Estudo sobre o uso da proxalutamida contra a COVID-19 no Brasil

 

Na esteira da pandemia de COVID-19, várias pesquisas despontaram em todo o mundo visando um tratamento ou cura para a doença. Uma dessas pesquisas envolveu um ensaio clínico que aconteceu no Brasil e foi liderado pelo endocrinologista brasileiro Flávio Cadegiani.

No início da pandemia, acreditava-se que os homens eram geralmente mais propensos à doença do que as mulheres e, como resultado disso, alguns pesquisadores exploraram os bloqueadores hormonais masculinos humanos, também conhecidos como antiandrogênicos, como tratamento.[1] O estudo liderado por Cadegiani analisou o uso do medicamento experimental para câncer de próstata e antiandrogênico conhecido como proxalutamida para tratar o vírus, e pessoas da região amazônica brasileira foram recrutadas como pacientes no estudo, dado o aumento de casos de COVID-19 naquela região nos primeiros meses da pandemia de COVID-19 no Brasil o que, segundo o autor do estudo, favoreceria a precisão da pesquisa.[2]

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro apoiou o uso não comprovado do medicamento proxalutamida para tratar a COVID-19, assim como fez anteriormente com a ivermectina e a hidroxicloroquina, ambos também tratamentos não comprovados para o vírus.[3][4]

Método editar

Um total de 645 pacientes com COVID-19 recebeu proxalutamida em nove hospitais da região amazônica brasileira. Quando deram entrada no hospital, nenhum necessitou de ventilação mecânica no início do estudo. Os cuidados consistiam em medicamentos como enoxaparina, colchicina, metilprednisolona, dexametasona ou antibioticoterapia, conforme necessário, e alguns deles receberam medicamentos não comprovados para o tratamento da COVID-19, como a ivermectina. Ao todo, 317 pacientes receberam proxalutamida e 328 um placebo. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) informou posteriormente que tal "tratamento" foi prescrito por médicos de uma rede hospitalar privada como se fosse um tratamento médico estabelecido, apesar de ter sido aprovado apenas para estudos de ensaios clínicos. A quantidade de pessoas que receberam o medicamento também foi maior do que o número aprovado para o teste.[5]

Após o estudo, que não foi revisado por pares, inicialmente concluir que a taxa de recuperação de 14 dias dos pacientes foi de 81,4% com proxalutamida e 35,7% com placebo, Jesem Orellana, epidemiologista que observou de perto os efeitos da variante gama da COVID-19 na região amazônica no principal instituto de saúde pública do Brasil, Fiocruz, disse que "os resultados relatados seriam um milagre - se fossem verdadeiros", acrescentando que "tudo sobre este estudo é suspeito e que ele pode ser tudo, menos clínico e randomizado".[6]

Consequências editar

O termo de consentimento entregue aos pacientes do estudo omitiu o risco de defeitos congênitos e outros danos potenciais a partir dos procedimentos, bem como 200 pessoas morreram após serem submetidas ao estudo e pelo menos 40 mortes foram supostamente escondidas nas conclusões do estudo, de acordo com a Comissão Nacional de Ética do Brasil em Pesquisa (CONEP).[7][8] Mais tarde, foi relatado que os pacientes, alguns dos quais estavam internados em unidades de terapia intensiva na época, confiavam nos médicos participantes do estudo porque estavam desesperados por um tratamento ou cura da COVID-19 para seus parentes ou para si mesmos, pois a região foi a mais atingida no mundo no momento em que o estudo estava sendo realizado e todo o sistema de saúde local havia entrado em colapso devido a um grande aumento no número casos de COVID-19.[9][10][11][12][13]

Depois que a pré-impressão do estudo foi publicada em junho de 2021, vários cientistas alertaram que ele era profundamente falho e uma comissão brasileira de ética em pesquisa abriu uma investigação sobre ele. A revista Science também informou que a Applied Biology, uma empresa californiana de queda de cabelo, onde Cadegiani é diretor clínico, fez uma parceria com a Kintor Pharmaceuticals, fabricante de proxalutamida com sede na China.[14] Além disso, o escritório da UNESCO para a América Latina e Caribe considerou a forma como o estudo foi conduzido "alarmante" e cometeu várias violações éticas graves. O órgão internacional disse que o estudo pode ser uma das mais graves más condutas científicas éticas na história da região e pediu uma investigação sobre o caso.[15][16][17][18]

Em 2 de setembro de 2021, a Anvisa, agência reguladora da saúde no Brasil, suspendeu a prescrição, o uso e importação de proxalutamida no país e abriu uma investigação separada sobre o estudo.[19] Em 3 de setembro de 2021, uma queixa-crime foi apresentada ao Ministério Público do Brasil para investigar as ações realizadas durante o estudo, bem como as consequências do mesmo, incluindo a morte dos pacientes.[20]

Em 27 de junho de 2022, a revista acadêmica Frontiers in Medicine retirou o ferido estudo que havia publicado inicialmente em julho de 2021.[21][22] Da mesma forma, o British Medical Journal classificou outro artigo baseado no mesmo estudo e de autoria de Cadegiani como uma "causa de preocupação".[23] Em 25 de agosto de 2022, a Polícia Federal brasileira executou vários mandados de busca e apreensão contra funcionários públicos, médicos e pesquisadores que lideraram ensaios com proxalutamida no estado do Rio Grande do Sul e em outras partes do país. Embora não tenham sido revelados os nomes dos suspeitos alvos da operação, Cadegiani disse em suas redes sociais que sua casa e clínica foram alvo da operação pela polícia.[24][25][26]

Ver também editar

Referências

  1. Bwire, George M. (Julho de 2020). «Coronavirus: Why Men are More Vulnerable to Covid-19 Than Women?». SN Comprehensive Clinical Medicine (em inglês). 2 (7): 874–876. ISSN 2523-8973. PMC 7271824 . PMID 32838138. doi:10.1007/s42399-020-00341-w 
  2. Magri, Diogo (14 de outubro de 2021). «'Cobaias' da proxalutamida: como o Brasil entrou no que pode ser uma das infrações éticas mais graves da história». El País Brasil. Consultado em 27 de agosto de 2022 
  3. Stargardter, Gabriel (14 de maio de 2021). «The man behind Brazil's search for miracle COVID-19 cures». Reuters (em inglês). Consultado em 27 de agosto de 2022 
  4. «Bolsonaro elege proxalutamida, também sem eficácia comprovada contra Covid, como 'nova cloroquina'». Folha de S.Paulo. 18 de julho de 2021. Consultado em 27 de agosto de 2022 
  5. Taylor, Luke (17 de novembro de 2021). «Covid-19: Trial of experimental "covid cure" is among worst medical ethics violations in Brazil's history, says regulator». BMJ (em inglês). 375: n2819. ISSN 1756-1833. doi:10.1136/bmj.n2819 
  6. «Covid-19: Trial of experimental "covid cure" is among worst medical e…». archive.ph. 19 de dezembro de 2021. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  7. «Termo enviado para pacientes de estudo da proxalutamida contra a Covid-19 no AM omitiu informações, diz Conep». G1. Consultado em 26 de agosto de 2022 
  8. «Estudo com proxalutamida contra a covid omitiu mais de 40 mortes no AM». noticias.uol.com.br. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  9. «Coronavirus: Disease meets deforestation at heart of Brazil's Amazon». BBC News (em inglês). 4 de maio de 2020. Consultado em 27 de agosto de 2022 
  10. «'Utter disaster': Manaus fills mass graves as Covid-19 hits the Amazon». the Guardian (em inglês). 30 de abril de 2020. Consultado em 27 de agosto de 2022 
  11. Ledur, Júlia. «The arduous path for oxygen to reach the sick in one of Brazil's most remote regions». Washington Post (em inglês). Consultado em 25 de agosto de 2022 
  12. «Coronavirus COVID-19 collapses health system in Manaus, Brazil | MSF». Médecins Sans Frontières (MSF) International (em inglês). Consultado em 25 de agosto de 2022 
  13. «The Amazonian city that hatched the Brazil variant has been crushed by it». Washington Post (em inglês). ISSN 0190-8286. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  14. «'Too good to be true': Doubts swirl around trial that saw 77% reducti…». archive.ph. 18 de fevereiro de 2022. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  15. «Posible Infracción Ética Gravísima en Brasil». Redbioética/UNESCO. 9 de outubro de 2021. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  16. «Unesco vê possível violação grave em teste com proxalutamida – DW – 11/10/2021». dw.com. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  17. Magri, Diogo (14 de outubro de 2021). «Cobayas humanas en Brasil: las autoridades investigan 200 muertes en el estudio de un medicamento experimental contra la covid-19». El País (em espanhol). Consultado em 25 de agosto de 2022 
  18. «Unesco sobre estudo de proxalutamida contra Covid: "Possíveis graves violações"». Metrópoles. 11 de outubro de 2021. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  19. «Anvisa suspende uso e importação da proxalutamida; entenda». BBC News Brasil. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  20. «SEI/MS - 0022580072 - Ofício». web.archive.org. 11 de outubro de 2021. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  21. Office, Frontiers Editorial (2022). «Retraction: Proxalutamide Reduces the Rate of Hospitalization for COVID-19 Male Outpatients: A Randomized Double-Blinded Placebo-Controlled Trial». Frontiers in Medicine (em English). 0. ISSN 2296-858X. doi:10.3389/fmed.2022.964099/full 
  22. «Revista 'despublica' estudo que sugeria eficácia de proxalutamida contra Covid». Folha de S.Paulo. 27 de junho de 2022. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  23. Cadegiani, Flavio; Lin, Erica M.; Goren, Andy; Wambier, Carlos G. (1 de fevereiro de 2021). «Expression of concern: potential risk for developing severe COVID-19 disease among anabolic steroid users». BMJ Case Reports CP (em inglês). 14 (2): e241572. ISSN 1757-790X. doi:10.1136/bcr-2021-241572 
  24. «Responsáveis por testes com proxalutamida são alvo de busca e apreensão no RS». G1. Consultado em 25 de agosto de 2022 
  25. Ventura, Iolanda (25 de agosto de 2022). «Médico responsável por estudo com proxalutamida é alvo da PF». Consultado em 27 de agosto de 2022 
  26. «Polícia Federal realiza operação de busca e apreensão contra alvos do caso proxalutamida». O Globo. Consultado em 27 de agosto de 2022