem central para a compreensão da estrutura social e política do maior quilombo das Américas. Seu legado é celebrado como um marco da resistência africana e da liderança feminina no Brasil.
Historicidade e Fontes Documentais
editarA existência de Aqualtune como figura histórica está ancorada em um documento primário crucial e no entendimento da organização interna de Palmares.
A "Relaçam das Gverras" de 1678
editarA principal prova material da existência de Aqualtune é a "Relaçam das Gverras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador Dom Pedro de Almeida, de 1675 a 1678".[1] Este manuscrito anônimo, cuja autoria é atribuída a um participante das campanhas militares contra o quilombo, é considerado a fonte mais detalhada sobre a organização de Palmares em seu apogeu.
Ao descrever os dez mocambos que formavam a confederação, o relato identifica o sexto assentamento e sua líder:
O sexto chamao de Aqualtune, que he nome da may do Rey Ganga Zumba, & aqui asiste a gente de seu irmão Ganga Zona, tem esta povoação 200 caza, & he cercada de paos a pique.Manuscrito anônimo de 1678.[1]
Estudos paleográficos recentes, realizados por Silvia Hunold Lara e Phablo Fachin, confirmaram a grafia original no manuscrito como "Âqualtune".[2] A passagem é inequívoca ao estabelecer:
- O Nome: Registra "Aqualtune" como um topônimo e antropônimo em Palmares.
- A Liderança: Indica que ela era a chefe de uma povoação de 200 casas, uma das maiores do quilombo.
- A Matrilinearidade do Poder: Afirma sua posição como mãe do rei (Ganga Zumba) e de outro chefe (Ganga Zona), sublinhando sua importância na estrutura de poder da realeza palmarina.
O Mocambo de Aqualtune e sua Posição em Palmares
editarPalmares era uma complexa entidade política, mais próxima de uma confederação de cidades-estado do que de um simples refúgio.[5] Cada mocambo possuía autonomia relativa, sob a liderança de um chefe. O fato de Aqualtune governar um dos maiores assentamentos, com estrutura defensiva ("cercada de paos a pique"), demonstra sua autoridade militar e administrativa.[6]
Sua liderança, em uma sociedade guerreira, sugere que seu prestígio não advinha apenas de ser a matriarca da família real, mas também de suas próprias qualidades políticas. A data de sua morte é desconhecida, mas presume-se que tenha ocorrido durante ou após a intensificação dos ataques que culminaram no acordo de paz de Ganga Zumba em 1678 e na subsequente ascensão de Zumbi.
A Lenda da Princesa do Congo
editarA biografia de Aqualtune foi ampliada por uma narrativa heroica que, embora não comprovada, tornou-se parte integral de sua identidade na cultura popular.
Narrativa e Elementos Centrais
editarSegundo a tradição oral, Aqualtune era uma princesa ("Mwene") do Reino do Congo, filha do rei António I Nvita a Nkanga. No contexto da crescente pressão portuguesa sobre as terras e minas congolesas, ela teria assumido uma posição de comando militar. O ponto culminante de sua história na África seria sua participação na Batalha de Ambuíla, em 29 de outubro de 1665.[3]
Nesta batalha, que foi um desastre para o Congo, o rei António I foi morto e decapitado, e centenas de membros da aristocracia congolesa foram capturados e subsequentemente vendidos como escravos para o Brasil.[7] A lenda situa Aqualtune entre esses nobres cativos. Trazida para Pernambuco, foi vendida a um engenho na região de Porto Calvo, onde, mesmo grávida, organizou uma fuga para Palmares. Lá, seu status de nobreza e sua experiência militar teriam sido reconhecidos, garantindo-lhe a liderança de seu próprio mocambo.[8]
Análise Historiográfica e Anacronismos
editarA historiografia contemporânea analisa esta narrativa como um mito, apontando anacronismos e a falta de corroboração documental:
- Inconsistência Cronológica: É o principal obstáculo à veracidade da lenda. Zumbi dos Palmares, neto de Aqualtune, nasceu por volta de 1655, uma década antes da Batalha de Ambuíla. Seu filho, Ganga Zumba, já era o líder consolidado de Palmares em 1670, cinco anos após a batalha, um período de tempo insuficiente para que sua mãe, recém-chegada da África, gerasse tal influência e visse seu filho ascender ao poder.[4][9]
- Ausência em Fontes Primárias: Não há menção a Aqualtune nos detalhados relatos portugueses sobre a Batalha de Ambuíla e seus cativos. Embora nem todos os nobres capturados tenham sido nomeados, a ausência de uma figura de tal importância militar é notável.[2]
Origens e Função do Mito
editarA lenda provavelmente se desenvolveu no século XX, como parte de um esforço de reconstrução da memória afro-brasileira. Sua função é a de um mito fundador:
Estabelecer uma Linhagem Nobre: A narrativa confere à dinastia de Palmares uma origem real, conectando-a diretamente a um dos maiores reinos da África. Isso reforça a imagem de Palmares como um "Estado" organizado, com uma realeza legítima, em oposição à visão colonial de um simples bando de fugitivos. 2. Criar um Arquétipo Heroico: A figura da princesa guerreira personifica a resistência desde o solo africano. É provável que tenha sido inspirada em figuras históricas reais, como a rainha Nzinga de Ndongo e Matamba, cuja fama como líder militar anti-colonial era notória no Brasil.[10]
Resgate e Estudo da Figura
editarA redescoberta de Aqualtune é um processo que reflete as mudanças na própria historiografia brasileira.
Do Manuscrito ao Reconhecimento Público
editarPor séculos, o nome de Aqualtune esteve restrito ao manuscrito de 1678. Foi a publicação de "O Quilombo dos Palmares" (1947), de Edison Carneiro, que a introduziu no meio acadêmico. Contudo, foi com a efervescência do Movimento Negro Unificado (MNU) nos anos 1970 e 1980, e a consequente elevação de Zumbi a herói nacional, que a busca por outras lideranças de Palmares se intensificou. Aqualtune emergiu então como uma figura de grande apelo, preenchendo a lacuna de uma grande matriarca fundadora.
Paralelos com a Rainha Nzinga
editarA comparação entre a Aqualtune mítica e a histórica Rainha Nzinga é um exercício historiográfico relevante. Ambas são apresentadas como líderes de reinos da África Central, estrategistas militares que enfrentaram os portugueses e símbolos de soberania africana. A sobreposição de características sugere que a memória coletiva sobre a resistência em Angola, personificada em Nzinga, pode ter fornecido o modelo para a construção da narrativa heroica de Aqualtune, adaptando um arquétipo poderoso à realidade específica de Palmares.[3]
Legado e Influência na Cultura Contemporânea
editarO impacto de Aqualtune na atualidade é vasto, manifestando-se como um símbolo de força na política, nas artes e na identidade social.
Símbolo da Resistência Feminina Negra
editarAqualtune é um dos maiores ícones do feminismo negro no Brasil. Ela representa a mulher que não apenas sobreviveu à brutalidade da escravidão, mas que a subverteu, assumindo uma posição de poder e liderança. Sua figura é evocada para inspirar a luta contra o racismo e o sexismo e para dar visibilidade à agência histórica das mulheres negras, frequentemente apagadas dos registros oficiais.[11]
Representações Artísticas e Literárias
editarA história de Aqualtune é um tema recorrente na produção cultural afro-brasileira.
- Literatura: A escritora Jarid Arraes, em sua obra "Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis" (2017), foi fundamental para a popularização de sua saga, adotando a versão da princesa guerreira para criar uma narrativa de empoderamento e forte apelo popular.[12]
- Carnaval: A figura de Aqualtune e outras lideranças de Palmares são frequentemente homenageadas nos desfiles das escolas de samba. Em 2024, a escola de samba Mancha Verde apresentou o enredo "Do nosso barro preto, em vida, se faz guerreira", que exaltava a força da mulher negra e fazia alusão direta à luta de Palmares.[13]
Legado Político e na Memória Social
editarAqualtune é uma figura politicamente ativa na contemporaneidade. Seu nome é invocado por movimentos quilombolas na luta pelo direito à terra e por políticas de reparação. A validação de sua história e de seu reino serve como um argumento para o reconhecimento da dívida histórica do Estado brasileiro e para a afirmação de uma identidade nacional que reconheça suas raízes africanas não como subalternas, mas como fundadoras e soberanas.[14]
Ver também
editarReferências
- ↑ a b c Anônimo (1678). «Relaçam das Gverras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador Dom Pedro de Almeida, de 1675 a 1678» (PDF). Manuscritos da Coleção Lamego, Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. 6 páginas. Consultado em 26 de junho de 2025
- ↑ a b c Lara, Silvia Hunold; Fachin, Phablo (2021). «Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678». Estudos Históricos (Rio de Janeiro). 34 (74): 637–657. doi:10.1590/S2178-14942021000300009. Consultado em 26 de junho de 2025
- ↑ a b c «Aqualtune». Biblioteca da FFLCH/USP. Universidade de São Paulo. Consultado em 26 de junho de 2025
- ↑ a b Gomes, Flávio dos Santos (2010). Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto. pp. 55–58. ISBN 978-8572442239 Verifique
|isbn=
(ajuda) - ↑ Funari, Pedro Paulo A.; Carvalho, Aline Vieira de (2005). Palmares, ontem e hoje. Rio de Janeiro: Zahar. p. 45. ISBN 978-8571108693 Verifique
|isbn=
(ajuda) - ↑ Carneiro, Edison (1958). O Quilombo dos Palmares (PDF). São Paulo: Editora Brasiliense. p. 32
- ↑ Thornton, John K. (1998). The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706. Cambridge: Cambridge University Press. p. 79. ISBN 978-0521596497
- ↑ Nogueira, André (13 de maio de 2021). «De princesa africana a escravizada em solo brasileiro: Aqualtune, a avó de Zumbi». Aventuras na História. Consultado em 26 de junho de 2025
- ↑ Anderson, Robert Nelson (1996). «The Quilombo of Palmares: A New Overview of a Maroon State in Seventeenth-Century Brazil». Journal of Latin American Studies. 28 (3): 545–566. doi:10.1017/s0022216x0001294x
- ↑ Heywood, Linda M. (2017). Njinga of Angola: Africa's Warrior Queen. Cambridge, MA: Harvard University Press. pp. 204–205. ISBN 978-0674971820
- ↑ Werneck, Jurema (20 de novembro de 2020). «Mulheres negras são múltiplas e plurais». Revista Marie Claire. Consultado em 26 de junho de 2025
- ↑ Arraes, Jarid (2017). Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Editora Seguinte. ISBN 978-8565765917 Verifique
|isbn=
(ajuda) - ↑ «Mancha Verde exalta orixás e defende a agricultura familiar e o cuidado com a terra em desfile no Anhembi». G1. 10 de fevereiro de 2024. Consultado em 26 de junho de 2025
- ↑ Anjos, José Carlos Gomes dos; Macedo, Joseli (2010). «Quilombos: memória e luta por direitos» (PDF). Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN). 2 (1). Consultado em 26 de junho de 2025
Bibliografia
editar- Anônimo (1678). Relaçam das Gverras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador Dom Pedro de Almeida, de 1675 a 1678. Manuscrito. Disponível em: (PDF)
- Carneiro, Edison (1958). O Quilombo dos Palmares. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense. Disponível em: (PDF)
- Gomes, Flávio dos Santos (2010). Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto. ISBN 978-8572442239.
- Lara, Silvia Hunold; Fachin, Phablo (2021). "Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678". Estudos Históricos (Rio de Janeiro), 34(74), 637–657. Disponível em: (PDF)
- Funari, Pedro Paulo A.; Carvalho, Aline Vieira de (2005). Palmares, ontem e hoje. Rio de Janeiro: Zahar. ISBN 978-8571108693.
- Thornton, John K. (1998). The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706. Cambridge: Cambridge University Press. ISBN 978-0521596497.
- Heywood, Linda M. (2017). Njinga of Angola: Africa's Warrior Queen. Cambridge, MA: Harvard University Press. ISBN 978-0674971820.
Ligações externas
editar- O Wikinotícias possui notícias relacionadas com: Aqualtune
- Aqualtune - Verbete na Biblioteca da FFLCH/USP.
- Aqualtune: uma das lideranças pioneiras de Palmares - Artigo da Fundação Cultural Palmares.
- Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678 - Artigo acadêmico que analisa a fonte primária sobre Aqualtune.